Anatomia do Movimento Passe Livre
As recentes manifestações de junho do Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo surpreenderam os donos do poder. Como a justiça da causa não podia ser questionada, as armas da crítica voltaram-se contra a crítica das armas. E sendo assim, perderam.
Ainda que as armas não fossem armas. Pneus incendiados, lixeiras como barricadas e milhares de pessoas concentradas ainda não podem ameaçar nenhum grupo estabelecido no andar de cima. Mas podem desmoralizá-lo. Diante disso a “crítica” dirigiu-se à turba, à baderna, ao “trânsito”, aos arruaceiros e aos jovens filhos de papai.
Sem resultados, os críticos descobriram os partidos. Assim, pelos jornais “sabemos” que certos partidos de “extrema esquerda” dirigiam sorrateiramente o MPL. Nada mais falso. O MPL se organiza horizontalmente, ao lado, acima (por vezes, abaixo) dos partidos políticos. Não é, portanto, uma frente de partidos. Decerto há nele militantes de partidos. Nada mais esperado e justificado. Os partidos de esquerda, revolucionários ou não, vivem sempre a expectativa de montar o cavalo já em disparada.
Eis que a grande imprensa lembrou o vandalismo. “Vândalos!”, berravam apresentadores transtornados nos telejornais sensacionalistas. Em movimentos assim, é natural que haja ações erradas, revoltas incontidas e gritos de ódio. A população que se movimenta não o faz segundo a etiqueta de parlamentares de terno, gravata, seguranças e jantares caros.
Uma ou outra vidraça se quebra porque, ao contrário dos militares que batem, atiram balas de borracha e lançam bombas de gás lacrimogêneo, os militantes das ruas ainda não se acostumaram a mirar com precisão. Eles não dispõem de dinheiro, da polícia e das leis ao seu lado. Mas segundo a contabilidade prática do movimento as lixeiras incendiadas e os prejuízos ao tráfego poderão ser descontados tranquilamente dos bilhões desviados dos cofres públicos nas licitações duvidosas de obras que visam melhorar exatamente o tráfego.
Mas alto lá, proclama um prefeito. O custo do passe livre o inviabiliza! É certo que poderíamos fazer outra conta. A tarifa zero, proposta hoje por vários partidos piratas europeus, foi pela primeira vez lançada pela própria prefeitura da cidade de São Paulo e pelo atual partido do Governo. O Partido dos Trabalhadores propôs durante a gestão de Luiza Erundina que a tarifa fosse paga por um imposto urbano progressivo. Sem apoio na época de um movimento social organizado, foi fácil para a Câmara Municipal recusar.
Hoje, desconheço os cálculos políticos que os governos fazem para se opor ao passe livre. Sei que os contábeis estão errados. E, provavelmente, os eleitorais também. Uma medida de tal impacto talvez pudesse se tornar o maior “programa social” de um partido. A economia com os gastos de cobrança e com a diminuição de automóveis nas ruas compensaria mesmo a chamada classe média.
Além disso, a população poderia se deslocar por vários serviços de saúde e educação desafogando os equipamentos públicos mais procurados. E nem precisaríamos citar os ganhos para os que frequentariam as escolas, bibliotecas, parques, praças, museus etc.
Confusos, finalmente os “críticos” dizem que se trata de um movimento comunista, anarquista, trotskista, punk, sindical, baderneiro… Mas sabemos que a finalidade do MPL não se define previamente. Apesar da evidência do motivo imediato (a livre locomoção urbana de todas as pessoas) e de ideais necessariamente vagos sobre outra sociedade, ele se define apenas como um grupo que luta. Luta por nós.
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP.
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