sexta-feira, 23 de julho de 2010

O novo crime de Israel indigna, mas não surpreende

O novo crime de Israel indigna, mas não surpreende

Os crimes israelitas sucedem-se e vão ficando impunes. Para lhes pôr fim, cabe aos povos fazerem o que os Estados não conseguem. Por isso muitas organizações palestinianas nos incitam a boicotar os produtos israelitas. É um combate legítimo. Por Domenico Losurdo

O crime perpetrado por Israel em águas internacionais, contra pacifistas empenhados em levar ajuda aos prisioneiros desse imenso campo de concentração em que Gaza se tornou, pode e deve indignar-nos, mas não deve surpreender-nos: há muito tempo que o governo de Telavive teve a sua decisão de atingir pelo terror não apenas as vítimas directas do seu expansionismo colonial, mas inclusivamente quantos ousem exprimir solidariedade com as vítimas e que, de algum modo, entravem a terrível máquina de guerra e de opressão de que os carrascos se servem. A tese segundo a qual os pacifistas estavam armados e por isso mereciam morrer é um corolário de outra segundo a qual era uma obrigação desencadear a operação Shock and Awe [Choque e estupor] contra o Iraque de Saddam Hussein, acusado de possuir armas de destruição massiva! A solidariedade e a cumplicidade de fundo que ligam Israel e os EUA revelam-se também na arte da manipulação, e não é substancialmente prejudicada pela alternância dos diversos locatários da Casa Branca.

Essa manipulação, quando não é abertamente promovida, não é certamente dificultada pela grande imprensa de “informação”. Nos últimos tempos, tanto na Palestina como em certos sectores do Ocidente, tem-se desenvolvido uma nova forma de luta: consiste em boicotar mercadorias produzidas pelos colonos que, em violação flagrante do direito internacional e dos direitos humanos, continuam a expandir-se nos territórios ocupados. Esta forma de luta tipicamente não-violenta que é o boicote bem poderia ser saudada por aqueles que estão sempre a condenar a “violência” da resistência. Todavia foi o inverso que aconteceu. No Corriere della Sera Furio Colombo e alguns outros empenharam-se nos últimos dias em considerar que o boicote às exportações israelitas provenientes dos territórios ilegalmente ocupados seria semelhante às medidas tomadas outrora pela Alemanha nazi contra as lojas pertencentes aos judeus.

Em que ficamos? Como eu lembrei no meu recente livro La non-violenza. Una storia fuori dal mito, os povos oprimidos, e em primeiro lugar os povos colonizados, recorreram constantemente ao boicote. É um instrumento de luta que, para só falar do séc. XX, vemos ser utilizado na China, aquando do protesto organizado pelo movimento do 4 de Maio (1919), contra a pretensão do Japão, encorajada ou tolerada por outras potências imperialistas, de impor o seu protectorado ao grande país asiático. Uma dezena de anos depois, ao boicote dos tecidos segue-se, na Índia, o boicote aos produtos da indústria inglesa. Neste caso, foi o movimento inspirado e dirigido por Ghandi que conduziu a agitação: “Havia regularmente piquetes de mulheres diante das lojas onde se vendiam as roupas produzidas na Grã-Bretanha. Elas seguiam as outras mulheres que saíam das lojas e tentavam persuadi-las a irem devolver as suas compras”. Alguns anos mais tarde, foi a comunidade judaica internacional que sugeriu o boicote às mercadorias alemãs, como resposta à fúria anti-semita de Hitler. É nesta tradição que assenta o movimento que hoje procura atingir mercadorias produzidas unicamente graças a um expansionismo colonial desumano nos territórios palestinianos ocupados.

Claro que, desde a sua origem, o regime nazi tratou de estrangular a actividade comercial e industrial dos judeus alemães, e de os privar das suas propriedades legítimas. Mas tudo isso nada tem a ver com o boicote (instrumento tradicional dos povos oprimidos), outrossim com o uso terrorista do poder político. Se quisermos uma analogia, refiram-se então as medidas que hoje atingem os palestinianos, a quem foram expropriadas as suas casas, as suas terras, os seus olivais, e cada vez mais impossibilitados de terem uma vida humana digna desse nome.

A condenação, ou mesmo criminalização, que o poder e a ideologia dominantes exercem sobre a luta não-violenta contra o colonialismo sionista, é a confirmação, mal-grado alguns momentos de embaraço e de aparente distanciamento, da vontade de Washington e de Bruxelas de deixarem impunes os crimes de Israel, mesmo os cometidos em águas internacionais, e, pelo contrário, de em todo o caso condenarem qualquer forma de resistência do povo palestiniano.

No lado oposto, é uma obrigação moral de qualquer democrata, anticolonialista e antifascista solidarizar-se com a resistência palestiniana (e árabe e muçulmana) contra o imperialismo e contra o colonialismo. Cabe à resistência palestiniana decidir e escolher as formas de luta.

Domenico Losurdo é professor de História da Filosofia na Universidade de Urbin (Itália). Dirige desde 1988 a Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für dialektisches Denken, e é membro fundador da Associazione Marx XXIesimo secolo. Última obra traduzida em francês: Nietzsche philosophe réactionnaire: Pour une biographie politique.
Fonte: http://passapalavra.info/

Nenhum comentário: