Wikileaks: o imperador está nú - por Pepe Escobar - Asia Times Online
O reality show das WikiFugas prosseguirá, com novidades online aos borbotões. Pelo menos o espectáculo demonstra, mais uma vez, que a boa informação está na Internet – não nos média-empresariais globais; e que os cidadãos globais devem fazer dela o melhor uso possível para desmascarar, e rir, do poder. É salutar aprender que o imperador, em segredo, fala mal dos amigos e sicofantas, tanto quanto dos inimigos. Também é salutar aprender que o imperador é inimigo da democratização da informação. Mas agora, que já se sabe que o imperador está mesmo nu, devemos agradecer muito aos autores dos telegramas, seus amigos, inimigos e sicofantas, por nos oferecerem esse impagável reality show.
Presidente Bush : Frank, estou a criar um cargo, e peço-lhe que considere a possibilidade de trabalhar connosco. Serão dias longos e noites perigosas. E você vai trabalhar cercado pela escória de nossa sociedade.
Frank: Estou a ser convidado para trabalhar no seu Gabinete?
[Corra Que a Polícia Vem Aí 2, estrelado por Leslie Nielsen]
Digam o que disserem os jornais e televisões, o facto é que 1,6 gigabytes de arquivos de texto numa pen-drive espalhando 251.287 telegramas diplomáticos do Departamento de Estado dos EUA de mais de 250 embaixadas e consulados não vão provocar “um terremoto político” – como se lê na revista alemã Der Spiegel – na política externa da maior potência decadente do mundo.
Por trás das múltiplas hipócritas camadas de um ciclo frenético de notícias, 24 horas por dia todos os dias da semana, a política aparece, sobretudo, como um reality show repugnante. Isso é o que as últimas WikiFugas mostram, em forma escrita, nua e crua. Um Muammar Kaddafi que usou botox e não seria muito activo com a sua sexy enfermeira ucraniana é personagem de “Big Brother”.
Embora seja excelente para a televisão, não se pode dizer que seja novidade que, para os diplomatas norte-americanos, o presidente do Irão Mahmud Ahmadinejad é "Hitler", que o presidente do Afeganistão Hamid Karzai é “paranóico”, que o presidente da França Nicolas Sarkozy é “imperador sem o traje”, que o “tolo e incompetente” primeiro-ministro da Itália é doido por “orgias”, que a chanceler alemã Angela Merkel “raramente produz alguma ideia criativa”, que o presidente da Rússia Dmitri Medvedev “é o Robin do Batman Vladimir Putin [primeiro-ministro russo]”, ou que o Amado Líder da Coreia do Norte Kim Jong-il é “velhote flácido”, vítima de “trauma físico e psicológico”.
Mas crer, como a secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton, que as fugas seriam “ataque não só aos interesses da política externa norte-americana, mas de toda a comunidade internacional”; ou que o WikiLeaks, como disse o presidente Barack Obama, cometeu crime grave, é nada além de manifestação de repugnante arrogância imperial. Como se o mundo não tivesse o direito de também fartar-se da mesma comida política podre servida em abundância aos selectos comensais dos palácios do poder em Washington.
Clinton deve ter farejado que o sentimento dominante depois de ler os telegramas seria de uma Washington à beira de um ataque de nervos digno de personagem de Almodovar. Por exemplo, um aliado-chave dos EUA, como Berlusconi, descrito como “ridículo, patético”, “indiferente ao destino da Europa” e perigosamente íntimo de Putin, do qual parece “o porta-voz”, visto como ameaça equivalente a Ahmadinejad. Até que ponto chega a paranóia? A embaixada dos EUA em Moscou, por falar nisso, descreve Putin como um “cão alfa” que comanda a Rússia, virtualmente “um Estado-máfia”; alguém mais cínico lembrará que a mesma definição aplica-se ao ex-vice-presidente Dick Cheney durante a era George W. Bush.
Em todo o mundo, quem tenha QI acima de 75 já desconfia que os diplomatas dos EUA espionam os próprios colegas na ONU (por ordem de Clinton); que Washington comandou um bazar de liquidação para obrigar pequenos países a aceitar prisioneiros de Guantánamo; que o establishment militar/de informações do Paquistão está articulado com os Taliban; e que o rei saudita Abdullah bin Abdul Aziz, esse defensor paradigmático da democracia e dos direitos humanos, exigiu que os EUA ataquem o Irã.
