O socialista inglês George Orwell foi dedo-duro? - por Euler de França Belém
Quando lançado no Brasil, em 2008, o livro “Quem Pagou a Conta — A CIA na Guerra Fria da Cultura” (Record, 556 páginas, tradução de Vera Ribeiro), de Frances Stonor Saunders, formada em Oxford, ganhou resenhas elogiosas, mas nenhum comentário crítico. O motivo é o de sempre: teorias conspiratórias de esquerda são aceitas como verdades irretorquíveis nos cadernos culturais. O jornalista e escritor inglês George Orwell, morto aos 46 anos, em 1950, é uma das “vítimas” da autora. Ao contrário de biógrafos e ensaístas, Saunders acredita na história de Isaac Deutscher de que Orwell plagiou o romance “Nós”, do russo Yevgeny Zamyatin, que, perseguido pelo stalinismo, exilou-se na França. Ex-trotskista e eterno socialista, Deutscher escreveu que faltavam ao seu adversário “senso histórico e compreensão psicológica da vida política”. Sessenta quatro anos depois da morte de Orwell, sabemos que sua crítica ao totalitarismo, de esquerda (stalinismo) e de direita (nazi-fascismo), permanece pertinente. O romance “1984”, de 1948, persiste vivo, um perceptivo mapeamento histórico e psicológico, além de resistir como literatura, de uma sociedade totalitária. O herói ou ex-herói de Deutscher, Liev Trotski, era menos perspicaz do que o autor da novela “A Revolução dos Bichos”. Se a crítica do biógrafo de Trotski não resiste a um peteleco, outra crítica é mais grave. Orwell teria sido “dedo-duro”, segundo a versão apresentada por Saunders.
A oxfordiana afirma que Orwell entregou ao Departamento de Pesquisa de Informações (IRD), braço secreto do Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra, em 1949, uma lista que denunciava “35 pessoas como simpatizantes, ou como suspeitas de serem testas-de-ferro ou ‘adeptas’ do comunismo”. Alguns dos supostamente “dedurados”: Kingsley Martin, Paul Robeson, J. B. Priestley, Michael Redgrave. Saunders admite que Orwell elaborou uma lista com o objetivo de “brincar” com os amigos Arthur Koestler e Richard Rees. Os integrantes da lista — além dos citados, o escritor arrolou Stephen Spender (supostamente lembrado por ser homossexual), John Steinbeck, Upton Sinclair, George Padmore, Tom Driberg (também homossexual) — eram comunistas notórios ou simpatizantes.
Para se apresentar como “isenta”, Saunders inclui a ressalva de Bernard Crick, biógrafo de Orwell. O escritor, na versão de Crick, “não diferiu dos cidadãos responsáveis de hoje que transmitem ao esquadrão antiterrorista informações a respeito de pessoas de suas relações que eles acreditam ser terroristas do IRA. Essa era uma época vista como perigosa, o fim dos anos quarenta”. A escolha deste trecho da biografia escrita por Crick é uma jogada inteligente de Saunders, porque sugere que, em algum momento, a deduragem é necessária. O golpe de misericórdia é dado por Peregrine Worsthorne: “Um ato desonroso não se torna honrado pelo simples fato de ter sido cometido por George Orwell”. Saunders bate abaixo da linha de cintura: “Ele demonstrou haver confundido o papel do intelectual com o do policial. (...) Mary McCarthy observou que era uma bênção ele ter morrido muito moço” (46 anos!). McCarthy, que entendia muito de literatura e quase nada de política (conta-se que, para escrever seus livros, teve de ser trancada num quarto por Edmund Wilson, que a considerava preguiçosa), acreditava que Orwell, se vivesse mais, teria se tornado um intelectual de direita — no que se engana.
Orwell era/é um intelectual admirável e, ao mesmo tempo, equivocado. “Admirável” porque escreveu textos que deverão sobreviver, como “1984” (espécie de “Odisséia” do totalitarismo), “A Revolução dos Bichos” e ensaios magistrais sobre literatura e indivíduos. “Equivocado” porque morreu acreditando, e dizendo isto com todas as letras — sem subordinar-se à direita, ao contrário do que sugerem McCarthy e Saunders —, no socialismo, especialmente na ficção chamada “socialismo democrático”, como se democracia e socialismo não fossem incompatíveis (a Espanha não é socialista porque o primeiro-ministro é socialista e estranhamente a China é socialista, embora, para sobreviver, tenha incorporado a economia de mercado). Por mais que fosse um apóstolo da liberdade individual, Orwell não percebeu que um indivíduo singular como ele, que prezava acima de tudo a independência de expressão e tinha opiniões às vezes idiossincráticas, de tão pessoais, só tinha espaço numa sociedade democrática, sem nenhum arremedo de socialismo. Orwell nasceu e morreu na Inglaterra, sem ter sido perseguido. Foi perseguido na Espanha socialista, durante a Guerra Civil. Cadê o Orwell russo e o Orwell cubano que sobreviveram ao stalinismo e ao castrismo?
