sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Anarquia e Paz, em Litígio - por Andy Capper

Anarquia e Paz, em Litígio - por Andy Capper
Uma breve história do ícone punk idealista Crass, e por que em 2010 seus membros estão processando uns aos outros por pura babaquice
Pete Wright, Phil Free e Joy De Vivre curtem o sol em um protesto contra a guerra ao ar livre, cerca de 1980.
Se você pegar algum livro vagabundo sobre a história do punk rock, provavelmente encontrará umas 90 páginas dedicadas às jaquetas do Joe Strummer, mas só duas frases sobre o Crass. Isso apesar de eles terem vendido milhões de discos, criado sozinhos as bases do faça-você-mesmo do punk e carregarem a bandeira de seus princípios anarquistas e li-bertários radicais até hoje, mesmo chegando à metade dos 60 anos de idade.

Muitos de vocês que estão lendo essa matéria vão reconhecer o logotipo deles e o fato de eles terem sido uma banda punk, mas poucos conhecem sua história real. Por ser inspiradora e tão “antimúsica” (no sentido de que foi uma revolta total contra a indústria musical da época), achamos que todos que tenham o mínimo interesse pelo punk devem ouvi-la.

Então entrevistamos os membros fundadores Penny Rimbaud e Steve Ignorant para essa breve história do grupo e para conhecer suas opiniões sobre o tema dessa edição. Durante as conversas entre mim e Penny que antecederam essa entrevista, descobri que o impensável de fato aconteceu e que o Crass, o espírito mais antiautoritário, pró-anarquia da história da música punk, está à beira de procurar a justiça para pedir a intervenção de advogados e juízes numa briga enorme por causa de uns CDs remasterizados.

Apesar de nossos esforços para incluir todos os lados da história aqui, dois dos antigos membros do Crass preferiram não dar entrevista.

Pedimos ao Pete Wright que comentasse a polêmica envolvendo o relançamento desses discos, mas tudo que ele disse foi: “Acho que seria melhor, nesse momento, se mantivéssemos esse assunto entre os membros da banda”. Joy De Vivre nos disse: “Enquanto as conversas estão em andamento, prefiro discutir os relançamentos apenas com os diretamente envolvidos. Preciso de calma para pensar”. Nosso respeito para todos os membros do Crass. Mas, por hora, vamos tentar contar isso tudo. Primeiro, um pouco de história...

Vice: O Crass e o EXIT—seu primeiro grupo—não eram bandas tradicionais. Eram meio anti-rock ’n’ roll e antimúsica.
Penny Rimbaud: EXIT era profundamente assim. Por isso acho que foi um bom lugar para começar. A Gee [Vaucher, integrante da banda responsável pela estética do Crass] e um amigo chamado John Loder estavam envolvidos e eram totalmente antimúsica, muito em cima do que estava acontecendo nos EUA com o free jazz e na Europa com a vanguarda musical, no sentido de ser antiformato. Até aquele momento era possível dizer que a música tinha um certo formato, da mesma maneira que até o cubismo e a arte tinham uma certa forma figurativa. Claro que tinha gente fazendo fora desse esquema, mas...

Mas não muitas.
O EXIT era uma tentativa sincera de operação de guerrilha. Nós simplesmente aparecíamos nos lugares e tocávamos sem termos sido convidados. Certamente não tí-nhamos nenhuma ambição, nem queríamos nos vincular ao universo da música comercial. Quer dizer, é mais ou menos como aquela sensação que tenho quando pergunto a alguém “O que você faz?”, e a pessoa responde “Sou escritor profissional”.

Ao dizer isso, a pessoa simplesmente exclui a possibilidade de ser escritora. Ela se contradiz. Você pode ser um escritor ou um profissional. Se você é profissional, tudo que você quer é ganhar dinheiro, não importa como. Não é necessariamente negativo, mas na minha opinião você poderia trabalhar em um banco, e ganharia mais dinheiro do que escrevendo artigos para o The Guardian. Essa era a nossa atitude em relação à música. Claro que não ganhávamos nada porque na maioria das vezes não tínhamos nem sido convidados. Isso acabou se transformando em happenings e performances artísticas, então não tinha uma linha divisória entre nosso lado banda e o nosso lado grupo de teatro, ou grupo circense, ou simplesmente de um grupo de pessoas antissociais de bobeira, fazendo nada. E fizemos isso ativamente durante uns três ou quatro anos e inevitavelmente acabamos envolvidos com pessoas que levavam essa postura a sério, elas estavam tentando mesmo fazer alguma coisa com isso, especialmente Harvey Matusow e o festival ICES de 1972, na Roundhouse. Isso trouxe à Inglaterra o maior conjunto de todos os tempos de artistas de vanguarda conhecidos. Acho que nunca mais teve um festival como aquele. Veio gente como John Cage e Charlotte Moorman, era para John e Yoko terem vindo também, mas não vieram. O que é, mais uma vez, uma contradição, porque como dá pra ter grandes nomes da vanguarda?

De qualquer jeito, depois do show na Roundhouse nos desiludimos, porque parecia que aquilo fazia parte de uma escada, e a cena nos pareceu bastante competitiva. Éramos todos, eu achava, artistas trabalhando juntos por uma mesma causa, ou pela liberação das mentes, dos espíritos e de todo o universo do controle através do comércio. Não tem nada pior do que o controle pelo comércio. As pessoas são muito guiadas por isso. De certa forma, as ideologias políticas são algo do qual é possível se esquivar. Você pode lidar com isso. Mas não é possível enfrentar o comércio sem dar as costas a ele completamente. Então, seja como for, era assim que o EXIT funcionava, e acho que foi por volta de 1973 que a banda se desfez, com a experiência na Roundhouse como uma das razões principais. Eu só voltei a falar com o John Loder em 1977.

O que vocês fizeram durante esse tempo?
Eu estava na Dial House [a casa de campo em Epping onde o Penny e a Gee vivem desde os anos 60 e onde todos os membros do Crass moraram enquanto a banda durou]. A Gee tinha ido morar em Nova York para trabalhar com arte, e eu investiguei o caso de um grande amigo meu, envolvido no festival de Stonehenge que eu acreditava ter sido assassinado por autoridades. Fiz isso sozi-nho, e me caguei de medo. Comecei a beber demais, e escrevia umas coisas raivosas, catárticas. Foi então que o Steve Ignorant apareceu na minha porta. Ele tinha estado em Bristol, tinha visto algum show do The Clash e queria montar uma banda. Ele sabia que eu tinha uma bateria. Ele era irmão de alguém da era hippie. Ele era bem jovem. Aí começamos uma banda formada só por nós dois.

