Água: as mineradoras têm (muita) sede
Como grandes empresas estão desviando recursos hídricos
para minerodutos – sem que a sociedade saiba que são e a quem servem
Os minerodutos, tubulações usadas para o transporte rápido e
barato de minérios a longas distânci
as, estão se multiplicando em Minas Gerais. A Samarco que já possui dois minerodutos ativos, que ligam Germano, em Mariana (MG) a Ubu, em Anchieta (ES), projeta construir mais três, ligando Minas Gerais ao litoral.
as, estão se multiplicando em Minas Gerais. A Samarco que já possui dois minerodutos ativos, que ligam Germano, em Mariana (MG) a Ubu, em Anchieta (ES), projeta construir mais três, ligando Minas Gerais ao litoral.
O sistema dutoviário de transporte opera com um líquido e
nos casos citados é a água. Assim, uma discussão imperativa na implementação
destas vias de transporte, e que não está recebendo a atenção necessária, é o
problema dos possíveis danos ao abastecimento doméstico e o impacto no
ecossistema provocados pela drenagem excessiva de água por essas mineradores
para abastecer o sistema de dutos. A fim de demonstrar a gravidade dos efeitos
a curto e longo prazo, causados pelo transporte de recursos hídricos, passa-se
a descrever a desolação do vale do Rio Owens, no estado americano da
Califórnia, provocada pelo bombeamento exorbitante pela prefeitura de Los
Angeles para abastecer a cidade.
A Devastação do Vale Owens
Los Angeles é hoje, com 3,8 milhões de habitantes, a segunda
cidade mais populosa dos Estados Unidos, ficando atrás apenas de Nova York.
Desde o início do século XX, tem sofrido um intenso processo de crescimento
demográfico: em 1900, a sua população se resumia a 100 mil habitantes. Esse
influxo migratório tornou-se um desafio para seus dirigentes políticos, que
logo perceberam que a única fonte de água da cidade, o Rio Los Angeles, não
seria suficiente.
Diante desse prognóstico o prefeito Fred Eaton e seu
engenheiro-chefe, William Mulholland, construíram e inauguraram (em 1913) um
aqueduto ligando Los Angeles ao vale do Rio Owens, a fonte de água mais próxima
da cidade, localizado a 386 quilômetros a nordeste. As águas do Rio Owens
advinham do constante e anual degelo da Serra Nevada, de forma que dispunha de
mais de 4,5 bilhões de metros cúbicos de água, quantidade igual a do lago da
Represa Hoover, maior reservatório artificial dos Estados Unidos e o
equivalente a 15,5% do volume de água armazenada no lago da Usina de Itaipu, no
Brasil. Essa fartura de recursos hídricos e a construção de um sistema de
canais de irrigação permitiram o desenvolvimento da agricultura no vale, que
passou a ser conhecido nacionalmente como Suíça da Califórnia.
5/11/1913: Quarenta mil pessoas enfileiram-se às margens do
Aqueduto de Los Angeles, para acompanhar sua inauguração (Foto: Los Angeles
Times)
Para conseguir abastecer Los Angeles, cuja população
continuava a crescer e irrigar as terras localizadas em seu entorno, a
prefeitura começou a tomar medidas questionáveis. Para garantir o aumento do
volume de água no aqueduto, comprou fazendas no vale e companhias que operavam
os canais de irrigação. Além de drenar a água superficial, a prefeitura
instalou um conjunto de bombas, a fim de extrair as reservas hídricas
subterrâneas, o que acarretou em um drástico rebaixamento do nível do lençol
freático do vale e forçou os fazendeiros a vender suas terras a preços
irrisórios e abandonar a região. Os agricultores que resistiam a pressão
construíam, por conta própria, diques e represas em riachos do vale, mas
agentes de Los Angeles disfarçados dinamitavam as construções.
