terça-feira, 4 de junho de 2013

O campo libertário, hoje: radiografia e desafios (2ª parte) - por Marcelo Lopes de Souza

O campo libertário, hoje: radiografia e desafios (2ª parte)
O campo libertário se acha diante de desafios sérios e inescapáveis, isso é certo; da maneira como esses desafios forem enfrentados se definirá, nos próximos anos, se vitórias (ainda que modestas) serão acumuladas ou se, desgraçadamente, pouco mais restará do que voltar a lamber as feridas. Por Marcelo Lopes de Souza
A renovação do desafio posto pelo marxismo
O pensamento e a prática libertários rejuvenesceram extraordinariamente nas últimas duas décadas. Movimentos sociais arrojados e criativos têm emergido pelo mundo afora − dos Autonomen alemães dos anos 1980 e 1990 aos autónomos espanhóis dos anos 1990 e aos indignados de hoje, dos (neo)zapatistas mexicanos aos piqueteros argentinos, da organização sul-africana de shack dwellers Abahlali baseMjondolo aos sem-teto brasileiros, dos ativistas “antiglobalização” (ou melhor: por uma outra globalização) aos fundadores de centros sociais críticos −; e tais movimentos apresentam, em maior ou menor grau, elementos discursivos, organizacionais e estratégicos que remetem, direta ou indiretamente, à multifacetada tradição libertária, e a realimentam.
Quase ao mesmo tempo em que o pensamento e a prática libertários rejuvenescem, e em parte justamente por isso ou em conexão com isso, o desafio representado pelo marxismo − principal rival histórico no âmbito da esquerda revolucionária − também se vem apresentando de maneira renovada. Isso porque os mesmos movimentos (e organizações) acima mencionados muitas vezes permanecem tendo elementos discursivos e teóricos (ou mesmo organizacionais) da herança marxista como uma referência importante. Mas não é só isso. No plano acadêmico, o marxismo continua a ser a abordagem mais influente, e intelectuais marxistas vêm, há um certo tempo, buscando, com maior ou menor astúcia, e com maior ou menor eficiência, dar uma sobrevida ao legado teórico-intelectual de Marx − coisa que, para os libertários, deveria servir como um convite à reflexão sobre si mesmos, sobre suas limitações e sobre suas possibilidades e tarefas.
Na realidade, diversas têm sido as reações dos marxistas a certos eventos-chave do último quarto de século, da implosão do “socialismo real” à crise financeira (ou “mais-que-financeira”) de 2008, passando pela ascensão do (neo)zapatismo e de outros movimentos sociais de espírito libertário - reações essas quase tão diversas quanto diversos são e têm sido os marxismos.
Uma reação extremamente comum, especialmente nos anos 1990, é uma forte melancolia, aliada a uma certa perplexidade pelo fato de um mundo ainda tão desigual parecer geralmente avesso ao receituário marxista-leninista. Um representante ilustre desse “marxismo tristonho”, ainda que muitas vezes lúcido (ou por isso mesmo), é Russell Jacoby, que, em seu livro The End of Utopia, retrata com brilhantismo (e uma boa dose de eurocentrismo) o clima sombrio que se apoderou de grande parte do ambiente marxista remanescente. [1]
Um pouco além da melancolia se situa a postura derrotista, mesmo quando vem embalada de tal forma que passa a impressão de otimismo. O derrotismo e um otimismo equivocado, juntos, são sintomas da insegurança que tem tomado de assalto os corações e as mentes de tantos marxistas − notadamente daqueles mais convencionais, com dificuldades para se desvencilharem das crenças e dos padrões interpretativos influenciados pelo leninismo. Observemos, por exemplo, algumas das opiniões emitidas por David Harvey − o geógrafo mais conhecido internacionalmente e, ao mesmo tempo, um dos marxistas mais respeitados no mundo todo. Sua opinião sobre os governos de esquerda (com ou sem aspas) na América Latina contemporânea (por exemplo, Venezuela e Brasil), bem como sobre a China, foi expressa em um artigo publicado por ele alguns anos atrás:
Embora haja alguns sinais de recuperação tanto da organização trabalhista quanto da política de esquerda (ao contrário da “terceira via” celebrada pelo Novo Trabalhismo na Grã-Bretanha sob Tony Blair, e desastrosamente copiada por muitos partidos social-democratas na Europa), juntamente com os sinais do surgimento de partidos políticos mais radicais em diferentes partes do mundo, a dependência exclusiva sobre uma vanguarda dos trabalhadores está agora sendo questionada, assim como também o está a capacidade dos partidos de esquerda que ganham algum acesso ao poder político em ter um impacto substancial sobre o desenvolvimento do capitalismo e lidar com a conturbada dinâmica de uma acumulação que tende a passar por crises. […] Mas os partidos políticos de esquerda e os sindicatos ainda são importantes, e sua tomada de fatias do poder do Estado, como acontece com o Partido dos Trabalhadores no Brasil ou com o movimento bolivariano na Venezuela, teve um impacto claro sobre o pensamento da esquerda, e não só na América Latina. O complicado problema de como interpretar o papel do Partido Comunista na China, com o seu controle exclusivo sobre o poder político − assim como as questões relativas ao conteúdo de suas políticas futuras − , tampouco é de fácil resolução. [2]
