quinta-feira, 15 de julho de 2010
Notas sobre o ateísmo!
Meu ateísmo radical: Sagan, Dawkins, Woody
Por Bruno Cava – Nunca acreditei em entidade sobrenatural. Desde as lembranças mais remotas, com cinco ou seis anos, recordo-me de um menino absolutamente cético diante do sobrenatural. O sobrenatural não existe. O menino jamais teve medo de espíritos, demônios, assombrações, monstros, mulas-sem-cabeça. Nunca anteviu um pós-vida: quando o homem morre, é como antes de nascer, um nada. Já intuía que o temor embutido nessas crenças fundamentava a submissão a arautos da verdade, e a renúncia a pensar e experimentar por si mesmo. Criança, tinha orgulho de proclamar-se ateu, menos por autoafirmação do que por uma incompreensão do que levava as pessoas a prostrar-se, humilhadas, diante dos deuses da tribo. Um Deus pessoal, imagem e semelhança do homem, não me convenceu em qualquer instante da vida. Passei incólume por catequismos e proselitismos. Nem a leitura dos livros sagrados nem ninguém conseguiu tirar lasca que fosse do firme ateísmo. Nenhuma situação vivida pôs em dúvida a ausência de fé no transcendente, ausência que traduzo como crença conseqüente na realidade concreta.
Guardo viva a lembrança da vez em que, no recreio da pré-escola, um coleguinha falou em “papai-do-céu”. Agarrei-o pela gola: quem é esse tal “papai-do-céu”? apontou para cima e disse-me que era um pai bondoso e misericordioso, habitante do céu, que tudo vê e tudo pode, a quem se pode pedir proteção e favorecimento, se a pessoa for merecedora. Foi também a primeira vez em que o escárnio ateu me assaltou, e conclui como aquilo era ridículo, como era inacreditável que tantas pessoas mais ou menos inteligentes levassem a sério, e como era necessário insurgir-se contra aquela farsa coletiva, estruturada por sacerdotes e igrejas.
Aos doze anos, inquirido certa ocasião por uma crente sobre a minha escolha religiosa, trocei, mas como se estivesse falando sério, que era o “anticristo”. A atitude do pequeno ateu alternava entre a ironia , quando estava de bom humor, e o escárnio, direto e seco, quando sem paciência. Ria na cara dos crentes e ridicularizava sem freios as igrejas. De zoação, chutava macumbas, cuspia na cruz, rasgava a Bíblia. É que, desde cedo, descobrira que não havia sentido em argumentar, em gastar o latim com fanáticos e iludidos, e que mais eficiente era tentar, pela via do sarcasmo e da paródia, demonstrar o ridículo implicado na fé e na crença num Deus-juiz onisciente e onipotente. Afinal, a provocação deixa mais marcas que a retórica. Podia em ocasião alegre reconhecer um ateu, mas sabia ser inglório tentar “ateizar” um crente. E se podia, num esforço ciclópico, desencaminhar uma ovelha das religiões, não conseguia demovê-la da crença num ser pessoal supremo.
O fato é que o menino era irrequieto com explicações e porquês e, por causa disso, um cético. Mas um cético curioso, preparado para aumentar o seu conhecimento do real, quando defrontado com evidência, lógica e sistema. Na realidade, o ateísmo não foi ponto de partida, mas linha de chegada de certo clima existencial presente desde a infância. O ateísmo resultou do ceticismo, este sim, uma ética completa, um modus vivendi, uma atmosfera existencial. Bom ceticismo não é aquele que cerra a percepção e encastela o mundo conhecido. O bom ceticismo é o prospectivo que, insaciável, faz da dúvida a técnica para investigar e interrogar. A boa dúvida amplia os horizontes da mente e perscruta a vida atrás do desconhecido. Pautado pelo ceticismo, não há risco de o ateísmo enjaular-se em disfarçado dogmatismo, numa descrença igualmente fanática. O ateísmo do cético não se fecha sobre si, não se submete à heteronomia de pastores ou igrejas “atéias”, como sói ocorrer com o religioso nas instituições de fé, verdade e moral.