Steve Ignorant: Eu conheci o Penny depois que o meu irmão foi dormir uma noite na Dial House e acabou ficando duas semanas. Ele me levou até lá um dia. Foi em 1972 ou 73. Eu já conhecia o Pen há muito, muito tempo, mas foi só em 1977, quando voltei depois de trabalhar em Bristol, que fui morar com o Pen e formamos a banda.
Essa é a van Sherpa azul com a qual o Crass fazia as suas turnês. Todo o dinheiro ganho nos shows era arrecadação de fundos e toda a grana que conseguiam ia para consertar a van, para comprar comida para a plateia e consertar a van de novo.
Como vocês ficaram amigos?
Acho que o que me atraiu, não apenas ao Pen mas também à casa, é que foi a primeira vez em que me trataram como adulto. A minha opinião, por mais ingênua que fosse, era sempre levada em conta. O Penny e seus amigos mais velhos conversavam sempre usando palavras de 20 sílabas, mas falavam comigo como iguais. Sempre gostei de escrever, desde a escola, e quando cheguei aqui comecei a escrever direito—prosa, não poesia. E eles sempre me encorajaram. Qualquer coisa que eu fizesse, eles diziam: “Vai fundo”. O Penny não era o hippie típico. Ele não usava faixas na cabeça, nem óculos no estilo do John Lennon ou batas. Ele tinha cabelo comprido, mas não acho que dava pra dizer que eram hippies. Eram mais uns caras fora do sistema. Acho que nem isso—eram só pessoas muito espertas, saudáveis e bonitas.

Como você ficou sabendo da Dial House?
Acho que foi pelos amigos da escola de arte que o Pen e a Gee frequentaram, no boca a boca. O que sempre me impressionou é que lá não tinha gente bêbada ou drogada caída pelos cantos—isso nunca aconteceu. Era um lugar bem estruturado, bem administrado. Ninguém sentia que estava lá pra bagunçar, então todo mundo respeitava.

Quando você começou a fazer música?
Deve ter sido por volta de 1973, uns três ou quatro anos antes.

O que te influenciou?
Eu tinha visto o The Clash em Bristol, e decidi ali mesmo que ia largar o meu emprego, e larguei.

O que você fazia na época?
Eu engessava braços e pernas na Bristol Royal Infirmary. Larguei aquilo e voltei para Dagenham, que é a minha cidade natal. Achei que talvez eu conseguisse convencer os meus colegas de futebol a pegarem umas guitarras, mas no tempo que fiquei fora eles tinham conseguido empregos fixos, se casado, e não curtiam punk. Fiquei sem saber o que fazer, então decidi visitar o pessoal lá na Dial House. O Pen estava morando lá sozinho e estava datilografando Reality Asylum—não a música, mas o livreto. Eu falei que estava pensando em montar uma banda e ele disse que seria o baterista. Acho que naquela época ele tocava com uma banda que soava como um monte de latas caindo pela escada. Começamos dali.

Qual foi a primeira formação? Só você e o Steve?
Penny Rimbaud: Não, colocamos todos os que fizeram parte da banda desde então, com exceção do guitarrista, um cara chamado Steve Herman, e não Phil Free, que se juntou a nós uns seis meses depois, quando o Herman se mandou para a Nicarágua. Parece que ele acabou morrendo lá em 1992.
Steve Ignorant: O Steve Herman não parecia punk. Ele era um hippie de meia idade, careca, mas, como era punk, valia tudo. Daí o Andy Palmer apareceu, e ele não tinha guitar-ra e nem sabia tocar nada, mas ele apareceu lá na casa e colocamos ele na banda. Daí veio o Pete Wright e disse que estava de saco cheio de tocar na banda folk da qual ele fazia parte. Acho que chamava Friends of Wensleydale ou algo assim. Não sei muito bem o que cantavam, talvez sobre trolls e Tolkien, esse tipo de coisa.

Então a formação final eram vocês dois, Pete Wright, Gee, Andy Palmer, Phil Free, Joy De Vivre e Eve Libertine.
Penny Rimbaud: Isso. Eu entrei em contato com o John Loder e disse, “Podemos gravar uma demo?”, e ele disse, “Bom, vou arranjar uma mesa de oito canais”, foi o que ele fez, e foi assim que começamos. Ele conseguiu a mesa em parte porque quando éramos o EXIT compramos vários equipamentos bons. Usávamos umas caixas gigantes, como no show na Roundhouse. Acho que tínhamos uns 12 ou 16 alto-falantes. Tínhamos bastante aparelhagem do tempo do EXIT, que o John acabou herdando porque ninguém ligava para aquilo. Mas eu fiquei meio puto, porque ele vendeu quase tudo e comprou duas baita caixas de som Tannoy com o dinheiro. Nunca fiz nada a respeito, mas me deixou puto porque perdemos todo o nosso equipamento para que o John montasse seu estúdio. Mas era assim naquela época, não estávamos usando a aparelhagem, então ele vendeu. Então ele arrumou uma mesa de oito canais e gravamos a demo, e acho que pagamos com uma foto que a Gee deu, que era um tipo de troca bem comum. Um selo chamado Small Wonder se interessou, então gravamos pela primeira vez com eles e eles pagaram o John. Essa foi de fato a primeira gravação que ele fez em oito canais. Era basicamente só o John na sua garagem.

Esse disco é o The Feeding of the 5.000, no qual devia ter entrado uma música chamada “Reality Asylum”. Isso causou alguns problemas, não?
Sim. Foi considerada uma blasfêmia pelo promotor público, então abriram um processo contra nós. A Scotland Yard nos visitou.
Gee Vaucher, Joy De Vivre e Eve Libertine em uma lanchonete de beira de estrada em 1982.
Verdade, a noite em que a Scotland Yard foi à Dial House. Como foi isso?
Foi tranquilo, na verdade. Eles eram pessoas que normalmente davam batidas em lojas pornô imundas no Soho, lidando com umas figuras bem esquisitas, imagino. Eles apareceram na porta dos fundos e nós oferecemos chá. Hahaha. Só acho que eles não tinham ideia de que merda estavam fazendo lá. Eles não sabem disso, mas gravamos essa visita. Perdemos a fita, infelizmente, mas foi bem engraçado. Deixamos eles lá enquanto esperávamos o nosso advogado chegar para nos defender. De qualquer maneira foi ótimo, porque eles estavam lá e falavam, “Nossa, você viu esse livro? Olha isso! Beethoven e Brahms, porra!”. Eles não acreditavam na nossa coleção de discos. Só Deus sabe o que eles esperavam encontrar, porque esse lugar é lindo, e eles repararam nisso, e no fim disseram: “Bom, realmente não sei por que estamos aqui”, e eles acabaram encer-rando o processo com advertências severas de que deveríamos tomar cuidado no futuro. Era uma blasfêmia criminosa, por assim dizer, mas não oficialmente.