A esse otimismo exagerado, baseado em informações inadequadas e descontextualizadas, bem como em uma chave de interpretação enviesada, reagi com o seguinte comentário, em um artigo publicado, em 2010, no periódico Interface: A Journal for and about Social Movements:
Confundindo aparências com a substância, ele [Harvey] assume que o governo do Brasil, sob Lula, é de esquerda (embora seja, na verdade, um governo populista, com base em uma coalizão de partidos que varia da centro-esquerda à centro-direita, e que é liderado por um ex-partido de esquerda). Mas o que é realmente surpreendente é que, para ele, o problema de como interpretar o papel do Partido Comunista na China seja “complicado”… [3]
E, depois, assim expliquei em uma nota:
A política econômica e social do Brasil, sob Lula, tem sido uma mistura de estatismo e elementos neoliberais, na qual aspectos tais como “responsabilidade fiscal”, a prioridade dada ao agronegócio e a ausência de uma verdadeira reforma agrária são ‘amaciados’ por políticas sociais compensatórias. A propósito, quando Harvey (certamente não muito bem informado, mas sim, na verdade, reproduzindo um viés interpretativo bem estatista) escreveu, em seu artigo anterior sobre o “direito à cidade”, que um novo quadro legal, conquistado “depois de pressão dos movimentos sociais”, foi introduzido como uma ferramenta “para reconhecer o direito coletivo à cidade no Brasil” (Harvey 2008, p. 39), ele está exagerando tanto o alcance desse quadro legal (e até mesmo o papel dos movimentos sociais no processo) quanto contribuindo para a banalização da fórmula do “direito à cidade”. [4]
Como é possível falar de uma “revolução”, nessas circunstâncias (ou mesmo a propósito do caso venezuelano, certamente mais complexo)? Pois foi isso mesmo que Harvey fez, em um capítulo (escrito em co-autoria com David Wachsmuth) publicado em 2012 e intitulado “What is to be done? And who the hell is going to do it?” [5]: “[…] pelo mundo afora, nós não estamos em um momento revolucionário − com as possíveis exceções da América Latina e da China […]” (reproduzirei o trecho completo mais à frente). Quanto ao capitalismo burocrático-autoritário chinês, a simples menção a um “revolutionary moment” é uma afronta não somente contra os libertários, mas também contra o legado de marxistas heterodoxos como Anton Pannekoek e Karl Korsch, entre outros. Contra esse pano de fundo, não é surpresa que Harvey tenha sublinhado, em seu texto de 2009, que “a teoria correvolucionária anteriormente estabelecida sugere que não há nenhuma maneira pela qual uma ordem social anticapitalista possa ser construída sem tomar o poder estatal.” [6] Harvey tinha escrito, algumas páginas antes, que “as falhas dos esforços do passado para construir um socialismo e um comunismo duradouro têm que ser evitadas, e as lições de uma história imensamente complicada devem ser aprendidas.” [7] A conclusão inevitável, de um ponto de vista libertário, é que ele não aprendeu muito as lições oferecidas por essa “história imensamente complicada”…
Quando Harvey escreve que “é improvável que um movimento anticapitalista global venha a emergir desprovido de uma visão que o anime sobre o que deve ser feito e por quê”, esta é uma frase que soa como uma antecipação, e cujo significado torna-se mais claro depois: ele sonha (como os marxistas ortodoxos fazem) com um “sujeito revolucionário privilegiado” e com uma teoria unificadora (ou “visão”), que esclareça o que este “sujeito” tem a fazer (“e por qual razão”). Ele sabe que a classe trabalhadora (ou seja, o proletariado em sentido estrito), com seus sindicatos e partidos políticos (social-democracia e afins), não é mais um “sujeito revolucionário privilegiado” da história. Como marxista, ele deve estar um pouco confuso (e há tantos fenômenos que podem confundir os marxistas hoje em dia, tais como o papel dos camponeses como sendo protagonistas críticos mais relevantes do que os trabalhadores de fábrica, ou ainda o papel crítico-transformador de grandes porções do Lumpenproletariat) […]. [8]