Quanto ao Orwell “delator” há livros — como “A Vitória de Orwell” (Companhia das Letras, 204 páginas, tradução de Laura Teixeira Motta), do jornalista e polemista profissional Christopher Hitchens, e “George Orwell — Uma Biografia Política” (Antígona, 282 páginas, tradução de Fernando Gonçalves), de John Newsinger — que reduzem a pó a “teoria” de madame Saunders.
Hitchens é o mais virulento na defesa de Orwell. O autor inglês esclarece que a lista não foi divulgada em 1996, como sugere Saunders e outros, mas em 1980, na biografia escrita por Bernard Crick. Quer dizer, era tão sem importância que ninguém tentou escondê-la. Ao contrário do que afirma Saunders, Hitchens revela que “o Departamento de Estudo de Informações não tinha ligação com nenhuma ‘Polícia do Pensamento’, muito menos com a Polícia do Pensamento das páginas de ‘1984’”.
A lista elaborada por Orwell, com o apoio do amigo Rees, resultou de uma espécie de “jogo de salão”. “O jogo consistia em lançar hipóteses sobre quais figuras públicas seriam capazes de vender-se na eventualidade de uma invasão ou ditadura. Orwell dedicava-se a esse jogo, a sério ou de brincadeira, há anos.” Tinha o hábito de mostrar “a tentação dos intelectuais a adaptar-se ao poder”. Num texto de 1942, na “Partisan Review”, ataca duramente Pierre Drieu de la Rochelle, Ezra Pound e L. F. Céline, os três de direita. Não vituperava apenas os intelectuais stalinistas.
Ao contrário do que Saunders insinua, Hitchens restaura o Orwell verdadeiro: “A repugnância de Orwell” pela “cultura da traição não se limitava ao estilo visceral com que a retratou e condenou em ‘1984’. Orwell a vida toda demonstrou ódio por todas as formas de censura, proscrição e lista negra”. A lista que escreveu, insiste Hitchens, não foi feita a pedido do Estado. “Orwell hoje não está sendo acusado de fazer listas, e sim meramente de fazer listas sobre as pessoas erradas.” A nomeação dos intelectuais de direita, que eram criticados asperamente por Orwell, não é notada por seus críticos de esquerda.
Na verdade, afirma Hitchens, “a lista certamente ilustra os ressentimentos privados e as excentricidade de Orwell”. O jornalista esclarece que, “para ser exato, uma única pessoa foi acusada de ser um agente. (...) Trata-se de Peter Smolka. (...) Hoje está indiscutivelmente confirmado que Smolka era, com certeza, agente da segurança soviética, o que significa uma correspondência de cem por cento entre os fatos e a afirmação de Orwell sobre o recrutamento direto de estrangeiros. (...) Ninguém sofreu nem poderia ter sofrido por causa das opiniões privadas de Orwell; ele não disse ‘em particular’ nada que não tenha afirmado coerentemente em público. E, embora algumas pessoas da ‘lista’ fossem conhecidas pessoais de Orwell, a maioria não era. Isso tem certa importância, pois define-se corretamente o ‘alcaguete’ ou dedo-duro como aquele que trai colegas ou amigos em troca de um indulto ou de alguma outra vantagem para si mesmo”. Orwell morreu tuberculoso, em decorrência possivelmente do período em que passou fome.
Numa síntese perfeita, Newsinger é mais esclarecedor e moderado do que o “cruzado” Hitchens: “O envolvimento de Orwell com o IRD resume-se à entrega, a uma agência de propaganda criada pelo governo trabalhista, de uma lista de pessoas [E. H. Carr, Chaplin, Alex Comfort, V. Gordon Childe, entre outras] a não contatar. (...) Orwell cometeu grave erro ao envolver-se com o IRD, mas há que reconhecer que esse envolvimento foi mínimo e, se estivermos de boa-fé, não pode ser visto como ‘bufaria’, ‘espionagem’ ou ‘traição’. No momento em que colaborou com o IRD, este ainda tinha um ‘rosto de esquerda’
Fonte: http://www.revistabula.com
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