E o selo não se recusou a lançar?
Sim. Ninguém queria prensar as porras dos discos e ninguém queria imprimir a capa. Então encontramos um cara que imprimiu as nossas primeiras capas, com as letras das músicas. Também encontramos uma fábrica especializada em música clássica para fazer nossos vinis. E prometemos às pessoas que comprassem o Feeding que enviaríamos uma gravação em fita da faixa removida se elas nos enviassem uma fita cassete, e todo dia, durante um bom tempo, ficávamos na sala de cima da casa fazendo cópias para enviar para as pessoas. Não sei quantas fizemos, mas deu bastante trabalho. E então pensamos, “Isso é muita burrice, vamos fazer um single e ver o que acontece”.

E foi aí que nasceu a ética punk faça-você-mesmo da qual as pessoas falam até hoje. Vocês criaram um movimento icônico.
Sim, mas tenho que falar, na verdade eu e o Steve estávamos curtindo. Não tínhamos nenhuma ambição, interesse ou desejo de virar uma banda. E muito menos uma banda conhecida. Só queríamos nos divertir um pouco, e era o que estávamos fazendo. Quer dizer, nossas letras eram meio políticas ou agressivas porque nós dois éramos meio politizados e agressivos, só isso. E, quando os outros membros se juntaram a nós, eles estavam cientes de que não tínhamos a intenção de transformar aquilo em nada. Não existia nenhum interesse em nenhum tipo de envolvimento com as convenções musicais.

O que te incomodava nas convenções musicais? Imagino que o lado comercial não seria mesmo muito atraente para um anarquista confesso.
Não tanto esse lado, mais o tipo de controle artístico. Isso é muito mais importante. Quer dizer, o lado comercial anda sozinho. O que é mais complicado é a forma de censura autoimposta que o caráter comercial traz para qualquer iniciativa. Essa é uma das razões pela qual jamais aceitei nenhum tipo de comissão. As pessoas me pediam para escrever coisas, e eu sempre dizia, “OK, eu escrevo, mas no final você pode me dar o di-nheiro se gostar, mas não vou escrever pensando na porra do seu talão de cheques”. Então sempre foi mais do que uma recusa a me envolver com negócios convencionais, porque negócios não convencionais não existem. Todo dinheiro exige bancos, os bancos pressupõem o comércio de armas, e os negociantes de armas pressupõem a existência de guerras. É impossível fugir desse ciclo.

Também tinha a questão que a imprensa musical, que é muito controlada pela publicidade, ou seja, comércio, e por todos os interesses da indústria musical, estava bastante interessada na banda quando começamos a aparecer publicamente, e também pelo Feeding, assim que o disco saiu. Quando se deram conta de que não queríamos nos comprometer com o esquema deles, que não estávamos dispostos a cumprir suas exigências—em outras palavras, em nos enquadrarmos—, eles nos descartaram rapidinho. Bom, não apenas nos descartaram como passaram a agir de maneira venenosa conosco, o que é a verdadeira causa do nosso histórico de cobertura negativa da imprensa até hoje. Quer dizer, compre um livro sobre o punk e você vai ter muita dificuldade em nos encontrar lá.

A EMI não tentou contratá-los por uma grana alta?
Steve Ignorant: É, um cara chamado Tony Gordon. Ele era o agente do Boy George. Acho que os Cockney Rejects também se envolveram com ele e acabaram entrando numa furada. Era um monte de porcaria, na verdade, um idiota sentado atrás de uma mesa enorme e fumando um charuto. Era bem ridículo, você não botaria uma fé, parecia uma coisa saída da TV. Confesso que as minhas orelhas de moleque de bairro pobre se ouriçaram por uns 30 segundos, mas eu logo pensei, “não, não quero fazer isso”.
Steve Ignorant em clima contemplativo na Dial House.
E então vocês mesmos lançaram Stations of the Crass pela Crass Records.
Penny Rimbaud: Falamos com o John Loder : “É um lance arriscado, não sabemos como ou o que vai acontecer, mas você quer ser o nono membro da banda?”. E ele topou. Também pegamos umas 12 mil libras emprestadas de uma outra banda chamada Poison Girls. Acho que eles tinham acabado de vender a casa velha deles, ou algo assim. De qualquer jeito, eles nos emprestaram o dinheiro. Tivemos o retorno em uma semana, e devolvemos a grana, e daí em diante começamos a fazer muito dinheiro. Cobramos pelo nosso disco metade do preço normal, e era um álbum duplo, só queríamos cobrir os custos de imprimir 5 mil cópias, que sabíamos que venderíamos, ou pelo menos achávamos, pelo tanto que Feeding tinha vendido. Enfim, vendemos 20 mil cópias em duas semanas, algo assim. Uma quantidade enorme. Então de uma hora pra outra estávamos cheios de dinheiro.

Por quanto vocês vendiam o disco?
Acho que três libras, provavelmente, por um álbum duplo. Acho que o que fazíamos era cobrar justamente metade do preço dos discos das outras bandas. Mas era fácil porque o nosso estilo de vida custava metade do de outras bandas. Lembro que o pessoal de outras bandas dizia: “Bom, pra vocês é OK, vocês não pagam um aluguel caro, moram juntos e economizam na comida”, e era verdade. Tirávamos vantagem do fato de que estávamos vivendo por quase nada e não tínhamos hábitos caros com álcool ou drogas. Então repassávamos essa vantagem ao comprador. Pelo menos era um ato generoso ou honesto de nossa parte. Então isso cresceu. A Crass Records virou uma coisa meio formal, com o John assumindo como engenheiro de som e administrando o lado financeiro, porque ne-nhum de nós era capaz ou tinha interesse em tomar conta disso. Ele também continuou sendo o nono membro da banda até mais ou menos 1989, ou cinco anos depois da banda acabar. Acho que estou certo ao dizer que a primeira expansão dele para além da Crass Records foi quando me dei conta de que ele estava fazendo um mau negócio para ele mesmo, considerando o tanto de trabalho que tinha. É um trabalho do cacete, não o lado de engenharia de som, isso era um trabalho duro também, mas administrar financeiramente um monte de gente disposta a jogar dinheiro pro alto só por diversão era difícil.