Outro contraste muito evidente entre o tipo de leitura feito por um marxista como David Harvey e aquela tipicamente libertária fica particularmente evidente quando discutimos as questões postas por Harvey no já referido capítulo escrito em co-autoria com David Wachsmuth. Sobre os fundamentos de uma pressuposição essencialmente correta, mas mesmo assim bem simplista de que “nós não estamos vivendo um momento revolucionário pelo mundo afora” (“throughout the world we are not in a revolutionary moment”) (p. 273), e apesar do fato, por ele reconhecido, de que “há, frequentemente, um conflito substancial entre o pensamento keynesiano e o pensamento marxista” (“[t]here is often a substantial conflict between Keynesian thinking and Marxian thinking”) (p. 271), ele conclui que estamos a experienciar um “momento keynesiano” (“Keynesian moment”) nos dias atuais (na conta, por assim dizer, de uma reação realista contra o neoliberalismo), de maneira que seu argumento é o de que, “se nós estamos em um momento keynesiano, então nós precisamos fazer uso dele politicamente” (“if we are in a Keynesian moment then we need to make use of it politically”) (p. 271): “ (…) talvez o melhor que nós possamos fazer, neste instante, é redirecionar esse keynesianismo de uma tal maneira que ele beneficie a massa do povo, em vez de continuar a centralizar o poder capitalista do Estado” (“perhaps the best we can do right now is to redirect that Keynesianism in such a way that it benefits the mass of the people rather than continue to centralize capitalist state power”) (p. 271).
No fundo, é lógico que isso não é o marxismo (ou mesmo Harvey) no seu melhor: isso é, antes, um marxismo fin-de-siècle, fatigado. Mas esse tipo de interpretação revela a visão mais ou menos reformista, pseudopragmaticamente estadocêntrica esposada por tantos marxistas, como uma consequência, entre outras coisas, de uma confiança insuficiente nos movimentos sociais emancipatórios. Nessas condições, não somente o keynesianismo, mas o capitalismo de Estado em suas formas ainda mais completas tende a aparecer como o único bote salva-vidas: “uma vez que, pelo mundo afora, nós não estamos em um momento revolucionário − com as possíveis exceções da América Latina e da China −, nós, atualmente, não temos a opção de rejeitar o keynesianismo. A única opção é indagar que tipo de keynesianismo ele deve ser, e em benefício de quem ele deve ser mobilizado.” [9]
A melancolia, o derrotismo e o pseudopragmatismo reformista não precisam assustar os libertários − que, entretanto, tampouco deveriam reagir muito zombeteiramente e com excessivo ar de triunfo, uma vez que seus próprios problemas “domésticos” não são pequenos. Porém, o fato é que essas não têm sido as únicas reações no interior do campo marxista. Ao mesmo tempo em que alguém da estatura intelectual de Harvey comete tais interpretações, vários marxistas têm, o mais tardar depois da crise de 2008, lançado mão de uma estratégia que eu tenho denominado “atualização profética”. Em grande parte, trata-se de um expediente aceitável e passível de ser bem fundamentado; afinal, uma boa parcela do instrumental analítico marxista continua sendo (ou parece continuar sendo) adequada para proceder à crítica das (ir)responsabilidades e dos processos e condicionamentos impessoais que estiveram e estão por trás da atual crise (o próprio Harvey, aliás, deu uma contribuição ponderável para debater as causas de mais essa crise). Marxistas têm aproveitado o momento presente para relançar e, vez por outra, aprimorar seu arsenal. Ou, como no caso do último livro de Eric Hobsbawm, também se vê, ainda por cima, o colapso do “socialismo real” ser usado como pretexto para repetir, atualizadamente, uma velha arenga típica do “marxismo ocidental”, segundo a qual Marx e as aberrações dos antigos “países socialistas” seriam coisas totalmente diferentes; de acordo com Hobsbawm, “[…] o fim do marxismo oficial da União Soviética liberou Marx da identificação pública com o leninismo na teoria e com os regimes leninistas na prática” (“the end of the official Marxism of the USSR liberated Marx from public identification with Leninism in theory and with the Leninist regimes in practice”). [10] O problema, aqui, é que, para os marxistas mais heterodoxos, essa estratégia pode atrasar um processo de superação de certas mazelas, entre elas o economicismo; e, indiretamente, os próprios libertários, que muita dificuldade tiveram para desenvolver alguma leitura própria da problemática econômica do capitalismo que não fosse simplesmente tributária do materialismo histórico (a meu juízo, o primeiro a conseguir isso de modo profundo, ao menos em parte, foi Cornelius Castoriadis), podem também acabar, curiosamente, avançando menos do que deveriam no tocante ao esforço de inovar teórico-conceitualmente.
