Um adorável marxista: Leandro Konder (1935-2014)
As lutas de classes, especialmente nas conjunturas sociais
tensas e mais crispadas, afetam diretamente os comportamentos das mulheres e
dos homens que estão na linha de frente dos confrontos políticos. Quem deles
participa sabe como é difícil manter a firmeza de princípios e de posições ao
mesmo tempo em que se conservam a serenidade pessoal e o trato urbano – seja
com inimigos, adversários e mesmo companheiros. Sem paixão não há combate
revolucionário pelo socialismo, mas a paixão, tomada em si mesma, não é
qualidade revolucionária: só o é quando dirigida por uma racionalidade
(envolvente de meios e fins) que implica, necessariamente, a mediação da
cortesia e – tomemos a palavra tão desusada hoje – gentileza.
Pois bem: o falecimento de Leandro Konder, cerca de um mês e
meio antes de completar 79 anos, vitimado há mais de uma década por uma enfermidade
cruel (a qual resistiu com inenarrável estoicismo, graças também à dedicação de
Cristina, sua extraordinária companheira), empobrece substantivamente o
marxismo e a esquerda brasileiros: com ele se foi um homem que soube, como
muito poucos, combinar a firmeza de princípios e de posições com a gentileza, a
polidez e a generosidade em todos os níveis das relações humanas. Morreu um
adorável marxista.
Não me cabe, nesta hora triste, deter-me na sua obra – tema
de outras intervenções minhas em oportunidades anteriores[*]. O decurso do
tempo permitirá, estou certo, avaliar a relevância efetiva de suas várias
dezenas de livros e ensaios (e centenas de artigos, numa carreira de escritor
iniciada precocemente no final dos anos 1950) com rigor e justiça. Mas há três
planos da sua atuação sobre os quais o juízo dos contemporâneos parece-me
conclusivamente estabelecido.
O primeiro diz respeito ao seu papel agregador na frente
cultural democrática que se articulou na imediata sequência ao golpe de 1º
de abril de 1964: militante do PCB (ao qual esteve ligado até os inícios da
década de 1980) desde adolescente, Leandro foi protagonista daquela paradoxal
hegemonia (estudada por R. Schwarz em texto antológico de 1969) de que a
esquerda brasileira desfrutou na cultura brasileira entre 1964 e 1968.
O segundo é relativo ao seu desempenho no magistério
universitário, no qual ingressou em 1982; por mais de vinte anos, foi professor
literalmente adorado por estudantes, querido pelos pares e respeitado pelos
adversários.
E o terceiro está vinculado à sua atividade de publicista:
foi notável o seu trabalho como competente tradutor de expressivos autores
marxistas (especialmente de G. Lukács, de cujo pensamento foi um dos
introdutores no Brasil, além de ter vertido ao português textos de Marx e
Engels e ainda, entre muitos, de E. Fischer, R. Garaudy), como informado
divulgador de temas palpitantes da tradição marxista clássica (alienação,
estética) e como didático analista de autores/obras de grande complexidade
(Marx, Hegel, F. Kafka, W. Benjamin, B. Brecht).
Penso mesmo que é precisamente na sua publicística que
Leandro, em uma atividade cuja característica central foi a de um verdadeiro
pedagogo, ocupa um espaço absolutamente indisputado. Como publicista, no trato
dos marxistas, exercitou a divulgação com um espírito aberto, avesso a qualquer
tom dogmático; com os não-marxistas, estabeleceu uma interlocução compreensiva,
despida de preconceitos, não doutrinária. E sempre se expressando numa escrita
cristalina, fresca, bem-humorada, acessível ao comum dos leitores – uma
linguagem para transcender os círculos dos “iniciados”. Neste campo, Leandro
rompeu com um viés de polêmica que falsamente identificava firmeza teórica com
argumentação grosseira e agressiva. Aqui, antes que uma lição, Leandro lega aos
pósteros um exemplo.
Redijo esta brevíssima nota em meio ao desconsolo e à
tristeza. Aqueles que, como eu, ainda na adolescência quando eclodiu o golpe de
1964 e então se voltaram para atividades de natureza político-cultural, todos
tivemos – sem prejuízo de outros intelectuais e pensadores brasileiros de peso
– em Leandro, e em figuras como Carlos Nelson Coutinho (nome tão ligado ao
dele!), Fernando Peixoto e Aloísio Teixeira homens que nos influenciaram decisivamente.
Perdemos os quatro em dois anos.
No meu caso particular, vínculos para além dos políticos e
intelectuais acabaram por me vincular a estes quatro extraordinários
brasileiros. O desconsolo deve-se a que são insubstituíveis num panorama
cultural que reclama imperiosamente protagonistas do seu quilate. E a tristeza
porque, com eles, se foi parte significativa da minha vida – a juventude – ,
aquela em que eles me ajudaram, e muito, a construir o meu (pobre) jeito de
estar no mundo.
__________
* Veja-se, por exemplo, o meu prefácio a L. Konder, Marxismo
e alienação. Contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação. S.
Paulo: Expressão Popular, 2009.
***
José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/
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