sexta-feira, 13 de junho de 2014

Três lições que os EUA aprenderam com George Orwell 65 anos após lançamento de ‘1984’ – por Felipe Amorim e Patrícia Dichtchekenian


Três lições que os EUA aprenderam com George Orwell 65 anos após lançamento de ‘1984’

Cristalizada no tempo, obra mais emblemática de autor inglês apresenta futuro distópico que condensa ficção e realidade 

“Eu não acredito que o tipo de sociedade que descrevo necessariamente irá chegar, mas acho que algo semelhante poderia emergir. Também acredito que ideias totalitárias criaram raízes nas mentes dos intelectuais em todos os lugares e tentei tirar destas ideias as suas consequências lógicas”, escreveu o autor inglês George Orwell na última declaração a respeito de 1984, em carta aberta ao United Auto Workers, um dos principais sindicatos de trabalhadores norte-americanos.

Lançado em Nova York no dia 13 de junho de 1949, o clássico transcendeu a temporalidade. A ideia de sua composição já estava na mente de Orwell desde a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), mas o estopim para colocar a mão na massa foi após a Segunda Guerra Mundial, no fim de 1946.
[Primeira edição norte-americana de '1984']

Se o escritor não tivesse morrido sete meses após o lançamento de sua obra mais emblemática, talvez tivesse fôlego para recompô-la a partir de novas perspectivas geopolíticas, como a eclosão da Guerra Fria. De qualquer forma, o que assusta nesta distopia é a própria premonição de Orwell quanto à possibilidade iminente que ela tem de emergir. Mesmo após 65 anos da publicação de 1984 no país, ficção e realidade caminham lado a lado nos Estados Unidos:

“Guerra é paz”
“Uma década de guerra está acabando. Nós, o povo, ainda acreditamos que segurança e paz duradoura não requerem guerra perpétua.” A frase não é uma passagem do livro de George Orwell, é um trecho do discurso de Barack Obama ao assumir o segundo mandato presidencial, em janeiro de 2013. A intenção era sinalizar o esforço de retirar as tropas norte-americanas do Oriente Médio, após mais de dez anos de ocupações no Iraque e no Afeganistão. O cinismo da afirmação esconde o fato de que Washington não está acabando com as guerras, mas apenas mudando o formato do combate.

O carro-chefe das Forças Armadas dos EUA deixou de ser os soldados, fuzis automáticos e carros blindados e passou a ser bombardeios aéreos com drones e operações secretas realizadas pela elite dos seals norte-americanos, que atuam em mais de 75 países invadindo, capturando e executando supostos inimigos — exatamente como fizeram com Osama bin Laden. Esses novos métodos dão à população a impressão de que os tempos são de paz, afinal não há baixas — pelo menos, não do lado dos norte-americanos.

A máxima orwelliana “Guerra é paz”, um dos slogans do governo fictício de 1984, institui a ideia de que a violência é tão constante que torna impossível a distinção entre guerra e paz. Da mesma maneira, a máquina e a indústria da guerra são elementos tão essenciais que a manutenção da paz exige um estado permanente de conflito com os inimigos (externos e, também, internos); do contrário, a sociedade e a economia em 1984 sucumbiriam.

De qualquer jeito, é tentadora a comparação entre o slogan orwelliano e essa política externa “o que os olhos não veem o coração não sente” praticada por Washington. Para os EUA, eliminar o desgaste de uma ocupação militar de longa duração seria o equivalente a pôr fim à guerra. Com essa mudança, essas técnicas de guerra “menos convencionais” podem continuar indiscriminadamente em tempos de paz.

“Que coisa bonita, a destruição de palavras!”
Em 1984, repressão ideológica é feita também por meio do controle do idioma. A “novilíngua” (ou “novafala”) parte de um pressuposto básico: se a palavra que carrega determinado significado não existe, a ideia deixa de existir também. No livro, o governo autoritário pretende extinguir para sempre dos dicionários palavras como “amor”, “liberdade” e “revolução”.

Marca da administração Obama, mercado dos drones (aviões não-tripulados) movimenta US$ 6 bilhões todos os anos

De certa maneira, a Guerra ao Terror deflagrada pelos EUA após os atentados de 11 de Setembro trouxe algumas mudanças semânticas que lembram um pouco o universo orwelliano. As torturas nos porões de Guantánamo, por exemplo, viraram “técnicas estressantes de interrogatório”. Quando os EUA mataram Osama bin Laden, a Casa Branca afirmou que seu corpo havia sido “sepultado e enterrado no mar” — um belo eufemismo (paradoxal e fisicamente impossível, diga-se) para informar que seu cadáver foi simplesmente arremessado na água.

Por falar em bin Laden, é quase impossível encontrar alguém (do governo ou da mídia) que diga que o terrorista foi assassinado ou executado. O próprio Departamento de Justiça dos EUA, como atesta este documento, tem um conceito bem diferente sobre essa palavra: “A lawful killing in self-defense is not an assassination” (“Uma morte legítima em autodefesa não é um assassinato”, em tradução livre.)

“O Grande Irmão está de olho em você”
As teletelas que apresentam o Grande Irmão (ou “Big Brother”) na obra de Orwell jamais poderiam ser desligadas completamente. “Não havia como saber se você estava sendo observado em um momento específico – era possível controlar todo mundo o tempo todo”, sintetiza uma passagem do livro. A esse dispositivo de poder — que leva o indivíduo à constante sensação de visibilidade, fazendo com que ele se sinta submetido a um poder visível, mas jamais inverificável, —  deu-se o nome de Panóptico. Trata-se de uma técnica de vigilância desenvolvida pelo jurista Jeremy Bentham, em 1785, quando ele idealizou uma construção em forma de anel, com celas que convergiam para uma torre central. Esse sistema pode ser utilizado em presídios, hospitais, fábricas ou na casa das pessoas, como no caso de 1984.
Crescente instalação de câmeras de segurança, seja em condomínios ou instituições privadas, é um panoptismo consentido

Essa proposta de assegurar a efetividade do poder e garantir a ordem a partir da vigilância foi desenvolvida à exaustão pela NSA (Agência Nacional de Segurança dos EUA), tal como revelou Edward Snowden. Em 2013, o ex-técnico do órgão declarou que a divulgação em massa e indiscriminada de dados privados por parte dos governos resultou na espionagem de milhões de pessoas, gerando um debate crítico em escala mundial acerca da dimensão do nível de vigilância dos norte-americanos.

Nos três anos em que trabalhou na NSA, Snowden acessou por volta de 1,7 milhões de arquivos oficiais e divulgou parte deles — atitude que custou milhões para as Forças Armadas dos EUA. Há alguns meses, Obama disse que as escandalosas revelações sobre espionagem da NSA trouxeram "mais prejuízo que transparência". Desde agosto passado, o ex-técnico está asilado na Rússia e faz aparições esporádicas em conferências online.

Snowden jogou luz sobre o pretensamente sutil efeito Panóptico a que os cidadãos estão submetidos. Nas últimas décadas, a crescente instalação de câmeras de segurança, seja em residências e condomínios, seja em estabelecimentos comerciais e instituições privadas, já era um panoptismo consentido. Inspirado no líder supremo da ficção de Orwell, o próprio programa de televisão mundial Big Brother é um exemplo claro do momento em que uma sociedade panóptica se transformou em uma sociedade do espetáculo, em que a exacerbação da própria imagem já se traduz pelo fetiche pela visibilidade. No entanto, a conversão dos computadores, tablets e celulares em teletelas portáteis foi um choque em nível global, comprovando que 1984 de fato não é tão fictício assim.

Fonte: http://operamundi.uol.com.br

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