Muito mais perigosa para os libertários, entretanto, é outra estratégia à qual alguns marxistas têm também recorrido, e com significativo êxito de público; uma estratégia que chamei de “mimetismo”. O “mimetismo” não deixa de ser uma “vampirização” do pensamento libertário. Tais marxistas põem-se a falar de “autogestão”, “horizontalidade” etc. como se esses princípios e ideias fossem algo que desde o princípio e sempre tivesse pertencido à tradição marxista. Ora, é bem verdade que trocas e influências recíprocas ocorreram com muita frequência entre marxistas e libertários, e isso já desde o século XIX, a despeito da rivalidade e das diferenças importantes entre esses dois campos da esquerda revolucionária. Com mais frequência, inclusive, do que os dois lados se dispõem, geralmente, a admitir… No entanto, se há algo que é característico do pensamento e da práxis libertários − e, por outro lado, nunca foi típico do marxismo −, é, exatamente, a ideia de “autogestão” (e ideias correlatas), e já muito antes de essa palavra se popularizar nos anos 1960. Certo, o próprio Marx teve os seus “momentos libertários”, como o belo ensaio A guerra civil na França, sobre a Comuna de Paris, publicado ainda em 1871; mas esses momentos foram exceções no conjunto de seu pensamento e de sua prática organizativa, ao passo que a leitura tipicamente autoritária da “ditadura do proletariado” e do “Estado socialista” como momentos de transição (sem atentar para a brutal contradição entre esses meios e o fim, que era, a exemplo dos libertários, a dissolução do Estado e a construção do comunismo) foi, ela sim, típica. E, sem dúvida, também é possível lembrar exemplos de tentativas de marxistas sensíveis e corretos, como Anton Pannekoek (talvez o mais consequente dentre os “conselhistas”), de criticar radicalmente o leninismo, buscando resgatar, de Marx, seu veio menos autoritário; entretanto, não têm sido os próprios marxistas os primeiros a marginalizarem os “conselhistas”, como, mais uma vez, o demonstra Eric Hobsbawm com seu próprio exemplo, em seu livro How to Change the World?… [11]
É preciso, assim, que os libertários se acautelem perante a estratégia de “mimetismo”, como exemplificada por um John Holloway (autor de um livro intitulado Cambiar el mundo sin tomar el poder, que subitamente catapultou seu autor para uma imerecida fama e no qual, interessantemente, não se cita o anarquismo!) [12] ou por Antonio Negri (que, em suas reflexões sobre o “poder constituinte”, retoma e simplifica a discussão seminal sobre a sociedade e o poder instituintes, de Cornelius Castoriadis, mas sem dar o devido crédito ao filósofo greco-francês). [13] Se casos como os de Harvey causam uma certa perplexidade e, talvez, até alguma consternação, as situações de “mimetismo” convidam os libertários a exigir que se reconheçam as autorias e as dívidas. Ocorre, contudo, que os libertários só poderão apresentar essa exigência, com a devida competência, se conhecerem bem a sua própria história e suas referências − coisa que, infelizmente, muitas vezes não acontece. [14]
Para onde vamos?
A pergunta do título desta segunda e última seção (que serve, também, de arremate para esta série de dois artigos) pode ser desdobrada em duas, diferentes e complementares: para onde queremos ir? Até onde podemos ir? Não sabemos, exatamente − como é óbvio − , até onde podemos ir, se bem que possamos e devamos construir cenários e especular sobre as possibilidades oferecidas pela atual conjuntura mundial. No entanto, vale a pena começar com a outra questão, não menos espinhosa, a propósito das intenções e dos projetos. Espinhosa não apenas devido à dificuldade de se encontrar respostas nítidas, em meio à nossa era de perplexidade (e mesmo confusão) e hibridismos político-teóricos de toda sorte, mas, também porque, muitas vezes, parece que nem sequer as perguntas certas são sempre formuladas e enfrentadas.
“Revolução molecular” (Félix Guattari, na década de 1970 [15]), “guerra civil molecular” (Hans-Magnus Enzensberger, no início da década de 1990 [16])… Parece que o uso do adjetivo “molecular” busca, no caso dessas duas criativas ideias, propostas por dois autores de estilos diferentes (ambos de esquerda), capturar algumas das características centrais do nosso tempo: a velocidade (objeto de reflexões de outro pensador, Virilio); a valorização do quotidiano e do “micro” como arenas de luta e, com isso, como parte de uma agenda política; a dificuldade em distinguir “grandes linhas” (de análise ou de ação) em meio a uma atmosfera pouco cartesiana, de poucas certezas e muitas incertezas, em que o “preto no branco” dá lugar aos infinitos tons de cinza (uma circunstância lamentada pelos ortodoxos, que nem a compreendem nem fornecem novas alternativas, e celebrada pelos “pós-modernos”, que pensam compreendê-la e, no entanto, descambam para o relativismo que tende ao imobilismo). Nessa ambiência fuzzy, os movimentos são convidados (ou impelidos) a fazerem o que a palavra sugere: movimentar-se, e constantemente. Porque parar significa ser um alvo fácil para o sistema: ou para ser abatido, ou para ser amansado/domesticado (o que, política e moralmente, dá no mesmo, ou é ainda pior). Darão conta os movimentos de se reinventar regularmente, em um ritmo historicamente quase frenético (reinventar linguagens, táticas, estratégias, estéticas), sem que um cansaço fenomenal se aposse dos ativistas? (Qual será a linha divisória entre lamber as feridas e aprender com as derrotas, como tem acontecido, e aderir ao cinismo e ao conformismo, como igualmente tem ocorrido?) Como combinar o uso dos espaços públicos (e outras possibilidades em situações de copresença) com o emprego das modernas tecnologias de comunicação e informação? (E quais os riscos que essas tecnologias trazem, e como evitá-los ou reduzi-los?)
Para finalizar, algumas questões adicionais que, provavelmente, soarão incômodas e mesmo heréticas para aqueles que só se sentem confortáveis em um ambiente sectário:
1) Em seu Marx crítico de Marx, em três volumes, João Bernardo demonstrou, à saciedade, que não há apenas um Marx, mas sim, pelo menos, dois: um, escravo de um determinismo econômico-tecnológico (o “Marx das forças produtivas”); outro, verdadeiramente aberto à dinâmica da luta de classes como motor da história (o “Marx das relações sociais de produção”). Para ele, por isso, as discussões dogmáticas em torno da “fidelidade” a Marx sempre tiveram pouco sentido, pois o que cabe é escolher a qual Marx os marxistas optariam por ser (in)fiéis. [17] Cornelius Castoriadis foi ainda mais longe: também argumentou extensamente, e de modo documentado, sobre as contradições de Marx, mas apontou, a meu ver com razão, que, ao longo de sua própria vida e obra, e também por suas implicações práticas, um Marx cristalinamente predominou − justamente, o economicista e autoritário. [18] Mesmo dando razão a Castoriadis (em última instância), indago: se aceitarmos que Marx teve, pelo menos, uma veia (sufocada) compatível com o pensamento libertário, seria tão absurdo, assim, imaginar que libertários e marxistas heterodoxos (os “conselhistas” clássicos, por exemplo, mas também intelectuais da estirpe de um Edward P. Thompson, de um Henri Lefebvre, de um Herbert Marcuse, de um Raymond Williams, de um João Bernardo) podem e devem, pelo menos, ser vistos como interlocutores uns dos outros e, na presente conjuntura histórica, quiçá também como parceiros em várias tarefas?