Onde você jogou o seu?
Uma boa parte foi para coisas como CND ou o Greenpeace, que hoje são organizações respeitadas, mas que na época batalhavam por suas existências. Então realmente gastamos milhares e milhares de libras desse jeito. Outra coisa foi a expansão do selo. Tipo, “OK, ga-nhamos rios de dinheiro, o que vamos fazer com isso? Vamos chamar a banda ali da esquina e dizer a eles que podemos fazer um single”, o que realmente fazíamos com prazer e honestidade. Mas, enfim, me dei conta que o John não estava tirando muita vantagem do negócio, então sugeri: “Por que não montamos um outro selo chamado Corpus Christi, e eu ajudo a administrar, cuidando dos artistas e do repertório, quer dizer, se eu ouvir falar de uma banda, ou você ouvir falar de uma banda, você me avisa?”. Acho que em 1984, mais ou menos, ele formalizou a coisa, que virou a Southern Records. Em outras palavras, ele criou um guarda-chuva. Mas foi só em 89 que ele me procurou e disse, “E se a gente incorporasse a Crass Records sob o guarda-chuva da Southern, de forma que você tenha todos os benefícios da Southern?”. Daquele ponto em diante ele passou a trabalhar em troca de uma porcentagem—incrivelmente baixa, devo dizer. A Southern levava 12 ou 15 %, no máximo.

Qual a razão de ficar com uma porcentagem tão pequena?
Acho que o respeito mútuo. Ele sabia que eu não ganhava nada com o negócio, e acho que ele achou que seria razoável se... Quer dizer, ele também ganhava dinheiro com o estúdio, com a distribuição e com a fabricação. O John controlava tudo àquela altura.
Passagem de som em um local ignorado, por volta de 1980. Da esquerda para a direita: Andy Palmer, Steve Ignorant, Pete Wright, engenheiro de som conhecido apenas por “Dave”, Penny Rimbaud e Vi Subversa.
Por que a banda acabou?
Sempre achamos que 1984 era essa coisa mítica, orwelliana. E acho que a banda acabou porque eu estava me interessando por coisas além do punk. Os nossos interesses estavam se ampliando, e foi também depois que fizemos aquele último show em Aberdare, que foi tão decepcionante e triste, resultado da Inglaterra perversa da Tatcher. E acho que todos nós sentíamos que ficar pulando no palco e gritando “No more war!” era uma piada frente à pobreza e ao desespero que vimos aquela noite.

O que aconteceu?
Era um show beneficente para os mineradores demitidos de Aberdare. Fomos com a van, como sempre, lotada de latas de comida, porque as pessoas estavam literalmente morrendo de fome naqueles vilarejos. Como sempre, naqueles vales estava chovendo, e tudo tinha um aspecto muito triste, uma sensação de destruição e desespero. Muitos homens não sabiam mais o que fariam da vida. Muitos nem sabiam o que tinha acontecido. Era horrível. E o show foi ótimo e todo mundo gostou, mas mesmo assim foi muito triste. Na manhã seguinte o Andy me disse, “Estou saindo da banda, Pen”, e eu não reagi porque pensei, “Beleza, eu entendo perfeitamente”. De certa forma ele deu início ao que acho que teria acontecido de qualquer jeito. Era 1984 e nós tínhamos combinado que terminaríamos naquele ano, e foi por isso que os números do nosso catálogo eram uma contagem regressiva. Dissemos tudo que tinha para ser dito naquele contexto. O fato de que isso ainda seja pertinente hoje é sinal de que nada mudou. Não se pode dizer mais do que falamos, sério, com exceção talvez de tentar oferecer algumas respostas. Mas, sabe, ainda estou procurando pelas respostas. E certamente não são do tipo que podem ser encontradas no contexto do punk rock. Acho que, no contexto do punk rock, fizemos tudo que podíamos ter feito.
Steve Ignorant: Estávamos fazendo aquilo desde 1977. Todos aqueles anos, sem intervalo. Morávamos na Dial House, as portas estavam sempre abertas, e no palco éramos as mesmas pessoas que éramos no dia a dia. Não dava pra tirar uma semana de férias depois de uma turnê. Tomávamos conta de tudo pessoalmente e ainda tocávamos o outro selo, Corpus Christi. O Pen estava sempre no estúdio, eu estava gravando vocais no Conflict ou alguma coisa do tipo e compondo músicas para outras pessoas. Não era como um emprego, das 9 às 5 da tarde. Não acabava nunca. Quando a Margaret Tatcher assumiu, tudo ficou mais intenso. Sem fim. Imagens terríveis, tempos horríveis, tendo que lidar com coisas como a guerra das Malvinas, a greve dos mineradores, o desemprego. Foram tempos horríveis. Tinha muita violência nos shows, eu só me vestia de preto. Fiquei de saco cheio. Se eu saía pra beber sentia sempre uma responsabilidade implícita, de que, se ficasse bêbado, ninguém podia perceber. Se eu caísse na sarjeta, não era só eu caindo na sarjeta, era o Crass. Então tinha essa responsabilidade de não foder com tudo.

Muito do “punk” tinha a ver com ter orgu-lho de cair na sarjeta. As pessoas fingiam esse tipo de coisa, mesmo sem estar bêbadas. O que fazia o Crass diferente?
Bom, achávamos que a mensagem era importante o suficiente para fazer com que as pessoas viessem ouvir e comprassem os discos. Não podíamos foder com tudo agindo como idiotas no bar depois do show.

Então era antitudo que o rock ’n’ roll representava.
Sim. Nunca saquei isso. Conheci muita gente que devia largar mão desse tipo de coisa. Tipo, jogar um aparelho de TV pela janela, não é novidade. Já vi gente fazer guerra de comida, e isso me irrita de verdade. Quer dizer, alguém se deu ao trabalho de cozinhar aquilo. Vi gente no palco enchendo a boca para falar de “não violência”, e no minuto seguinte está na rua tretando com alguém de Manchester porque eles são do Sul. Babaquice total e completa. Nunca me liguei nessa imagem do rock ’n’ roll. É verdade, tem um pouco de puxação de saco, tudo bem, consigo lidar com isso. Mas limusines e paparazzi e o caralho? Enfia no cu! Enfia bem fundo. Babaquice! Já vi músicos que têm tantas pessoas ao redor dizendo como eles são demais que no final das contas os idiotas acabam acreditando que são mesmo e que podem dizer às pessoas o que fazer.

