África do Sul: a degenerescência do ANC - Por Richard Pithouse
O ANC, partido que liderou todo o processo de libertação nacional, tornou-se, ao fim destes anos de poder, um perigo evidente para a integridade da sociedade sul-africana. Em vez de um projecto político colectivo de transformação da sociedade, é hoje um instrumento de “progresso pessoal” de uma elite, com o consequente agravamento das desigualdades. Por Richard Pithouse [*]
A degenerescência do African National Congress [Congresso Nacional Africano, ANC] [1] chegou a um ponto tal que, hoje, ele representa um perigo para a integridade da sociedade. Julius Malema [2] é um dos exemplos mais ilustrativos da maneira como um movimento empenhado na libertação nacional se tornou, nas palavras de Franz Fanon, «um instrumento de progresso pessoal». Mas Malema não é o único. O Communication Workers Union (sindicato das comunicações) tem toda a razão quando diagnostica um “Keeble-ismo profundamente enraizado” dentro do ANC [em referência a Brett Keeble, um homem de negócios sul-africano de reputação demoníaca, NDT].
Há pouco tempo soube-se que Nonkululeko Mhlongo, mãe de dois filhos de Jacob Zuma [3], dispõe de contratos de vários milhões de rands [a moeda nacional sul-africana, NDT] para o abastecimento do KwaZulu Natal. A mulher e a filha de Zweli Mkhise ganharam uma licitação de 3 milhões de rands do Departamento dos Serviços Correccionais. Este tipo de coisas acontece desde há anos e não se pode atribuir a alguns indivíduos problemáticos. Ao contrário, em casos como o do negócio de armas e o jogo duplo de Valli Moussa entre o Eskom [a companhia eléctrica nacional da África do Sul, NDT] e o Comité de Angariação de Fundos do ANC, era a organização no seu todo que estava profundamente comprometida. Esta também se compreteu colectivamente por se recusar sempre a tomar uma posição clara contra os indivíduos envolvidos em práticas duvidosas.
Pode ser verdade que o peixe começa a apodrecer pela cabeça, mas é essencial compreender que a degenerescência do ANC não resulta apenas do aumento do poder de uma elite predadora dentro do partido. Houve um tempo em que se acreditou que o poder era um projecto político colectivo que iria transformar a sociedade de baixo para cima. Agora percebe-se, em todos os níveis do partido, que ele é um meio para a incorporação pessoal numa determinada minoria que se aproveita das crescentes desigualdades da sociedade. De certo modo, este processo, mesmo que conduzindo a uma desracialização da hegemonia, não deixa muito espaço para a esperança numa sociedade melhor, se a isso limitarmos as nossas aspirações.
O ANC abandonou a linguagem da justiça social em favor da ilusão de uma linguagem pós-política de “distribuição”. Essa linguagem considera que o Estado só está obrigado a satisfazer as necessidades mais básicas da sobrevivência e que se trata de uma simples questão de eficiência técnica. O problema com a linguagem da distribuição é que a distribuição é as mais das vezes, em si mesma, uma estratégia de contenção das aspirações populares, mais do que uma estratégia para se atingir a prosperidade humana universal. Atirar com as pessoas para ”oportunidades de habitação” em guettos periféricos onde pouco mais há a esperar do que alguma assistência para as crianças ou a possibilidade de um emprego precário, contribuindo para evitar que as pessoas se manifestem na rua, promove o desenvolvimento no sentido mais preverso do termo.
O segundo problema é que a ilusão de que o desenvolvimento, sendo uma questão pós-política de o governo trabalhar mais depressa, mais afincadamente e mais inteligentemente, não leva em linha de conta as realidades políticas profundas que enformam qualquer projecto de desenvolvimento. Há que tomar decisões políticas sobre questões como a de saber se, sim ou não, o valor social dos terrenos e dos serviços deve prevalecer sobre o seu valor comercial. Quando essas questões não são politicamente consideradas, o “fornecimento de serviços” só podem ser canalizados para as margens da sociedade, com o resultado de se tornarem um processo de efectiva marginalização.
Mas a natureza política inevitável do desenvolvimento não diz respeito apenas à competição entre os interesses dos pobres de um lado e, do outro, o poder dos ricos e das empresas. Há também um jogo político entre as pessoas que estão no terreno e as elites locais do partido. É frequente ver os funcionários locais tentando, de boa fé, seguir as directivas dos dirigentes políticos, mas verem os seus esforços para implementar um desenvolvimento tecnocrático desviados pelas elites locais do partido para seu próprio proveito. Nem sempre se trata de simples pilhagem. Muitas vezes, a atribuição de uma casa e de serviços, como todos os contratos envolvidos nesse processo, é submetida aos sistemas de clientelismo e de apadrinhamento com os quais, frequentemente, o ANC consolida o apoio político ao partido ao nível local. Em muitos casos, os projectos de desenvolvimento, justificados em nome da satisfação das necessidades do povo, tornam-se projectos basicamente orientados para a consolidação de alianças nas micro-estruturas locais do partido. Os diferentes comités, incluindo o comité executivo do ramo local, estão povoados por uma multidão de mini-Malemas.