2) Qual é o sentido de se ignorar marxistas “conselhistas” como Pannekoek e Korsch e, ao mesmo tempo, dedicar tanto espaço a um ultraliberal extremamente individualista como Max Stirner − como fizeram e fazem tantos anarquistas e historiadores do anarquismo? Não estou a sugerir que Pannekoek e Korsch sejam, sem mais, etiquetados como “libertários”; apenas desejo chamar a atenção para uma certa incongruência no comportamento e na avaliação de determinados analistas e ativistas. Mesmo que ambos não sejam incluídos na “nebulosa libertária”, devido às suas ambiguidades no que se refere a certos aspectos problemáticos do legado de Marx (o papel do Estado, o economicismo etc.), não seria o caso de admitir que Pannekoek e Korsch merecem, pelo menos, um tratamento especial, por sua proximidade para com aquilo que o pensamento libertário sempre teve de melhor, em seus melhores momentos − a saber, o equilíbrio na valorização da autonomia individual e da autonomia coletiva? (Para ser franco, a inclusão de Stirner no campo anarquista, por autores como George Woodcock e Peter Marshall, sempre me pareceu artificial e forçada, e não creio que engrandeça em nada a história do pensamento e da práxis libertários. Stirner pode, isso sim, ser muito bem tido como um ancestral dos right-libertarians, de Ayn Rand e de personagens assemelhados − mas jamais daquilo que Bookchin batizou de “social anarchism”, e tampouco do autonomismo de Castoriadis, e assim sucessivamente.)
3) Não se faz necessária uma maior autocrítica por parte dos libertários, no que se refere à sua dependência em relação à Economia Política marxista? Castoriadis foi, se não o primeiro, seguramente o principal estudioso libertário a desafiar o legado marxista de maneira profunda naquilo que ele tem de mais característico e duradouro: um certo padrão de análise social e histórica e, em consequência, de interpretação e crítica do capitalismo. Contudo, a empreitada de Castoriadis permaneceu incompleta, além de ter sido marcada por um ou outro exagero retórico (com implicações pedagógicas potencialmente funestas, por poder induzir maus leitores a substituir o economicismo pela negligência para com a análise econômica), no afã de distanciar-se do marxismo − a despeito de, no geral, saltarem aos olhos a genialidade, o rigor e a erudição enciclopédica do filósofo greco-francês. O fato, de todo modo, é que Castoriadis tem razão no essencial, e isso parece ser descuidado por aqueles que acham que investir na reflexão filosófica e teórico-conceitual é perda de tempo (ou coisa pior).
4) Em que pesem as diferenças objetivas entre libertários e marxistas (que foram um pouco minimizadas por Daniel Guérin), o fato é que desentendimentos e disputas pessoais, como o ressentimento de Marx contra Proudhon e a rivalidade entre Marx e Bakunin, serviram para aprofundar o fosso e, mais que isso, ajudar a criar, para a posteridade, um clima de guerra permanente. Na conjuntura atual, em que proliferam os hibridismos e, ao mesmo tempo, os oportunismos, não seria o caso de os libertários terem como prioridades, ao mesmo tempo e sem contradição entre uma coisa e outra, procurar estabelecer um diálogo com os marxistas heterodoxos e exigir que se dê o devido crédito às suas realizações? (Desde que sejam tratados com respeito e honestidade, o que teriam libertários política e intelectualmente preparados e saudavelmente autoconfiantes a perder com isso?)
5) Ainda mais importante que estabelecer uma relação mais inteligente com o heterogêneo campo marxista remanescente (uma relação em que cabe abertura para o diálogo e, em no caso de algumas vertentes, até mesmo cooperação, sem abdicar da prudência e do senso de valorização da própria identidade), não seria fundamental repensar a maneira de encarar a herança do anarquismo clássico? Essa herança está no cerne da identidade libertária, historicamente falando. Por mais que o anarquismo clássico possa ter muitos de seus componentes específicos, nesta segunda década do século XXI, como passíveis de serem vistos como anacrônicos ou insuficientes, o fato é que o anarquismo foi, por excelência, a expressão do pensamento libertário que esteve, por gerações, associada a uma práxis em grande escala (de sua influência na Primeira Internacional e na Comuna de Paris até a Ucrânia de Makhno e as coletivizações durante a Guerra Civil Espanhola). As obras de Bookchin e de Castoriadis, por mais relevantes que sejam em sua renovação da tradição, não produziram, até hoje, nenhum efeito prático-político comparável às idéias de Bakunin e Kropotkin. Ao mesmo tempo, porém, cumpre constatar que, se não for superado (“dialeticamente”: isto é, ultrapassado construtivamente, jamais negada de modo simplista) e radicalmente atualizado (que é o que buscaram e buscam as vertentes do neoanarquismo e do autonomismo), o legado clássico, por si só, tenderá, comumente, a permanecer restrito a pequenos grupos