Isso já aconteceu com alguém do Crass?
Não. Mas aconteceu com alguns amigos bem próximos. Então, nesse sentido, para nós nunca foi questão de fazer parte de uma banda de rock ’n’ roll, apesar de algumas vezes eu ter desejado algumas das coisas associadas a essa condição. Eu queria as loiras e a bebida de graça, coisas que nunca tive. As únicas pessoas com quem eu conversava nos shows eram caras esquisitos vestindo parcas que me faziam perguntas sobre anarquia.

Haha. Mas foi para isso que você entrou nessa vida, não foi? Você se arrepende?
Às vezes acho que é besteira minha, sei lá. Teria sido divertido se tivesse acontecido uma vez ou outra. Arrependimento? Não, fizemos o que fizemos. Como você disse, foi para isso que eu entrei nessa vida. Foi um compromisso, e a culpa foi minha, mesmo.
Penny Rimbaud e Steve Ignorant, meados de setembro de 1980.
E agora você resolveu tocar músicas do Crass ao vivo novamente, certo?
Bom, algumas pessoas me pediram para considerar a possibilidade de tocar em um festival punk, e eu pensei, “O Conflict vai tocar e também a galera de sempre, sabe, UK Subs e tal”. Pensei, “Sei o que posso fazer, o Feeding dura uns 30 minutos, mais ou menos. Vou montar uma banda e tocar só isso. Não vou nem anunciar nada, apenas tocar o disco do começo ao fim e apavorar todo mundo”. Expliquei a ideia pro cara que queria que eu participasse do festival punk, e ele disse que me ligaria de volta. Quando ele ligou, disse que tinha desistido da ideia de um festival de dois dias e que agora eu seria a atração principal num evento no Shepherd’s Bush Empire por duas noites. E eu disse, “Então tá!”. Assim que concordei, bateu o cagaço e fui criticado, só Deus sabe...

O que o Penny disse?
Ele ficou puto comigo. Eu disse que ia fazer o show e ele disse que não queria que eu usasse nada do material, mas já era tarde demais para voltar atrás. Perguntei por que ele era contra, e ele disse que era um lugar comercial que, vindo do Penny Rimbaud, que andou se apresentando no Vortex Jazz Club em Stoke Newington, que cobra 10 libras de entrada, 12 por uma garrafa de vinho e 4 a cerveja... Quer dizer, qual dos dois é comercial? O lugar onde eu ia tocar teria algo como seis bandas por dia por umas 15 libras pelos dois dias. O que o Penny disse realmente acabou com a minha confiança. Mas só pensei, “Foda-se, vou fazer o show mesmo assim, e se for parar na justiça ele vai ficar parecendo um babaca”. Umas duas semanas antes do show o Pen me ligou e disse, “Na verdade, eu te dou minha bênção”. Foi um alívio. Ele não foi assistir, mas eu entendi. Não é a cena dele.
Penny Rimbaud: Fiquei contrariado com os shows do Steve no começo. Pensei, “Não, é ridículo. Eu não vou deixar ele tocar mi-nhas músicas”.

O que te fez mudar de ideia?
A Eve Libertine me disse, “Você deixaria qualquer outra pessoa fazer isso, então por que não o Steve?”. E era verdade. Qualquer outra pessoa poderia tocar as músicas, mas não o Steve, e isso realmente soava injusto. Então eu liguei pra ele e disse, “Olha, desculpe, Steve. Faça o que você quiser, só não posso oferecer o meu apoio, e se me perguntarem, vou dizer que sou contra. Boa sorte. Divirta-se”. Ele ficou muito agradecido por isso, e sempre foi assim com o Steve, sempre com honestidade. Ele acha que sou maluco e que faço coisas bizarras, completamente incompreensíveis, e eu acho que as coisas dele são um pouco pueris e fúteis, mas são ótimas. Eu também me culpo. Eu era um homem de 35 anos de idade quando um garoto de 17 anos apareceu querendo formar uma banda, e a banda que eu e ele formamos juntos negou a ele tudo que ele deveria ter tido. Ele devia ter comido as groupies, cheirado pó e se divertido. Ele nunca se divertiu: nunca teve adolescência. O nosso esquema linha-dura não permitia. Hoje eu percebo isso, mas não percebia na época. Achei que estivéssemos nos divertindo, mas, meu Deus, que tipo de diversão era aquela? Quer dizer, acho que eu me divertia mais com aquilo porque a minha diversão sempre foi mais cerebral e intelectual, então para mim alguns dos conflitos que criamos com o Estado e esse tipo de coisa era diversão. Mas o Steve queria se divertir de verdade, e hoje eu entendo. E também não acredito que não deem valor ao trabalho dele. Acho que o cara era brilhante, estava entre os melhores do punk.

Bom, fico feliz que vocês estejam numa boa hoje. Vamos voltar ao fim do Crass e o que aconteceu naquela época...
Depois que o Crass acabou deixamos tudo nas mãos do John, em 1984. Levamos algum tempo nos anos seguintes passando algumas coisas para formatos novos, remasterizando algumas coisas. A fita cassete foi o primeiro formato novo que usamos, e depois o CD.

O que você achou da demanda em passar para o CD?
Eu detestava som digital, tendo trabalhado em estúdios por tantos anos. A Gee também achava a mesma coisa, porque você está reduzindo um formato de 12 polegadas para 4. A Gee não conseguia exercer ou exibir sua integridade artística por completo. Àquele momento, achávamos que estávamos apenas mudando de formato, então não ligamos muito para descobrir como seria possível fazer coisas melhores com essa mudança. Acho que tanto a Gee como eu sentimos que estávamos fazendo o melhor que podíamos de algo bem ruim. Eu gostava mais das cassetes porque soavam melhor. Por mais porcaria que fossem, com certeza soavam melhor do que os primeiros CDs.

