segunda-feira, 23 de junho de 2014

Noam Chomsky e sua esperança dissidente - Entrevista a Chris Hedge


Noam Chomsky e sua esperança dissidente
Ele vislumbra brechas na fábrica de consensos do capitalismo e aposta: movimentos como Occupy, economia solidária e rejeição ao consumismo podem abalar sistema

Noam Chomsky, a quem entrevistei 5ª-feira passada em sua sala no Massachusetts Institute of Technology (MIT), influenciou intelectuais nos EUA e em todo o mundo, por número incalculável de vias. A explicação que construiu para o Império, a propaganda de massa, a hipocrisia e o servilismo dos liberais e os fracassos dos acadêmicos, além do que ensinou sobre os modos pelos quais a linguagem é usada como máscara pelo poder, para nos impedir de ver a realidade, fazem dele o mais importante intelectual nos EUA. A força de seu pensamento, combinada a uma independência feroz, aterroriza o estado-empresa – motivo pelo qual a imprensa-empresa e grande parte da academia-empresa tratam-no como pária. Chomsky é o Sócrates do nosso tempo.

Vivemos um momento sombrio e desolado na história humana. E Chomsky começa por essa realidade. Citou o falecido Ernst Mayr, importante biólogo evolucionista do século 20, que disse que provavelmente nós jamais encontraremos extraterrestres inteligentes, porque formas superiores de vida se autoextinguem em tempo relativamente curto.

“Mayr dizia que o valor adaptacional do que se chama ‘inteligência superior’ é muito baixo” – disse Chomsky. – “Baratas e bactérias são muito mais adaptáveis que os humanos. É melhor ser inteligente que estúpido, mas podemos ser um equívoco biológico, usando os 100 mil anos que Mayr nos dá como expectativa de vida como espécie, para destruir-nos nós mesmos e destruir também muitas outras formas de vida no planeta.”

A mudança climática “pode acabar conosco, e em futuro não muito distante” – diz Chomsky. – “É a primeira vez na história humana em que temos a capacidade para destruir as condições mínimas para sobrevivência decente. Já está acontecendo. Há espécies que estão sendo destruídas. Estima-se que vivemos destruição equivalente à de há 65 milhões de anos, quando um asteroide colidiu com a Terra, extinguiu os dinossauros e grande número de outras espécies. A destruição, hoje, é de nível equivalente àquele. De diferente, que o asteroide somos nós. Se alguém nos está vendo do espaço, deve estar atônito. Há setores da população global tentando impedir a catástrofe global. Outros setores tentam apressá-la.

Veja bem quem são uns e outros: os que tentam impedir a catástrofe total são os que nós chamamos de primitivos, atrasados, populações indígenas – as Nações Originais no Canadá, os aborígenes australianos, pessoas que ainda vivem em tribos na Índia. E quem acelera a destruição? Os mais privilegiados, os chamados ‘avançados’, os letrados, as pessoas cultas e educadas do mundo.”

Se Mayr acertou, estamos no fim de uma tendência, acelerada pela Revolução Industrial, que nos jogará para o outro lado de uma montanha, ambientalmente e economicamente. Esse evento, aos olhos de Chomsky, nos oferece uma oportunidade e, ao mesmo tempo, traz um perigo. Já várias vezes Chomsky repetiu, como alerta, que, se temos de nos adaptar e sobreviver, é preciso derrubar o poder da elite-empresa-corporação, mediante movimentos de massa; e devolver o poder a coletivos autônomos que são focados em manter as comunidades, em vez de explorar comunidades. Apelar às instituições e mecanismos estabelecidos de poder não vai dar certo.

“Podem-se extrair muitas boas lições, do período inicial da Revolução Industrial” – disse ele. – “A Revolução Industrial decolou aqui perto, no leste de Massachusetts, em meados do século 19. Foi o período quando fazendeiros independentes estavam sendo conduzidos para dentro do sistema industrial. Homens e mulheres – as mulheres deixaram as fazendas para ser “operárias de fábrica” – lastimaram amargamente a mudança. Foi também período de imprensa muito livre, a mais livre que os EUA jamais conheceram, em toda sua história. Havia quantidade enorme de jornais e lê-los hoje é experiência fascinante. O povo que foi arrastado para o sistema industrial via aquilo tudo como um ataque à sua dignidade pessoal, aos seus direitos de seres humanos. Eram seres humanos livres, forçados para dentro do que chamavam ‘trabalho assalariado’, e que, aos olhos deles, não era muito diferente da escravidão. De fato, essa era a impressão dominante entre o povo, a tal ponto, que havia um slogan do Partido Republicano: ‘A única diferença entre trabalhar por salário e ser escravo é que o salário acaba.’”

Chomsky diz que essa deriva, que forçou os trabalhadores agrários para longe da terra e para dentro das fábricas nos centros urbanos, foi acompanhada por uma destruição cultural. Os trabalhadores, diz ele, haviam sido parte da “mais alta cultura da época”.

“Lembro-me disso, lá nos anos 1930s, com minha própria família” – diz ele. – “Aquilo nos foi tirado. Estávamos sendo forçados a nos tornar, de certo modo, escravos. Diziam que você trabalhava como artesão e vendia um produto que você produzia, então, como assalariado, o que você passou a fazer foi vender você mesmo. E isso soava como ofensa profunda. Eles condenavam o que chamavam de ‘novo espírito da época’, ganhar dinheiro e esquecer-se completamente de si mesmo. É velho e, ao mesmo tempo, soa hoje muito familiar aos nossos ouvidos.”

É essa consciência radical, que deitou raízes em meados do século 19 entre fazendeiros e muitos operários de fábrica, que Chomsky diz que temos de recuperar para conseguirmos avançar como sociedade e como civilização. No final do século 19, fazendeiros, sobretudo no meio-oeste, livraram-se dos banqueiros e dos mercados de capitais, e constituíram seus próprios bancos e cooperativas. Entenderam o perigo de virar vítimas de um processo vicioso de endividamento, comandado pela classe capitalista. Os fazendeiros radicais fizeram alianças com os ‘Knights of Labor’ [Cavaleiros do Trabalho],[1]que entendiam que os que trabalhavam nos moinhos deviam ser também proprietários dos moinhos.

“À altura dos anos 1890s, operários estavam tomando cidades e governando-as, no leste e no oeste da Pennsylvania. É o caso de Homestead” – Chomsky lembrou. – “Mas foram esmagados à força. Demorou um pouco. O golpe final foi o ‘Medo Vermelho’ de Woodrow Wilson [orig. Woodrow Wilson’s Red Scare][2].”

“A ideia, hoje, ainda deve ser a dos Knights of Labor,” ele disse. “Os que trabalham nos moinhos devem ser também donos dos moinhos. Há muito trabalho em andamento. Haverá mais. Os preços da energia estão caindo nos EUA, por causa da exploração maciça de combustíveis fósseis, que destruirá nossos netos. Mas, sob a moralidade capitalista, o cálculo é: os lucros de amanhã são mais importantes que a existência ou não dos seus netos. Estamos conseguindo preços mais baixos de energia. Eles [os empresários] estão entusiasmadíssimos, porque podem oferecer preços inferiores aos que a Europa oferece, porque nossa energia é mais barata. E assim, os EUA conseguimos fazer fracassar os esforços que a Europa tem procurado fazer, para desenvolver energia sustentável…”

Chomsky espera que os que trabalham na indústria de serviços e na manufatura possam começar a organizar-se para começar a tomar o controle de seus próprios locais de trabalho. Observa que no ‘Cinturão da Ferrugem’ [orig. Rust Belt],[3] inclusive em estados como Ohio, há crescimento no número de empresas que pertencem aos trabalhadores.

O crescimento de poderosos movimentos populares no início do século 20 mostrou que a classe empresarial já não conseguia manter os trabalhadores subjugados por ação exclusiva da violência. Os interesses empresariais tiveram de construir sistemas de propaganda de massa, para controlar opiniões e atitudes.

O crescimento da indústria de “relações públicas”, iniciada pelo presidente Wilson, que criou o Comitê de Informação Pública [“Creel Committee”][4], para instilar sentimentos pró-guerra na população, inaugurou uma era não só de guerra permanente, mas também de propaganda permanente. O consumo foi instilado também, com compulsão incontrolável. O culto do indivíduo e do individualismo tornou-se regra. E opiniões e atitudes passaram a ser talhadas e modeladas pelos centros de poder, como o são hoje.

“Uma nação pacífica foi transformada em nação de odiadores, fanáticos por guerras” – diz Chomsky. – “Essa experiência levou a elite no poder a descobrir que, mediante propaganda efetiva, poderiam, como Walter Lippmann escreveu, usar “uma nova arte na democracia, e fabricar o consenso.”

A democracia foi destripada. Os cidadãos tornaram-se “público”, “audiência”, telespectadores, não participantes no poder. Os poucos intelectuais, entre os quais Randolph Bourne, que mantiveram a independência e recusaram-se a servir à elite no poder foram expulsos para fora do sistema, como Chomsky.

“Muitos dos intelectuais dos dois lados estavam apaixonadamente dedicados à causa nacional” – disse Chomsky, falando a 1ª Guerra Mundial. “Houve só uns raros dissidentes. Bertrand Russell foi preso. Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg foram mortos. Randolph Bourne foi marginalizado. Eugene Debs, preso. Todos esses se atreveram a questionar a magnificência da guerra.”

Aquela histeria pró-guerra jamais cessou, movida sem alteração, do medo de um bárbaro germânico, para o medo de comunistas e, daí, para o medos de jihadistas e terroristas islamistas.

