Negri: um caminho para reanimar as lutas europeias...
Londres,
22/6: ao menos 50 mil exigem, diante do Parlamento, fim das políticas de
“austeridade”.
Para Negri, não faltarão, nos próximos meses, oportunidades para
articular lutas sociais europeias
Em meio a
novas mobilizações, filósofo sugere mirar Espanha e Grécia, combinar autonomia
com presença institucional e articular “política do comum”
Em uma de
suas primeiras declarações após as eleições para o Parlamento Europeu, François
Hollande afimou que a Europa tornou-se “ilegível”. Certamente não deve ter sido
difícil, para ele, “ler” o resultado de seu partido: a derrota dos socialistas
franceses foi clamorosa, assim como a dos socialistas espanhóis. Mas enquanto
na Espalha a continuidade e amadurecimento dos movimentos contra a
“austeridade” abriram espaço político para forças tradicionais de esquerda
(Esquerda Unida, em primeiro lugar) e para a novidade significativa do Podemos,
na França, como se sabe, as coisas caminharam de modo distinto.
A vitoria
da Frente Nacional francesa, é, no fundo, o espelho de uma dupla incapacidade.
De um lado, a dos socialistas, para gerir de modo expansivo uma crise que se
torna a cada dia mais profunda, ameaçando transformar a própria França no
epicentro da crise europeia. De outro, a dos movimentos sociais e da esquerda
(Frente de Esquerda, em particular), para aceitar até o fundo o terreno europeu
como espaço decisivo da luta. A França demonstra, antes de tudo, uma coisa:
hoje, na Europa, a dimensão nacional e “soberanista” (que toda a esquerda,
inclusive parte sifnificativa dos socialistas havia defendido, lutando contra a
Constituição Europeia, no referendo de 2005) é um terreno no qual apenas a
direita – um pouco mais ou um pouco menos abertamente xenófoba e fascista –
pode vencer.
Bem além
das intenções de Hollande, em todo caso, uma certa “ilegibilidade” caracteriza
hoje, de fato, a Europa. No calor da crise, já haviam se esgotado as formas
pelas quais o o processo de integração europeu era “lido” e levado adiante, nas
décadas anteriores. A formação progressiva de um corpo de Direito Europeu,
capaz de substituir a integração política faltante, foi interrompida
bruscamente pelos caminhos adotados para gerir a crise. O comando articulado em
torno da autonomia do Banco Central Europeu desvinculou-se não apenas da
“legitimidade” democrática mas também da máquina de produção de normas e de governança
da União Europeia. Agora, o voto francês, em especial (e a dupla crise,
econômica e política, da França) coloca em xeque o eixo franco-alemão, sobre o
qual a integração europeia apoiava-se para construir suas próprias alquimias
políticas e geografias. Imaginar que a Itália possa, deste ponto de vista,
substituir a França, é francamente ridículo.
De modo
geral, as eleições europeias, apesar da fragmentação dos resultados, expressam
uma clara rejeição à “europa alemã” e à filosofia liberal da “austeridade”. Há
tempo frisamos que as próprias elites europeias percebem os limites da gestão
da crise realizada até agora: ela não define novos cenários de estabilização
capitalista. Porém, esta exigência pressupõe uma consolidação do quadro
político a nível continental, que não se produziu de maneira alguma. A “grande
coalizão” que se prenuncia no Parlamento Europeu parte do enfraquecimento
profundo dos partidos que a comporão, em particular devido aos resultados que
obtiveram nos paíes do Sul do continente – os mais atingidos pela crise dos
últimos anos.
A coalizão
entre democratas-cristãos e social-democratas, que assumiu o governo alemão,
simplesmente relança um modelo alemão já percebido, de modo difuso, como causa
da crise – não como solução possível. E o crescimento do Partido Democrático na
Itália, com seus efeitos na composição e correlação de forças internas ao
Partido Socialista Europeu, tenderá a obscurecer a identidade “socialista”,
tirando o espaço que seria necessário à dialética política necessária para uma
“inovação” não apenas retórica. Mesmo que ela se produza apenas no plano de uma
articulação distinta (e uma estabilização) do comando capitalista.
A atração
do socialismo europeu para o campo de forças articulado pelos conservadores, a
sua renúncia a se tornar intérprete político tanto das reivindicações da classe
operária “tradicional” e dos “desclassados” pela crise quanto dos novos setores
emergentes na composição do trabalho, é um dado que emerge com clareza da nova
rodada eleitoral. Assim como adota atitude de mera gestão do que existe, quanto
está no governo, a social-democracia parece incapaz de reinventar-se – mesmo
quando na oposição. O crescimento da direita e das forças “eurocéticas” (além
do não-comparecimento às urnas) está diretamente ligado a este eclipse da
social-democracia. Ela já não parece candidata a reconstruir um tecido de mediações
sociais e políticas, reclamado difusamente – repetimos – por uma parte
consistente das elites capitalistas europeias.
Não
excluímos a hipótese de que tais elites possam voltar-se à direita para
construir as condições para uma saída da crise: não seria a primiera vez em sua
história, e a continuidade do processo de integração europeia (sob perfil
monetário, normativo, técnico ou de infra-estruturas) não é por si mesmo
incompatível com atitudes identitárias ou “nazionalistas”. O certo é estariam
reprimidas, sob égide de uma política de medo e de uma valorização do
autoritarismo social, os espaços de liberdade e de luta pelo Comum, em toda a
Europa. A resistência e a revolta que uma “solução” deste tipo encontraria
certamente a tornam, no momento, pouco realista – mas ela permanece como
possibilidade de fundo.
Ainda que o
horizonte europeu seja, em certa medida, opaco e “ilegível”, é em seu interior
que se definirão, nos próximos anos, os termos do confilto político e social
nesta parte do mundo. A seu modo, sabem disso perfeitamente as próprias forças
da direita “anti-europeia”: é outro dado que as eleições europeias fornecem. O
capitalismo, consolidou, na crise dos últimos anos, sua natureza “extrativa” –
em primeiro lugar, por meio de um aprofundamento dos processos de
financerização. Ao mesmo tempo, e especialmente na Europa, até os observadores mainstream
que celebram a volta da “estabilidade” nos mercados financeiros evidenciam o
alargamento do abismo entre as dinâmicas de tais mercados e a violença que persiste
nas consequências sociais da crise.
O
desemprego que não baixa de dois dígitos em muitos países europeus; a ampliação
e intensificação da precariedade; o disciplinamento de populações inteiras por
meio da dívida; a represssão; o ataque às condições dos imigrandes; os
retrocessos conservadores sobre temas cruciais como os direitos civis e a
liberdade: é esta a herança da “austeridade” na Europa. Enquanto isso, no plano
mundial a instabilidade e as turbulências provocadas pela cirse de hegemonia norte-americana
continuam a se intensificar. As guerras nos confins da União Europeia (Ucrânia
e Síria) são uma manifestação dramática do fenômeno. A crise profunda de todas
as formas de governabilidadede (e de todas as tentativas de requalificação da
democracia) ameaça, na Europa, traduzir-se em condições de violência
generalizada, ou de guerra civil latente. Estes problemas, em todo caso, só
poderão ser enfrentados na Europa, dentro do espaço continental. Certamente,
não o serão nos espaços augustos dos Estados-Nações europeus!
Os limites
da “austeridade” já o dissemos, tornaram-se evidentes na Europa. A reabertura
de uma dinâmica salarial (o tema da elevação do salário mínimo foi assumido por
parte da “Grande Coalizão” que governa a Alemanha e, na Itália, com o bônus
fiscal do governo Renzi) demonstra o fenômeno. Há aqui uma oportunidade para as
lutas e movimentos europeus: denunciar a mistificação desta abertura só é
possível forçando seus limites, fazendo irromper na cena as novas figuras da
cooperação produtiva, multiplicando as reivindicações que esgarçam os limites
do “tralbalho” e agindo para que entrem em convergência, no interior de um
grande movimento pela reapropriação da rizqueza social. O “sindicalismo
social”, cuja discussão estimulamos no interior da rede Eruronomade, precisa
ter este significado de reconstrução das bases materiais para uma política de
expansão do Comum.
Um novo
desenho da luta de classes começa a tomar forma. Projetá-la a nível europeu é o
que pretendemos, quando falamos de um movimento constituinte capaz de romper as
barreiras nacionais sem, por isso, perder o enraizamento no interior de
conjunturas sociais e políticas específicas.
Não sabemos
se este movimento constituinte encontrará, em nível europeu, as condições
politicas para se consolidar – e, portanto, para produzir uma nova qualificação
da democracia e introduzir elementos maduros de contrapoder em cada cenário de
estabilização e “saída” da crise. O que vemos é que, nos países em que foi mais
forte e contínuo o movimento de luta contra a “austeridade”, este movimento
conseguiu incidir também nos planos eleitoral e institucional, introduzindo aí
elementos significativos de contradição.
Embora em
condições distintas, a afirmação do Podemos na Espanha e a vitória do Syriza na
Grécia expressam precisamente a possibilidade de conjugar a consolidação de
formas de auto-organização, de luta e de contrapoder em nível social, com um
uso inovador dos dispositivos eleitorais e institucionais. Que fique claro: nem
o Podemos, nem o Syriza são para nós “modelos”. Não excluímos, é claro, a
hipótese de que, em um ou no outro caso, a oportunidade seja desperdiçada, com
a volta à ideia – empobrecedora – de “representação dos movimentos”. Mas
achamos oportuno sublinhar que a oportunidade se apresenta; e que foi
construída por lutas e movimentos.
Trata-se,
nos próximos meses, de trabalhar antes de tudo no interior destes movimentos e
lutas, na perspectiva de que ganhem potência, multipliquem-se, assumam uma
convergência maior no terreno europeu. Não faltarão ocasiões, no verão e outono
[inverno e primavera brasileiros]. Construir uma linguagem e um imaginário
comuns dos movimentos europeus significa conquistar os instrumentos necessários
para determinar uma nova “legibilidade” da Europa; para discernir, na opacidade
da transição em curso, a ocasião para uma política do comum.
Por Toni
Negri e Sandro Mezzadra, EuroNomade |
Tradução: Antonio Martins
Fonte: http://outraspalavras.net/
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