Quando o Crass acabou e os discos continuaram sendo vendidos, o logo virou uma marca, não virou? As pessoas começaram a piratear. O que você achou disso?
Acho que isso prova a força do design, em primeiro lugar. Apesar dos pastiches e das outras bandas tentando fazer coisas parecidas, ninguém conseguiu fazer um logo tão poderoso. Acho que foi por isso que a Naomi Klein falou dele. Fomos o primeiro caso de sucesso com logo. Fomos sim, você sabe disso. Era um design fenomenal. Foi o Dave King que criou o logo. Ele é um puta gênio. Ele fez isso enquanto ainda estudava arte com a Gee e comigo. Quer dizer, ele era absolutamente brilhante nesse domínio. As pessoas perderam a noção do que seja design, mesmo, ainda mais na era digital. Levou meses e meses até que ele chegasse àquele desenho. Na verdade, não foi feito para o Crass, mas para o livro Reality Asylum. Era a arte da capa. E representava a destruição do Estado, da família e da Igreja. Já estive em muitos lugares no mundo inteiro e sempre cruzei com o logo. É legal. Talvez algumas pessoas tenham a curiosidade de saber o que aquilo significa e se envolver com o significado. Acho isso bom. A transformação em mercadoria que me incomoda. Nunca gostei e nunca gosto quando as grandes marcas de moda de Nova York roubam trabalhos da Gee, fazem uma colagem e transformam em estampas de vestidos. Não me incomodei quando o Wal-Mart nos pirateou. Prefiro que as pessoas comprem camisetas do Crass no Wal-Mart do que camisetas da Coca-Cola porque prefiro que elas andem por aí com alguma coisa que tenha algum significado. Acho que sou meio ambíguo com isso. Não quero nada com o Wal-Mart, mas, sabe, por outro lado, é demais! Coloca na rua!

O Wal-Mart vendia camisetas do Crass?
Acho que sim. Era a camiseta do Crass com a qual o David Beckham apareceu em público. Acho que ele não sabia o que significava, mas tudo bem. Isso não me deixa chateado, de jeito nenhum. Tipo... Eu ficaria chateado se o Mick Jagger resolvesse roubar uma música do Crass, porque não tenho nenhum respeito por ele ou pelas razões pelas quais ele faria isso.
Andy “NA” Palmer e Steve Ignorant em turnê em 1981.
E agora vocês remasterizaram todos os discos, a Gee fez artes novas e a Southern vai lançá-los, mas isso causou confusão, certo?
Bom, sim, na remasterização das coisas do Crass que tenho feito, incorporei algumas coisas que só estavam disponíveis em discos piratas. E por que elas só existem nos piratas? Porque nós mesmos nunca lançamos. Somos os culpados, não as pessoas que piratearam. Então o que estamos fazendo, de certa forma, é retomar o nosso direito, fazer com que tenham boa qualidade, a melhor possível, e daí lançar para que as pessoas que quiserem a nossa versão possam comprá-la. As versões piratas provavelmente vão continuar por aí.

Discuti o projeto de remasterização de todo o material com o John no ano em que ele estava doente. Eu o visitava mais ou menos uma vez por semana. Conversávamos bastante, claro, sobre o futuro e tal. Sonhávamos em remasterizar o catálogo todo, remasterizar de algumas coisas minhas como Acts of Love, com coisas novas que faríamos, mas confesso que a maior parte do tempo eu sabia que era só fantasia, porque estava na cara que ele não sobreviveria.

Quando ele morreu, a Southern teve dificuldade em lidar com todos os projetos e eu passei bastante tempo me preocupando com o que aconteceria com o nosso material, porque com o John nunca teve formalidades, nunca assinamos nada, nunca teve isso de quem é dono do que, o que é dono de quem. Não tinha nenhuma garantia. O que me preocupava era que tudo passasse para as mãos de algum administrador legal. Pensei, “Se a Southern fechar, vai ter intervenção e vão levar tudo. Quero saber o que é nosso para que possamos ficar com as nossas coisas”. Fiz algumas tentativas tímidas, mas o lugar era uma zona tão grande que pensei, “OK, vou deixar acontecer e deixá-los resolver o que tiverem que resolver, e depois vemos o que dá pra fazer”. Isso coincidiu com a nossa tentativa de impedir que a casa fosse parar nas mãos de investidores imobiliários, então acabei me metendo numa batalha legal enorme.

Quem é proprietário da casa agora?
Nós.

Vocês correram risco de perdê-la?
Sim, várias vezes. Durante a época da banda, poderíamos ter sentado e decidido, “Olha, não somos os donos dessa casa. Por que não a compramos?”. Poderíamos tê-la comprado facilmente, mas nunca pensamos nisso. Toda vez que entrava dinheiro dizíamos, “Pô, temos um barão! Vamos ver se o pessoal ali da esquina não quer fazer um fanzine!”.

Era a mesma coisa com os shows, na verdade, o que não me deixa muito feliz. Fazíamos o show, escolhíamos um lugar e distribuíamos todo o dinheiro para pessoas carentes ou coisas do tipo, e daí nos dávamos conta de que não tínhamos dinheiro suficiente para comprar comida para o jantar. Éramos estúpidos a esse ponto, sério. Não cuidávamos de nós mesmos. Se tivéssemos cuidado, a casa seria nossa e a Gee e eu não estaríamos vivendo quase na miséria na maior parte do tempo. Deveríamos ter pensado nisso, mas não pensamos, e isso é porque não tínhamos interesse e ainda não temos, então não estou reclamando, é só um fato.

Como foi o trabalho de resgatar todo o material antigo e remasterizá-lo?
Não consegui separar tudo que era nosso até que um amigo apareceu, e ficamos um puta tempo ouvindo todas as fitas, documentando e tentando descobrir o que tinha ali. Era um galpão cheio de fitas.

Nosso último disco, que nunca fez muito sucesso com ninguém a não ser comigo, Ten Notes on a Summer’s Day, tinha sido digitalizado antes, mas o som era péssimo. Então aproveitei a oportunidade para remasterizá-lo. Foi aí que me dei conta de como as novas possibilidades de remasterização são incríveis. Consegui fazer o disco soar como sempre quis que soasse. Eu conseguia ouvir partes da música que eu achava que já estavam perdidas para sempre.

Você remasterizou a partir das fitas originais?
Pegamos as fitas pré-masterização e as remasterizamos digitalmente.
Gee Vaucher e um camarada bovino na casa de campo Dial House.
Você já remasterizou tudo, a essa altura. Vocês fizeram artes novas e faixas extras e incluíram a arte original também.
Digitalizamos tudo que já gravamos. A primeira que fiz depois de Ten Notes foi Feeding e, pô, fiquei animado. Propus à Southern que remasterizássemos tudo, e eles ficaram entusiasmados quando escutaram os resultados. Então propusemos fazer o mesmo com a arte. As caixas do formato digital eram uma porcaria, de plástico, tinham uma aparência antiquada, lamentáveis. Elas não foram feitas com muito interesse da parte da Gee. Ela fez o melhor trabalho que pode, mas ela não se envolveu muito porque não era muito proveitoso—criativamente. Então quando apareceram as caixas de papelão e os livretos, a Gee fez novos projetos.

Você mixou alguma coisa de novo?
Não, não, mixar novamente o material implicaria numa alteração completa. Quando você remasteriza, não pode mudar. Só é possível fazer o som ficar melhor ou pior, mas ainda é exatamente o que foi feito originalmente. Não afeta o material.

