sexta-feira, 24 de abril de 2009

Léxico da (anti*)desilusão - Por Naomi Klein

Léxico da (anti*)desilusão

Naomi Klein, The Nation
(ed. impressa nas bancas dia 4/5/2009; na internet dia 15/4/2009, em http://www.thenation.com/doc/20090504/klein?rel=hp_currently

Nem tudo vai muito bem na Obamafãslândia. Não se sabe ainda exatamente como explicar a mudança de humor. Talvez seja o fedor rançoso que vem do mais recente banco 'resgatado' pelo Tesouro. Ou das notícias de que o principal conselheiro de Economia do presidente, Larry Summers, recebeu milhões dos mesmos bancos e corretoras de "hedge funds" de Wall Street que, agora, ele tenta proteger contra a re-regulação. Ou talvez a coisa tenha começado antes, quando Obama silenciou, durante o ataque de Israel a Gaza.

Seja quem for que pague o mico, número cada vez maior de Obamamaníacos começam a entrever a possibilidade de que seu herói talvez não consiga salvar o mundo, se só contar, para ajudá-lo, com nossa esperança... por mais sincera e firme que seja.

Se esperamos que a cultura de "fã-clube" que levou Obama ao poder venha a converter-se em movimento político independente, suficientemente potente para produzir programas que efetivamente dêem conta dos atuais problemas e crises que os EUA enfrentam, é hora de todos pararmos de esperar-com-esperanças e começar a exigir.

O primeiro passo, contudo, tem de passar por todos entendermos completamente os interespaços muito estreitos nos quais muitos dos movimentos progressistas são obrigados a viver, nos EUA. Para entender isso, é preciso construir outra linguagem, específica para esse momento-Obama em que estamos. Aqui sugiro um começo de um novo léxico.

Super-esperanças. Como nas ressacas, a super-esperança resulta de super-excesso, ontem. Acontece sempre que mergulhamos fundo demais em qualquer sensação prazerosa que, contudo, seja ou pecado ou crime ou faça mal à saúde ou ao meio ambiente. E depois vem o remorso. A culpa. Às vezes, muita vergonha. É o equivalente político da larica por hipoglicemia. Frase exemplar, de caso de super-esperança é: "Ao assistir ao discurso sobre economia, de Obama, meu coração disparou. Depois, quando quis contar a um amigo sobre os planos de Obama para resolver a vida dos milhões de desempregados e sem-teto... eu só gaguejava. Surto muito brabo, de super-esperança."

Esperança-sobe-e-desce. Como se vivesse numa montanha-russa, o esperador de esperança-sobe-e-desce vive um intenso sobe-e-desce emocional nesses dias de Obama, entre a euforia de ter um presidente que apoia que se ensine sexo seguro nas escolas, e o fundo do poço emocional de sentir-se excluído da discussão, só porque se é segurado individual de algum plano de saúde privado... e é como se não existíssemos e ninguém nos ouve. Frase exemplar, nesse caso, é: "Surtei de alegria quando Obama disse que Guantánamo será fechada. Mas agora estão dizendo que, na prisão de Bagram, ninguém tem direito algum, a nada. Parem a montanha-russa!! Eu preciso sair daqui!"

Esperança-intoxicação. Como quem morre de saudade da casa da mãe, os esperadores de esperança-intoxicação são indivíduos intensamente nostálgicos. Não entenderam que a campanha eleitoral não passou de um surto de otimismo, pensaram que duraria para sempre. Agora, vivem para reencontrar aquela emoção, aquele calor... quase sempre super-exagerando o significado de manifestações quase insignificantes da decência humana de Obama. Frases exemplares: "Eu fiquei gravemente intoxicado de esperança-tóxica sobre a escalada no Afeganistão. Depois, quando assisti a um vídeo no YouTube, em que Michelle ensina jardinagem orgânica, foi lindo e tudo passou. Foi como se estivesse outra vez assistindo à cerimônia da posse. Depois, soube que o governo Obama está boicotando uma importante conferência da ONU contra o racismo... E desabei, outra vez, de saudades dos bons tempos. Foi pior que antes! Sorte que, em seguida, assisti a um desfile em que Michelle só usou vestidos desenhados por estilistas independentes, das minorias étnicas e, ufa, melhorei."