de afinidade, ou a diluir-se de modo pouco perceptível na práxis de movimentos sociais híbridos, com isso facilitando as “vampirizações” discutidas páginas atrás. Por isso, cabe indagar: não se impõe, simultaneamente, uma necessidade tanto de precaver-se contra os excessos de crítica ou distanciamento por parte de certos libertários da segunda metade do século XX em relação ao legado clássico (decorrência de uma certa ranzinzice e de uma certa mágoa, no caso do Bookchin do final da vida, e de uma certa má-vontade temperada por ignorância, no caso de Castoriadis), quanto − e sobretudo − de levar a sério as objeções levantadas e as alternativas edificadas, precisamente, sobretudo por Bookchin e Castoriadis? Sem pagar o justo tributo ao anarquismo clássico (o que nada tem a ver com reverência acrítica!), o neoanarquismo e o autonomismo deixam de inscrever-se em uma tradição rica, honrada e densa de memória de lutas; por outro lado, sem sofrer uma considerável recontextualização, o legado clássico perde muito, e cada vez mais, de sua importância potencial para o futuro, sem falar na possibilidade de colaborar para dar lugar a esforços de reflexão teórica realmente inovadores. O autonomismo é, no mínimo, um herdeiro moral do anarquismo, [19] e o neoanarquismo, como a simples anteposição de um prefixo já sugere, deve ser visto até como bem mais que isso. O campo libertário se acha diante de desafios sérios e inescapáveis, isso é certo; da maneira como esses desafios forem enfrentados se definirá, nos próximos anos, se vitórias (ainda que modestas) serão acumuladas ou se, desgraçadamente, pouco mais restará do que voltar a lamber as feridas. E, na pior das hipóteses, ainda por cima teimando em pouco aprender com as derrotas.
Notas
[1] Russell Jacoby, The End of Utopia: Politics and Culture in an Age of Apathy. Nova Iorque: Basic Books, 2000.
[2] Vide David Harvey, “Organizing for the Anti-Capitalist Transition”, disponível na Internet em 16/01/2010 :  (originalmente publicado em 2009), páginas não numeradas. No original: “While there are some signs of recovery of both labor organizing and left politics (as opposed to the ‘third way’ celebrated by New Labor in Britain under Tony Blair and disastrously copied by many social democratic parties in Europe) along with signs of the emergence of more radical political parties in different parts of the world, the exclusive reliance upon a vanguard of workers is now in question as is the ability of those leftist parties that gain some access to political power to have a substantive impact upon the development of capitalism and to cope with the troubled dynamics of crisis-prone accumulation. […] But left political parties and labor unions are significant still, and their takeover of aspects of state power, as with the Workers’ Party in Brazil or the Bolivarian movement in Venezuela, has had a clear impact on left thinking, not only in Latin America. The complicated problem of how to interpret the role of the Communist Party in China, with its exclusive control over political power, and what its future policies might be about is not easily resolved either.”
[3] Vide Marcelo Lopes de Souza, “Which right to which city? In defence of political-strategic clarity”. Interface: A Journal for and about Social Movements, 2(1), 2010, pp. 315-333; disponível na Internet em 27/05/2010, p. 325. No original: “Mistaking appearances for substance, he [Harvey] assumes that Brazil’s government under Lula is a left-wing one (while it is in truth a populist government, based on a coalition of parties which ranges from centre-left to centre-right and which is led by a former left-wing party). But what is particularly astonishing is that for him the problem of how to interpret the role of the Communist Party in China is a ‘complicated’ one…”
[4] Ibidem, p. 325, nota 6. No original: “Brazil’s economic and social policy under Lula has been a mixture of statism and neoliberal elements, in which features such as ‘fiscal responsibility,’ the priority given to agribusiness and the absence of a true land reform are ‘tempered’ by compensatory social policies. By the way, when Harvey (surely not very well informed, but actually reproducing a statist interpretive bias as well) writes in his earlier paper on the ‘right to the city’ that a new legal framework, conquered ‘after pressure from social movements,’ was introduced as a tool ‘to recognize the collective right to the city’ in Brazil (Harvey 2008, 39), he is both exaggerating the reach of this legal framework (and even the role of the social movements in the process) and contributing to a trivialisation of the ‘right to the city’-slogan.”
[5] Vide “What is to be done? And who the hell is going to do it?”, in: Neil Brenner, Peter Marcuse e Margit Mayer (orgs.).Cities for People, not for Profit. Critical Urban Theory and the Right to the City. Routledge, Londres e Nova Iorque, 2012.
[6] Vide David Harvey, “Organizing for the Anti-Capitalist Transition”, op. cit., páginas não numeradas; grifo meu. No original: “[…] co-revolutionary theory earlier laid out would suggest that there is no way that an anti-capitalist social order can be constructed without seizing state power.”
[7] Vide ibidem, páginas não numeradas. No original: “[t]he failings of past endeavors to build a lasting socialism and communism have to be avoided and lessons from that immensely complicated history must be learned.”
[8] Vide Marcelo Lopes de Souza, op. cit., p. 325. No original: “When Harvey writes that ‘a global anti-capitalist movement is unlikely to emerge without some animating vision of what is to be done and why,’ this is a sentence which sounds like a foretaste and the meaning of which becomes later clear: He dreams (as orthodox Marxists do) of a ‘privileged revolutionary subject’ and of a unifying theory (or ‘vision’) which clarifies what this ‘subject’ has to do (‘and why’). He knows that the working class (Proletariat in a strict sense) with its trade-unions and political parties (social democracy and the like) is no longer a ‘privileged revolutionary subject’ in history. As a Marxist, he must be a little confused (and there are so many phenomena which can confuse Marxists nowadays, such as the role of peasants as much more relevant critical protagonists than factory workers or the critical-transformative role of large portions of the Lumpenproletariat) […].”
[9] Vide “What is to be done? And who the hell is going to do it?”, op. cit., p. 273. No original: “[s]ince throughout the world we are not in a revolutionary moment – with possible exceptions in Latin America and China – we do not currently have the option of rejecting Keynesianism. The only option is to ask what kind of Keynesianism it should be, and to whose benefit should it be mobilized.”
[10] Vide Eric Hobsbawm, How to Change the World: Reflections on Marx and Marxism. New Haven and Londres: Yale University Press, 2011, p. 5.
[11] Ibidem.
[12] Ver John Holloway, Cambiar el mundo sin tomar el poder: El significado de la revolución hoy. Buenos Aires: Ediciones Herramienta (em colaboração com a Benemérita Universidad Autónoma de Puebla), 3.ª edição, 2005 (2002).
[13] Negri, Antonio (2002 [1992]): O poder constituinte. Ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
[14] Um dos vários exemplos recentes é a coletânea supostamente organizada e animada por intelectuais de corte libertário, Antonis Vradis e Dimitris Dalakoglou, Revolt and Crisis in Greece. Oakland e outros lugares: AK Press e Occupied London, 2011, onde quase não se cita nenhum autor libertário (sejam os anarquistas clássicos ou, mesmo, o autonomista grego Cornelius Castoriadis!), ao passo que autores neomarxistas da moda, como Henri Lefebvre, Toni Negri e Slavoj Žižek, abundam nas referências bibliográficas.
[15] Ver o livro Revolução molecular: Pulsações políticas do desejo, publicado no Brasil (em São Paulo, pela Brasiliense) em 1987 e, na França, em 1977.
[16] Refiro-me, aqui, ao livro Aussichten auf den Bürgerkrieg (traduzido, no Brasil, sob o título Guerra Civil, pela Companhia das Letras), publicado na Alemanha pela Suhrkamp (Frankfurt-sobre-o-Meno), em 1993.
[17] Marx crítico de Marx foi publicado, em 1977, pela editora Afrontamento, da cidade do Porto.
[18] Ver, de Castoriadis, entre vários outros textos: L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil, 1975 (a primeira edição brasileira, publicada pela Paz e Terra, é de 1983); “Introdução: socialismo e sociedade autônoma”, in: Socialismo ou barbárie. O conteúdo do socialismo. São Paulo: Brasiliense, 1983 (1979); “A questão da história do movimento operário”, in: A experiência do movimento operário. São Paulo: Brasiliense, 1985 (1973); “Pourquoi je ne suis plus marxiste”, in: Une société à la dérive. Entretiens et débats 1974-1997. Paris: Seuil, 2005 (1974) (uma tradução brasileira de Une société à la dérive foi publicada, em 2006, pela editora Ideias & Ideias, de Aparecida [SP]).
[19] Como, diga-se de passagem, venho sustentando desde a segunda metade dos anos 1980 (por exemplo, em minha dissertação de mestrado, defendida em 1988 na Universidade Federal do Rio de Janeiro e intitulada O que pode o ativismo de bairro? Reflexão sobre as limitações e potencialidades do ativismo de bairro à luz de um pensamento autonomista. Um arquivo PDF se acha disponibilizado nesta página).

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