Por que vocês resolveram incluir arte nova e fotos antigas da banda?
Pensamos que, em primeiro lugar, tinha muita gente conhecendo a banda que não conhecia nossa história, e nem o que estava acontecendo na sociedade da época. Então decidi assumir a tarefa de escrever um ensaio para cada lançamento. Achamos que seria bom incluir fotos, pela primeira vez, porque as pessoas não têm mais a oportunidade de ir aos nossos shows, e portanto não sabem como somos, e tínhamos fotos muitas boas da banda, então resolvemos incluí-las. A Gee adaptou parte da arte original do Crass e acrescentou imagens novas onde achou que cabia. Eu sugeri o nome meio de mau gosto The Crassical Collection e queria que tivesse um ar de música clássica porque pensei: “Somos clássicos agora, não somos mais um bando de garotos zoando com um mimeógrafo, estamos fazendo de um jeito classudo, pra valer”. É necessário um senso estético peculiar para gostar das coisas antigas do Crass. Tem o seu charme, mas só isso... é irrelevante. Queria que tivesse uma aparência bacana, que fizesse as pessoas dizer, “Porra, que design é muito bom!”. A Gee é capaz de fazer isso, e fez, preservando os elementos originais, mas acrescentando elementos novos impactantes. Parece que o que ela fez com a arte foi exatamente o que fiz com o som. Fomos capazes de pegar algo que parecia ter saído de uma porra de um museu e fazê-lo parecer moderno. Algo como Yes Sir, I Will soa como se pudesse ter sido gravado no ano que vem, de tão poderoso.

Quando você tocou para mim no seu estúdio/celeiro realmente pareceu genial. Então, isso tudo é muito bacana, mas o projeto de relançamento também jogou merda no ventilador, e pode acabar na justiça, certo?
Bom, sim. O baixista, Pete Wright, é totalmente contra o relançamento, e eu acho que ele também está convencendo a Joy De Vivre e Phil Free. É um pesadelo.

Por que você acha que o Pete se opõe aos relançamentos?
Quando a banda terminou e já não tínhamos isso em comum, foi ficando cada vez mais claro que existiam diferenças importantes entre os vários membros. Isso não caiu bem, e começaram a surgir alguns conflitos na casa. Em especial entre os que não viram no fim da banda um colapso de sua segurança, os que tinham como se garantir e que alegremente tocaram adiante o que estavam fazendo, enquanto outra parte da banda estava preocupada, tipo, “E agora, como será o futuro? A nossa segurança foi repentinamente retirada de baixo dos nossos pés”. Acho que essa foi a raiz do conflito, mas ela se expressou em argumentos ligados aos estilos de vida. Eu criei essa casa para ser o centro de qualquer coisa que qualquer pessoa quisesse fazer com ela. Não cabia a mim definir, julgar. Eu encontrei a casa, eu a financiei de boa vontade, e todo mundo podia fazer o que quisesse dentro de certos parâmetros.

Agora sou acusado de negligência quando eu devia ter ajudado. Então, a reclamação de Peter, e ele mesmo admite, é que eu não dei ouvido às suas críticas, algumas das quais eram justas, mas que na maioria eram infantis ou impraticáveis.

Tipo?
Bom, uma das críticas infantis é não ter reco-nhecido uma autoridade natural. A autoridade natural é aquela que produz 65% do material do qual você vive. Não por seu próprio interesse, mas pela crença sincera de que existe um propósito compartilhado, que foi a razão pela qual escrevi todas aquelas músicas do Crass. Não levo numa boa alguém se voltar contra mim e criticar essa autoridade quando essa pessoa não está se beneficiando da maneira que queria, quando ao mesmo tempo continua se beneficiando de outras maneiras. Não acho isso gentil. Acho que foi uma infantilidade achar que seria possível mudar uma situação batendo pé e sendo grosso. Não é assim que se faz. Estou disposto a sentar e ouvir se a pessoa estiver disposta a sentar e falar, mas não quero ser insultado por ninguém. Não acho gentil que as pessoas não reconheçam isso. Viver em um lugar por sete anos, sem pagar aluguel, a merda toda, usar todos os espaços que poderiam ter sido meus de forma egoísta, e daí fazer uma grande cacofonia disso tudo.

Pós-show do Crass, cerca de 1980. Repare no policial do lado direito do palco. Vários fãs tinham quebrado cadeiras no local durante o show, mas quando a polícia apareceu não tinha muita coisa pra registrar.
De onde vem a oposição ao material remasterizado? É ideológica ou estética?
Não tem nada a ver com a qualidade do material. Isso foi enxertado na discussão para tentar dar algum tipo de consistência. Ele mesmo confessa que tem a ver com seus sentimentos em relação ao que aconteceu durante o período após o fim da banda, quando já não tínhamos a banda para nos unir.

Você se comunica com ele?
No começo, nos comunicamos, quando ele expressou sua objeção. Preciso reconhecer que existe um histórico de objeções entre nós. Ele se opôs a todas as ações artísticas que fiz nos últimos anos, desde o grande show no Queen Elizabeth Hall, que ele tentou sabotar e, em parte, conseguiu.

Como foi isso?
Ele contratou uma atriz profissional para agir como se fosse... Como se chamam as pessoas que gritam em shows?

Uma claque?
Ele contratou uma claque da mesma forma que em Viena era costume contratar claques e acabar com as apresentações. E realmente virou uma noite de claque enfurecida. Ele simplesmente deu permissão para que as pessoas nos vaiassem a noite toda. Foi uma estratégia deliberada para sabotar o show.

Você tirou satisfações com ele naquela noite?
Fiquei tão abalado que só disse, “Puta show, muito engraçado”. Em relação aos relançamentos, o argumento principal dele é que ele não queria que nada fosse alterado, porque, se qualquer coisa fosse alterada, acho que, nas palavras dele, “nós”, isto é, os que estão querendo alterar, estaríamos abrindo uma caixa de Pandora, e ele iria revelar a “verdade” sobre o Crass. A verdade sobre o Crass que ouvi dele é no mínimo revisionista. Não há dúvida de que durante o período em que viviam 15 pessoas na casa, e mais 25 gatos, existia uma harmonia inacreditável. Obviamente, tinham alguns desentendimentos ocasionais a respeito de alguma coisa, mas eles eram muito, muito raros e nós conseguíamos administrá-los de algum jeito. De outra forma, não teríamos sido capazes de fazer o que fizemos. Não importa quantos discos, quantas coisas estivessem acontecendo, aquilo funcionava como um relógio. Fizemos às custas de nossas vidas sentimentais, e éramos bons nisso.