Esperança-fissura. A esperança-fissura, como a fissura de drogas, é terrível e arrasta a fazer qualquer coisa para pôr fim à fissura. (Intimamente relacionada à esperança-intoxicação-saudade-dos-bons-tempos, mas mais severa; afeta sobretudo machos de meia idade). Frase exemplar: "Joe contou que realmente acredita que Obama deliberadamente escolheu Summers especificamente para estragar o resgate dos bancos; assim, Obama teria uma desculpa para fazer o que realmente deseja fazer: nationalizar os bancos e convertê-los em cooperativas de crédito. Que esperança-fissura!"

Esperança-deprê. Como um certo tipo de amante-deprê, a obamita esperadora de esperança-deprê não é doida; é horrivelmente pessimista e está muito triste. Ela (a maioria são elas) projetou poderes messiânicos em Obama. Agora, sofre de desilusão inconsolável. Frase exemplar: "Acreditei meeeeeeeeeeeeesmo que Obama nos obrigaria a encarar o passado escravagista dos EUA e que teríamos discussão nacional séria, nos EUA, sobre raça e racismo. Agora... ele já nem fala em raça e só faz distorcer argumentos legalistas para evitar a devassa em todos os crimes dos anos Bush. Cada vez que ouço Obama dizer que "temos de avançar"... é como se meu coração levasse uma chicotada, tudo outra vez."

Esperança reversa. Como no coice reverso de um chicote, que tem de ser bem manejado para não chicotear o chicoteador, a esperança reversa é o perfeito reverso, um giro de 180 graus, em tudo que tenha a ver com Obama. As vítimas de esperança reversa foram seguidores apaixonados, verdadeiros evangelistas, carne da carne de Obama. Hoje, são seus piores inimigos, os mais acérrimos criticadores! Frase exemplar: "Com Bush, pelo menos, todos sempre souberam que era perfeito idiota. Agora, taí: as mesmas guerras, as mesmas torturas nas mesmas prisões sem lei, a mesma corrupção em Washington, e os panacas festejam, como esposa enganada de novelão, que nada sabe, nada vê. Precisam é de umas boas chicotadas!"

Agora, tentando encontrar nomes para designar nossos padecimentos nacionais por causa da esperança, lembrei-me do falecido Studs Terkel**, e do que diria dessa ressaca nacional pós-eleitoral que acomete os EUA. Com certeza diria que não desesperemos. Folheei um de seus últimos livros Hope Dies Last [A esperança é a última que morre]. Nem precisei procurar muito. As primeiras palavras do livro são "a esperança nunca morre como nasceu: ela sempre deixa algum benefício".

Aí se diz quase tudo. A esperança foi excelente slogan, que acompanhou um candidato que fez aposta alta, de longo prazo. Contudo, como mote e postura que acompanhe o presidente da nação mais poderosa da terra é perigosamente reverente.

A tarefa, para avançar (expressão que Obama adora), não implica abandonar a esperança. Implica, sim, encontrar melhores pontos nos quais apoiar a esperança – nas fábricas, nas comunidades, nos bairros, nas periferias, locais e espaços em que comícios, reuniões, manifestações de rua e ocupações começam já a renascer.

Sam Gindlin, cientista político, escreveu recentemente que o movimento de trabalhadores pode fazer muito mais do que apenas tentar preservar para si algum status quo.

Os trabalhadores podem, por exemplo, exigir que fábricas falidas e desativadas sejam convertidas em instalações 'verdes', onde se fabriquem veículos de transporte coletivo e se criem tecnologias não poluidoras e sistemas de energia renovável. "Ser realista significa arrancar a esperança dos discursos e metê-la nas mãos dos que trabalham", escreveu ele.

Com o quê chegamos à última entrada desse léxico.

Esperança em movimento. Sentença exemplar: "Basta de crer em esperança que cai do céu. É preciso ativar a esperança em movimento, nos movimentos, de baixo para cima."

++++++++++++++++++++++++++++

* Essa é uma tradução de guerrilha. A quantidade de neologias cria risco imenso, para qquer tradutor. O que aí vai é uma das muitas possibilidade de traduzir esse tipo de discurso e há inúmeras outras. Correções e comentários são bem-vindos para caia.fittipaldi@uol.com.br

** Para saber quem é ver http://www.studsterkel.org/bio.php .

Fonte: www.novae.inf.br

Nenhum comentário: