O Feltrinelli brasileiro
O anarquista brasileiro Edgard Leuenroth não teve imagem tão
poderosa quanto à de Che Guevara para difundir mundo afora, mas teve uma causa:
a luta dos operários ligados à vertente anarcossindicalista
Edgard Leuenroth (1881-1968), cujo rico acervo foi adquirido
pela Unicamp e está disponibilizado para consulta pública no Centro de
Pesquisa e Documentação Social, protagonizou história que lembra a do editor
italiano Giangiacomo Feltrinelli (1926-1972).
Se Feltrinelli foi editor poderoso, nem por isto deixou de
abraçar causas revolucionárias (criou os GAP – Gruppi d’Azione Partigiana) e
fez de sua editora uma das principais difusoras da literatura de esquerda e da
histórica foto de Che Guevara, feita por Alberto Korda. Aquela do guerrilheiro
heroico, que correu o mundo.
Quando Ernesto Guevara de la Serna foi assassinado, em
outubro de 1967, na Bolívia, o editor italiano imprimiu milhões de pôsters com
o mais famoso retrato do rebelde argentino-cubano.
O anarquista brasileiro não teve imagem tão poderosa quanto
à de Che Guevara para difundir mundo afora. Mas teve uma causa: a luta dos
operários ligados à vertente anarcossindicalista. Ele foi tipógrafo, jornalista,
arquivista, propagandista e militante anarquista. Torna-se, portanto,
impossível contar a história da imprensa operária brasileira sem falar dele.
Afinal, fundou ou colaborou com mais de vinte publicações editadas nas
primeiras décadas do século XX. Algumas delas: Folha do Braz, O Trabalhador
Gráfico, A Terra Livre, A Lucta Proletária, A Folha do Povo, A Lanterna, A
Guerra Social, O Combate, A Capital, Spartacus, A Plebe, Jornal dos Jornaes, Ação
Libertária e Ação Direta.
Anarcossindicalista
Edgard Frederico Leuenroth nasceu em Moji Mirim, no interior
de São Paulo, filho de um médico-farmacêutico e de uma sobrinha do Visconde de
Rio Claro. Tinha cinco anos quando o pai faleceu. Mudou-se, então, com a mãe,
para a capital paulista. Fixaram-se no bairro operário do Brás. Em dificuldades
financeiras, a família precisou dos serviços do menino, que abandonou os
estudos aos dez anos para exercer pequenos ofícios (auxiliar de limpeza, etc.).
Aos 19 anos, passou a frequentar as reuniões do Círculo Socialista.
Aos 20, em contato com o poeta libertário Ricardo Gonçalves, conheceu a
filosofia anarquista. Fundou o Centro Typográphico de São Paulo e, na grande
greve geral que paralisou a metrópole industrial, em 1917, teve liderança
fundamental. Como mostra o filme Libertários, de Lauro Escorel.
Um episódio, em especial – também registrado pelo filme –
fez a greve crescer: a morte do jovem anarquista de origem espanhola José
Martinez durante protesto na porta da Fábrica Mariângela. O enterro do rapaz,
no cemitério do Araçá, atraiu milhares de pessoas e ampliou o alcance da
greve, iniciada pelos operários têxteis do Cotonifício Crespi (sediado na
Mooca).
Para se ter uma ideia, 70 mil trabalhadores pararam as
fábricas, armazéns foram saqueados, bondes e outros veículos incediados e
barricadas erguidas nas ruas. Leuenroth, que integrava o Comitê de Defesa
Proletária, era tido como principal líder do levante anarcossindicalista. E
foi preso. Com o triunfo da Revolução Bolchevique, na Rússia, a repressão no
Brasil recrudesceu e muitos dos líderes anarquistas vindos da Itália e da Espanha
foram deportados.
Num dos textos que enriquecem o livreto que acompanha o DVD
de Libertários e Chapeleiros, o professor Michael M. Hall, da Unicamp, realiza
consistente análise das ideias, agitações e greves que abalaram a São Paulo das
duas primeiras décadas do século XX [leia trecho ao final deste texto].
Polo aglutinador
O Arquivo Edgard Leuenroth, criado na gestão do reitor
Zeferino Vaz, há exatos 40 anos, é coordenado pelo Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade de Campinas. Nasceu, por umas destas ironias
da história brasileira, em plena ditadura militar. Seu propósito: ser “um
polo aglutinador e difusor de investigação científica sobre a história dos
trabalhadores”. Lá estão depositados mais de cem fundos e coleções (a principal
é a de Leuenroth), boa parte deles já digitalizados e abertos à consulta pública,
em prédio próprio, dentro do campus da universidade campineira.
Durante o lançamento do DVD de Libertários e Chapeleiros,
em São Paulo, os professores Paulo Sérgio Pinheiro e Victor Leonardi
relembraram a formação do Arquivo Edgard Leuenroth, do Centro de Pesquisa e
Documentação Social-Unicamp (AEL-CPDS). E confessaram a necessidade de “muito
jeitinho” para driblar os empecilhos que foram surgindo pelo caminho.
“Jeitinhos”
Após os terríveis anos Médici, o general Ernesto Geisel
assumiu a presidência anunciando “abertura lenta e gradual”. Neste clima, o
cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, com outros colegas progressistas,
resolveu, apoiado pelo reitor Zeferino Vaz, procurar o então ministro da
Indústria e Comércio, Severo Gomes, para que bancasse a aquisição do valioso
Arquivo de Leuenroth. O material estava sob a guarda de dois filhos do líder
anarquista, Germinal (homenagem a Zola, claro) e Nilo Leuenroth.
O ministro Severo Gomes prometeu ajudar. Mas o presidente
Geisel mandou chamá-lo, pois queria saber o que o Ministério da Indústria e
Comércio tinha a ver com a aquisição de arquivo de jornais e documentos da luta
operária anarcossindicalista.
Antes, a equipe reunida pela Unicamp para criar o Centro de
Pesquisa e Documentação Social teve de enfrentar outro contratempo. O
professor Victor Leonardi deixara a UnB (Universidade de Brasília) para
trabalhar neste projeto da Unicamp. Só que, na hora de ser contratado, um
dossiê com sua história política foi parar nas mãos do ministro Golbery do
Couto e Silva. A documentação acusava Leonardi de práticas subversivas. Sua
contratação foi vetada. Deu-se, então, um jeitinho: Paulo Sérgio Pinheiro assumiu
o comando do projeto e Victor Leonardi continuou atuando, mas “por baixo do
pano” (sem seu nome nos documentos oficiais).
Severo Gomes usou de muita diplomacia para convencer
Geisel. Argumentou com o general-presidente que, para melhor conhecer a
indústria brasileira, fazia-se necessário conhecer a história dos operários.
O projeto foi aprovado. “O dinheiro gasto na compra do Acervo Leuenroth” –
relembra Pinheiro – “corresponde hoje ao preço de um apartamento na Avenida
Vieira Souto, no Rio. Conseguimos salvar patrimônio cobiçado por importante
‘brazilianista’, o estadunidense J.W. Foster Dulles, que desejava levá-lo
para a Universidade de Austin, no Texas”.
Hoje, os originais da história operária paulista,
protagonizada especialmente por imigrantes italianos, espanhóis e portugueses,
estão depositados na Unicamp. E cópias foram encaminhadas ao Instituto
Histórico de Amsterdã e ao Instituto Feltrinelli da História Operária, em
Milão. (MRC).
São Paulo-SP
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/30730
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