“As pessoas vivem aterrorizadas demais, porque foram convencidas de que nós temos de nos defender nós mesmos” – diz Chomsky. – “Não é inteiramente falso. O sistema militar gera forças perigosas para nós, que nos ameaçam. Veja, por exemplo, a campanha terrorista dos drones de Obama – a maior campanha terrorista de toda a história. Esse programa gera novos terroristas e terroristas potenciais muito mais depressa do que destrói suspeitos. É o que se vê agora no Iraque. Volte lá, aos julgamentos de Nuremberg. A agressão entre Estados foi definida como o supremo crime internacional. Foi considerado diferente de outros crimes de guerra, porque a agressão entre estados reúne, como crime, todos os demais danos que outros crimes subsequentes causarão.

A invasão que EUA e Grã-Bretanha cometeram contra o Iraque é como um manual de crime de agressão entre Estados. Pelos padrões de Nuremberg, os governantes dos EUA e da Grã Bretanha teriam, todos, de ser condenados à morte e enforcados. E um dos crimes que cometeram foi incendiar o conflito sunita versus xiitas.”

Esse conflito, que agora novamente inflama a região, é “um crime cometido pelos EUA, se acreditamos que sejam válidas as sentenças que Nuremberg proclamou contra os nazistas. Robert Jackson, promotor-chefe no tribunal de Nuremberg, em sua fala aos jurados, disse que aqueles acusados haviam bebido de um cálice envenenado. E que se algum de nós algum dia bebêssemos daquele mesmo cálice teríamos de ser tratados do mesmo modo, ou tudo não passaria de grande farsa.”

As escolas e universidades da elite inculcam hoje em seus alunos a visão de mundo endossada pela elite no poder. Treinam alunos para serem reverentes ante a autoridade. Para Chomsky, a educação, na maior parte das grandes escolas, inclusive em Harvard, a poucos quarteirões de distância do MIT, não passa de “um sistema de profunda doutrinação”.

“Há um entendimento de que há certas coisas que não se dizem nem se pensam” – diz Chomsky. – “É assim, entre as classes educadas. E é por isso que eles todos apoiam fortemente o poder do Estado e a violência do Estado, apenas com uma ou outra pequena ‘restrição’. Obama é visto como crítico contra a invasão do Iraque. Por quê? Só porque disse que seria erro estratégico. É argumento que o põe no mesmo nível moral de um general nazista que entendesse que o segundo front era erro estratégico. Isso, para os norte-americanos, é ‘ser crítico’.”

E Chomsky não subestima o ressurgimento de movimentos populares.

“Nos anos 1920s, o movimento trabalhista estava praticamente destruído” – disse. – “Havia sido um movimento trabalhista forte, muito militante. Nos anos 1930s ele mudou, e mudou por causa do ativismo popular. Houve circunstâncias [a Grande Depressão] que levaram à oportunidade de fazer alguma coisa. Vivemos constantemente com isso. Considere os últimos 30 anos. Para a maioria da população, foram tempos de estagnação, ou pior que isso. Não é a Depressão profunda, mas é uma depressão semipermanente para a maior parte da população. Há muita lenha lá fora, esperando para ser queimada.”

Chomsky entende que a propaganda empregada para fabricar consensos, mesmo na era das mídias digitais, está perdendo efetividade, com a realidade cada vez menos parecida com o “retrato’ dela inventado pelos órgãos da mídia empresarial de massas. Embora a propaganda feita pelo Estado norte-americano ainda consiga “empurrar a população para o terror e o medo e para a histeria de guerra, como se viu nos EUA antes da invasão do Iraque”, ela já começa a fracassar na tarefa de manter fé não questionada nos sistemas de poder. Chomsky credita ao movimento Occupy, que ele descreve como uma tática, ter “disparado uma fagulha iluminadora” a qual, mais importante, atravessou toda a sociedade, apesar da atomização”.

“Há todos os tipos de esforços e projetos para separar as pessoas umas das outras” – diz ele. “A unidade social ideal [no mundo dos propagandistas do Estado-empresa] é você e sua tela de televisão. As ações de Occupy puseram abaixo isso, para grande parte da população. As pessoas reconheceram que poder nos juntar e fazer coisas por nós mesmos. Podemos ter uma cozinha comum. Podemos ter um palanque para discussões públicas. Podemos formar nossas próprias ideias. Podemos fazer alguma coisa. E esse é ataque importante contra o núcleo dos meios pelos quais o público é controlado.

Você não é só um indivíduo tentando maximizar o consumo. Você descobre que há outros interesses na vida, outras coisas com as quais se preocupar. Se essas atitudes e associações puderem ser sustentadas e mover-se em novas direções, será muito importante.

*Chris Hedges, repórter laureado com um Prêmio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais o best-seller (New York Times) “Days of Destruction, Days of Revolt (2012)”, do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. O livro mais recente de Hedges é “Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle” [Império da Ilusão: fim da alfabetização e triunfo do espetáculo].
[1] Sobre o que foram, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Knights_of_Labor [NTs].
[2] Para saber o que foi, ver http://firstredscare.edublogs.org/ [NTs].
Entrevista a Chris Hedge*, no Thruthdig | Tradução Vila Vudu

Fonte: http://outraspalavras.net/

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