Segundo a análise de Franz Fanon, é inevitável haver um autoritarismo subjacente que acompanha a degeneração de um partido num “instrumento de progresso pessoal”. Escreve ele que o partido «ajuda o governo a subjugar o povo. Torna-se cada vez mais claramente antidemocrático, uma ferramenta de coerção». Um partido que diz, e que tem de continuar a dizer, que aquilo que faz é para o povo mas que, de facto, se tornou um instrumento de progresso pessoal graças às cumplicidades de dominação, terá inevitavelmente de sossobrar na paranóia e no autoritarismo, ao tentar resolver a quadratura do círculo, pretendendo, para si próprio e para toda a gente, que o enriquecimento privado é de certo modo o verdadeiro fruto da libertação nacional.
Na África do Sul contemporânea, não é nada inabitual encontrar pessoas que vivem no temor dos conselheiros locais e dos seus comités executivos. De facto, não é exagêro afirmar que nós desenvolvemos um sistema político a dois terços, com direitos políticos liberais para as classes médias e restrições cada vez mais severas aos direitos políticos básicos dos pobres.
Os movimentos políticos dos pobres têm sido, desde há muito tempo, objecto de uma repressão ilegal e violenta por parte das elites políticas locais. Mas, ao normalizarem-se, tornaram-se cada vez mais descaradas. O apoio entusiástico de figuras-chave do ANC local e provincial aos ataques contra o Abahlali baseMjondolo em Durban, em Setembro do ano passado, constitui um dos pontos mais baixos a que desceu o ANC na África do Sul pós-apartheid. Mas o que aconteceu a Chumani Maxwele [4], o jogger da Cidade do Cabo sobre quem se abateu a paranóia por vezes lunática do ANC, conseguiu, mais do que qualquer outro acontecimento, expor publicamente o autoritarismo paranóico que se entranhou profundamente no ANC.
Claro que há pessoas e tendências no partido que se opõem ao modo como se tornou uma excrescência predadora da sociedade. Mas o ANC deixou de ter uma efectiva visão política e desconfia, profunda e por vezes violentamente, de qualquer acção política que surja de baixo – seja ela originada dentro ou fora do partido. Pode fazer declarações contra a corrupção, mas a verdade é que a máquina política que lhe permite ganhar eleições assenta por sistema no nepotismo, no clientelismo e na corrupção. Por isso não pode opor-se a isso sem fudamentalmente de opor àquilo em que se tornou. E não parece, de todo, que haja qualquer perspectiva real de que a organização possa desenvolver uma verdadeira visão política que lhe permita mobilizar-se contra si própria – contra aquilo que o Sindicato Nacional dos Metalúrgicos designou como “o gangue dos saqueadores” que comprometeu o ANC a todos os níveis. Se há alguma possibilidade de propor uma visão política alternativa, é bem possível que tal venha a incumbir aos sindicatos, aos movimentos do povo pobre e às igrejas que já se tornaram a consciência da nossa sociedade.
Tradução: Passa Palavra.
Notas do tradutor
[*] Richard Pithouse é professor de política na Universidade de Rhodes. Este artigo foi publicado originalmente em inglês por The South African Civil Society Information Service, aqui.
[1] O African National Congress [ANC] foi fundado em 1912 com o nome South African Native National Congress (SANNC) para lutar pelos direitos das populações nativas. Foi ele que conduziu todo o movimento de libertação que viria a conseguir, em Abril de 1994, o estabelecimento de uma democracia parlamentar não-racial, de que o primeiro presidente foi a sua figura mais emblemática, Nelson Mandela. Desde então governa o país, numa aliança tripartida com o COSATU (Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos) e o SACP (Partido Comunista da África do Sul).
[2] Julius Malema, de 29 anos, actual presidente da organização de juventude do ANC, é conhecido pelo seu estilo de vida opulento, que contrasta com as suas retumbantes e polémicas declarações acerca das diferenças entre ricos e pobres.
[3] Jacob Zuma é presidente do ANC desde 2007 e presidente da África do Sul desde 2009. Figura muito controversa, tem estado envolvido em diversos escândalos e processos judiciais de fraudes e corrupção. Zuma é polígamo, o que é permitido na África do Sul.
[4] Em Fevereiro último, Chumani Maxwele, um estudante de 25 anos, estava a fazer jogging quando na estrada passou a caravana automóvel do presidente Zuma. O jovem terá protestado contra o barulho e feito algum gesto obsceno na direcção das viaturas. De imediato foi preso e levado num BMW dos seguranças. Ficou detido 24 horas, sofreu interrogatórios e maus tratos, a sua casa foi toda revistada por polícias à paisana, e só foi libertado, sem julgamento, depois de assinar um pedido de desculpas ao presidente.
Fonte: http://passapalavra.info/
quarta-feira, 9 de junho de 2010
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