Mas quando tudo acabou a bagagem emocional não foi devidamente resgatada dos buracos escuros da casa e enfrentada por nós. Devíamos ter nos desprogramado, mas não fizemos isso. Nos desprogramamos de um jeito muito lento e no processo formou-se muita amargura.

Penny Rimbaud com as mãos no mato, Dial House, 1983.
O que o Pete tem feito desde que deixou a casa?
Ele formou uma banda chamada Judas Two e o nome, de certa forma, diz tudo.

Que você e a Gee são dois Judas?
Bom, algumas das letras são ataques bem diretos e estúpidos contra mim; “Fools on the Hill” ou algo assim. Completamente inofensivo e um tanto infantil.

Vocês vão levar adiante os relançamentos? Você disse que tem advogados envolvidos e que a justiça também está no meio. Parece uma loucura que o Crass tenha ido parar na Crown Court, o que significa que vocês pediram à rainha que intercedesse na banda. E essa banda nunca foi muito fã da rainha, para dizer o mínimo.
O Pete tentou aplicar um mandado de segurança na gente, mas como a papelada dele não estava em ordem, até onde sei, não entendo muito bem disso, mas certamente...

Não existem contratos.
Não existem contratos, não há nada escrito na história do Crass e da Southern, e nunca houve entre nenhuma das bandas que o Crass gravou. Ou era feito na base da confiança, ou não era feito. E, para ser justo com o John, acho que ele preservou esse princípio na Corpus Christi.

Se o Pete quer usar a lei, acho que é um caminho bem idiota a se tomar. Se eu fosse usar a lei no caso da propriedade de 65% dos direitos das músicas do Crass, eu poderia estar sentado ao lado de uma piscina, não dessa vasilha dos gatos, e ele teria que trabalhar mais em seja lá qual for o trabalho de meio-período que ele tenha hoje em dia. A verdade é essa.

Então hoje os nove membros recebem partes iguais?
Sim. E os nove membros são proprietários de todos esses bens, isto é, as fitas e a porra toda, o nono membro sendo a Southern, que representa a parte original de John Loder.

Eu gostaria muito de ouvir a versão de Pete.
Seria muito bom se você conseguisse, mas não acho que você vá ter muito sucesso.

Você tem uma reunião com o advogado?
Tenho, amanhã.

E o Pete estará lá?
Sim! Dias felizes!
Posteres do Crass no Roxy, em Covent Garden, Londres. Crass fez dois shows aqui, e o segundo resultou em banimento da casa, o que resultou na música “Banned from the Roxy”, que aparece em The Feeding of the 5000.
Quando foi a última vez que você viu o Pete?
Acho que foi na semana em que o John morreu. Ele sabia que ia morrer e trombei com o Pete no estúdio, e disse, “Pete, de verdade, precisamos conversar”, e fomos até um café e nos sentamos, foi bem cordial. Eu disse, “Olha, o John vai morrer, precisamos separar o nosso material”. Ele disse, “Precisamos nada, vai dar tudo certo”. Ele não quis nem ouvir falar do assunto.

Qual você acha que será o desfecho?
Espero que as pessoas aceitem que legalmente ele não tem nada, e que ele cale a boca e continue a receber os direitos autorais, como ele tem feito alegremente ao longo de toda essa história, apesar de todas as críticas que faz.

Apelar à justiça e contratar advogados certamente vai contra tudo que o Crass sempre defendeu?
O Pete diria que é isso que estou fazendo, porque naquela época tínhamos o princípio de que, se uma pessoa não gostasse de uma ideia, não a faríamos. Mas acho que depois de 30 anos de uma situação real, eu fazendo tudo e ninguém fazendo nada, ninguém nem ao menos se deu ao trabalho de telefonar para a Allison, que cuida da Southern Records, para saber se ela estava bem depois que o John morreu... Acho que coisas desse tipo significam que adquirimos direitos para fazer o que quisermos depois de todo esse tempo. E nós dois, Gee e eu, fomos muito, muito cuidadosos. Por exemplo, nos ensaios que escrevi para os CDs remasterizados tomei todo cuidado para fornecer a imagem da banda como ela era quando existia. Não coloquei ali nenhuma dúvida ou crítica pessoal que eu tive desde então. Tentei escrever com a voz da pessoa que era naquela época, para poder ser honesto e justo, e dei a todos seus méritos. E sei que a Gee se sentiu muito, muito comprometida a ser honesta com a banda. O que acho que certos detratores falarão é que “Ah, sim, honesto com qual banda? A banda que você pensa que era?”. Hoje, as pessoas parecem pensar que o Crass foi sempre essa coisa “vamos lá na frente pogar”. Não é verdade. Na maioria das vezes, as pessoas iam embora. Elas odiaram Yes Sir. Ninguém queria ficar na porra do salão quando tocávamos essa música, então a ideia de que éramos uma banda de rock ’n’ roll que fazia sucesso é um mito, mesmo. É só retrospectivamente que isso parece ser verdade.

Steve Ignorant: Acho uma estupidez essa história do Pete ser contra os relançamentos depois de todos esses anos sem se envolver com a banda, sem nem ter ouvido com cuidado as remasterizações. Escrevi no Facebook do Crass que é uma ironia que os maiores anarquistas intergláticos de todos os tempos, o Crass, todos vestidos de preto, não conseguem resolver seus problemas sem apelar para o sistema. É ridículo pra caralho.

Penny Rimbaud: Pra mim, a disputa tem suas raízes em diferenças ideológ­­­­icas que existiam entre os membros da banda. No meu entendimento, o Pete era basicamente um socialista, e os socialistas gostam de apontar seus dedos para todo mundo, menos para eles próprios. Ele se diz anarquista. Bom, eu digo que sou anarquista, mas sou principalmente um libertário e um individualista feroz. Acho que isso cabe na arena do pensamento anarquista. Eu sem dúvida me diferencio dessa coisa de organização anarquista da indústria e coisas do tipo, porque não me interessam. Se as pessoas querem fazer isso, então não vou criticá-las. Mas, sinceramente, não é a minha. Meu lance é me elevar com os anjos e voar no céu.

ENTREVISTAS POR ANDY CAPPER
FOTOS DE ARQUIVO: CORTESIA DE GEE VAUCHER E PENNY RIMBAUD.
LEGENDAS ELABORADAS COM A AJUDA DE GEE VAUCHER
Fonte:http://www.viceland.com/br

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