Setores da população do vale responderam com fundamentalismo
ao assédio da prefeitura. Em 1923, células da Ku Klux Klan surgiram na região e
faziam visitas noturnas nas residências de moradores locais que desistiam de
lutar contra a Prefeitura, a fim de coagi-los a não cooperar. Finalmente, o
extremismo alcançou o ápice em 21 de maio de 1924, quando quarenta homens
implantaram três caixas de dinamites no aqueduto e o explodiram. Outros
atentados ocorreram entre 1925 e 1927, interrompendo o abastecimento da cidade.
Em represália aos ataques, a prefeitura enviou ao vale homens armados com
autorização para atirar em qualquer um que se aproximasse do aqueduto.
Em resposta a novos ataques, a prefeitura decidiu, então,
agir por outra frente: a financeira. Sabendo que somente bancos locais estavam
financiando as atividades econômicas no vale, Los Angeles denunciou-os por
certas irregularidades fiscais. Três dias depois, os bancos foram fechados e
seus proprietários, os Irmãos Watterson, principais líderes da resistência
não-armada no vale, foram julgados e condenados por peculato. Depois desse
evento, a resistência no vale desmoronou e as terras foram vendidas à
prefeitura. Desta forma, já em maio de 1933, Los Angeles controlava 95% das
terras e 85% das propriedades nas cidades no Vale Owens. Com essas medidas,
houve um intenso decrescimento populacional na região. Sua base econômica
mudou, a força, para turismo e atividades de baixo consumo de água, como
pecuária extensiva.
A crise do Vale Owens, conhecida como Guerras Californianas
por Água ou simplesmente Guerra Civil Californiana, tornou-se um evento
marcante na história dos Estados Unidos. Desde então, a implementação de
projetos hídricos é feita sob a ressalva de evitar a repetição desse lamentável
episódio.
Sistema hídrico, sociedade e paisagem
A crise do Vale Owens, nos Estados Unidos, deve ver lida
como um momento exemplar de disputa pela água e pela vida. No Brasil e
principalmente em Minas Gerais, a expansão de minerodutos deve ser avaliada de
vários ângulos. Apesar de serem uma forma barata de transporte, eles consumem
grandes quantidades de água e operam uma intervenção irreversível na cultura e
na paisagem local. Cabe às autoridades ponderar sobre a aplicabilidade dos
recursos hídricos do Estado, a fim de não prejudicar o uso doméstico, a
irrigação que alimenta a agricultura e desertificar a paisagem.
O processo de privatização promovido pelos governos
estaduais tucanos de São Paulo e Minas Gerais, respectivamente na Sabesp e na
Copasa, interfere de forma radical a produção da água para consumo. Essas
empresas, em seu “choque de gestão”, irão se pautar pela ritmo da bolsa de Nova
York… o que implica transferir o capital da empresa para o exterior. Essa
mudança na produz impactos violentos sobre as companhias, que deixam de ter por
alvo o provimento de um serviço fundamental à vida e passam a visar a
especulação financeira.
Em um momento que deveria ser de amplo debate nacional sobre
o Código de Mineração, assistimos, dentro de um cenário de seca sem precedentes
no Sudeste brasileiro, a construção do mineroduto da Anglo American. A
lamentável história do Vale Owens também deve ser vista como um aviso às
comunidades localizadas a jusante dos minerodutos. A crise da Califórnia
demonstra que, num jogo de poderes entre fortes e fracos, o poderio dos
primeiros pode suplantar estes últimos. Caberia ao Estado e à sociedade civil
cuidar para que o poder econômico dominante ou justificativas políticas
desenvolvimentistas não tenham supremacia sobre direitos individuais ou de
comunidades locais.
Os direitos fundamentais, entendidos como sentinelas da
justiça, devem ser aplicados como trunfos contra essas decisões majoritárias.
Tais direitos não podem ser negligenciados ou sacrificados em prol de
interesses econômicos, sendo inadmissível, em nome da conveniência política ou
do que seja, deixar de levar tais direitos a sério, como foi feito no episódio
do Vale Owens, o que resultou em uma escalada de violência sem precedentes e em
intervenção irreversível e drástica na cultura e no ecossistema.
Fonte: http://outraspalavras.net/brasil/agua-as-mineradoras-te-muita-sede/
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