Naturalmente, ao amadurecer, a civilização foi domando a fera irascível. Ao vestir calças compridas, o pequeno ateu passou a apresentar-se pudicamente como agnóstico. Evitou indispor-se com os asilados na ignorância, por estratégia, já que assumia outras agendas como mais prioritárias do que a militância atéia. Assim, tive em Carl Sagan a maior referência da adolescência, na sua promoção de um saudável, moderado e humanista ceticismo. O Mundo Assombrado pelos Demônios deveria ser leitura recomendada de todas as escolas. Instigado por Sagan, substituí o escárnio anti-social pela construção de um edifício de métodos e explicações, capazes de sustentar o ateísmo em debates mais civilizados. Foi nessa altura que prestei o vestibular, quando minhas redações, bem mais dóceis, incorporavam a sábia tolerância diante da infinita credulidade (ignorância) humana.
Richard Dawkins quase destruiu essa capa cultural. Em seus livros, o autor de Deus, um Delírio (“The God Delusion”, 2006) tem o poder de despertar o menino luciferiano em mim. Com ele, concluo que, ao me vestir agnóstico, não passo de ateu sem personalidade. Dawkins escreve tão bem e com tanta cólera, e eu concordo tanto, mas tanto com ele, que me dá vontade de sair pelas ruas berrando contra a sociedade teísta, de me assumir a criança que nunca deixamos de ser. Ressurge mil vezes vingativo o enfant terrible. Dawkins me faz lembrar como é importante não perder a faculdade de odiar assim como a de amar — faculdades irmãs. É um dos poucos autores que apela ao coração de menino, na sua imprudência e seu excesso, nas suas lágrimas ingênuas e no seu prazer destrutivo. Dawkins quase me faz esquecer o bom-tom e a medida, me torna novamente puro, e uma vez mais converte o agnóstico em ateu praticante. Renasço intacto.
*
Construí o meu sistema-mundo com a leitura paulatina da literatura científica e da filosofia da ciência. Não fiz das ciências um dogma às avessas. Com Karl Popper, nelas encontrei precisamente uma forma não-dogmática de pensamento, cuja essência de suas verdades reside na refutabilidade mesma. Aprendi como o conhecimento científico não somente procede por refutações sucessivas, mas também por saltos qualitativos, por rupturas paradigmáticas, como Thomas Kuhn descreveu em livro clássico. O que se alinhava à minha percepção de um mundo-fluxo, em mutação profunda. O ápice do antidogmatismo e de uma visão aberta do mundo culminou na entusiasmada adesão ao anarquismo metodológico de Paul Feyerabend, radicalmente averso a cânones, metanarrativas e esquematismos.
Atribuo as religiões a dezenas de causas. Politicamente, por servir como peça importante da dominação de classe, exercida com base no temor e na ignorância. Moralmente, por ajudar no controle social/sexual pelo poder constituído contra as minorias políticas, a mulher, o jovem. Culturalmente, ao comodismo do hábito, à preguiça intelectual, ao zelo bovino pelas tradições familiares. Individualmente, à fraqueza de caráter, que anseia por consolo metafísico, diante do sofrimento e da morte; ou então como reação igualmente impotente perante a culpa, a baixa autoestima, o desespero. Esteticamente, à aspiração pela perfeição, pureza e sublime, num amor transcendente. Genealogicamente, como ressentimento dos fracos contra os fortes, como inversão da lógica do bom x ruim (potência), pela do bom x mau (moral), como vingança abstrata contra um mundo insatisfatório. Racionalmente, à ingenuidade de pretender uma explicação totalizante e definitiva, num sistema fechado e reconfortador, capaz de apaziguar a dúvida angustiante que move o homem.
Nessa recusa esclarecida da religião, não fujo da tradição do pensamento anticlerical, ainda que eu também abomine os teísmos e deísmos que os iluministas (traidores), em geral, incorriam. Daquela época, o único ateu lídimo que eu li foi o Marquês de Sade, no seu furioso materialismo. Antes dele, Spinoza: teórico do Deus filosófico, imanente, amoral e impessoal, adotado também por Einstein, que por sinal nada tem do Deus dos monoteísmos.
No século 20, por sua vez, abundam os ateus assumidos entre escritores e intelectuais. Poderia citar mais de cem, mas destaco o mais irônico: Woody Allen. No século 21, o aumento da população atéia contrasta com a onda de fundamentalismos cristãos, islâmicos e sionistas. Estes se espalham como epidemia sobretudo nos Estados Unidos, nos países árabes e em Israel, acuando os seus muitos cidadãos livres e inteligentes. É preciso resistir e é preciso ceticismo.
Fonte: http://www.amalgama.blog.br/
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Um comentário:
Muito bom seu texto...continue assim!
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