Temer o Irã xiita, afinal de contas, sempre foi regra nesse bando de ditadores/autocratas sunitas impopulares que vivem a suplicar que os EUA lhes vendam as armas que os mantêm no poder.
Mas a coisa fica muito mais séria, se se tem o embaixador dos EUA na Turquia, a dizer que o primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan “é um fundamentalista. Ele odeia -nos religiosamente” e que o seu ódio “se espalha”. Isso é absolutamente falso. É mentira.
Ou que Robert Gates, “O Supremo” do Pentágono, diz ao ministro das Relações Exteriores da Itália Franco Frattini que o Irão não fornece armas aos Taliban – e assim desmente toda uma massiva campanha de propaganda de demolição orquestrada pelo Pentágono que já durava meses.
Não há prova alguma de que a liderança coletiva em Pequim tenha sido o verdadeiro poder por trás dos ciber-ataques que o Google sofreu. E quando o ex-vice-ministro de Relações Exteriores da Coreia do Sul Chun Yung-woo disse ao embaixador dos EUA em Seul que uma nova geração de líderes do partido chinês já não vêem a Coreia do Norte como aliado útil, o quanto, nessa ‘informação’, é exclusivamente opinionismo de auto-preservação e auto-ajuda? Afinal de contas, Chun é hoje conselheiro de segurança nacional do presidente da Coreia do Sul.
O contexto é a chave, em todas as fugas – cerca de 220 até agora. Os diplomatas e funcionários de baixo escalão que falam nesses telegramas dizem, essencialmente, o que o Departamento de Estado deseja ouvir, ou fazem bluff, repetindo o que quer que já esteja instaurado como pilar da política de Washington; a quantidade de análise crítica independente naqueles telegramas é praticamente zero.
O espectáculo tem de continuar
Possibilidade muito mais sumarenta é lembrar que, doravante, nenhum dos cidadãos mais ativos do mundo jamais voltará a crer no que lhes seja empurrado como “fato” ou como “verdade” naquelas cosmicamente tediosas sessões de “conferência diplomática/governamental/militar com a imprensa e fotógrafos”.
Os telegramas Wiki escapados provam que a Europa – incapaz de se auto-poupar do ridículo – já vinha sendo marginalizada desde a era Bush, processo que agora culmina, com Obama integralmente dedicado à Ásia-Pacífico. Quanto ao que já escapou até agora, sobretudo sobre o Irão e a turma que faz e acontece no Golfo Pérsico, é pura propaganda israelita-norte-americana mal disfarçada.
Não por acaso, a maioria das manchetes globais batem todas o mesmo tambor, com variações sobre o tema “Israel festeja os telegramas divulgados como aval de sua política para o Irã”. Avaliação geral dos telegramas revela que, assim como Israel e o poderoso lóbi pró-Israel dos EUA trabalharam a dobrar para conseguir a invasão e destruição do Iraque, pode-se apostar que agora querem fazer o mesmo ao Irã.
Merece especial atenção o telegrama em que se lê que o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu é “elegante e sedutor, mas nunca cumpre o que promete” (promessas como continuar a construir colonatos na Cisjordânia e bombas, bombas, bombas sobre o Irão.)
O reality show das WikiFugas prosseguirá, com novidades online aos borbotões. Pelo menos o espectáculo demonstra, mais uma vez, que a boa informação está na Internet – não nos média-empresariais globais; e que os cidadãos globais devem fazer dela o melhor uso possível para desmascarar, e rir, do poder.
É salutar aprender que o imperador, em segredo, fala mal dos amigos e sicofantas, tanto quanto dos inimigos. Também é salutar aprender que o imperador é inimigo da democratização da informação. Mas agora, que já se sabe que o imperador está mesmo nu, devemos agradecer muito aos autores dos telegramas, seus amigos, inimigos e sicofantas, por nos oferecerem esse impagável reality show – espécie de continuação de “Corra que a Polícia vem aí”. Pena que o grande Leslie Nielsen, que morreu no domingo, não esteja aqui, para rir connosco.
(*) Tradução do coletivo da Vila Vudu.
Fonte: Carta Maior
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