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Creio que isso se deve à ligação estreita que existe entre o cinema e a história. De onde vem essa ligação, e de que história se trata?
Tal deve-se à função específica da imagem e ao seu carácter eminentemente histórico. É preciso especificar aqui alguns detalhes importantes. O homem é o único animal que se interessa às imagens enquanto tais. Os animais interessam-se bastante pelas imagens, mas na medida em que são enganados por elas. Podemos mostrar a um peixe a imagem de uma fêmea, ele irá ejectar o seu esperma; ou mostrar a um pássaro a imagem de outro pássaro para o capturar, e ele será enganado. Mas quando o animal se dá conta que se trata de uma imagem, desinteressa-se totalmente. Ora, o homem é um animal que se interessa pelas imagens uma vez que as tenha reconhecido enquanto tais. É por isso que se interessa pela pintura e vai ao cinema. Uma definição do homem, do nosso ponto de vista específico, poderia ser que o homem é o animal que vai ao cinema. Ele interessa-se pelas imagens uma vez que tenha reconhecido que não se tratam de seres verdadeiros. Um outro aspecto é que, como mostrou Gilles Deleuze, a imagem no cinema (e não apenas no cinema, mas nos Tempos modernos em geral) já não é algo de imóvel, já não é um arquétipo, quer dizer, algo fora da história: é um corte ele próprio móvel, uma imagem-movimento, carregada enquanto tal de uma tensão dinâmica. É essa carga dinâmica que se vê muito bem na fotos de Marey e de Muybridge que estão na origem do cinema, imagens carregadas de movimento. É uma carga deste gênero que via Benjamin naquilo a que chamava uma imagem dialéctica, que era para ele o próprio elemento da experiência histórica. A experiência histórica faz-se pela imagem, e as imagens estão elas próprias carregadas de história. Poderíamos considerar a nossa relação à pintura sob este aspecto: não se trata de imagens imóveis, mas antes de fotogramas carregados de movimento que provêem de um filme que nos falta. Era preciso restituí-las a esse filme (vocês terão reconhecido o projeto de Aby Warburg).
Mas de que história se trata? É preciso esclarecer que não se trata aqui de uma história cronológica, mas a bem dizer de uma história messiânica. A história messiânica define-se antes de mais nada por dois caracteres. É uma história da Salvação, é preciso salvar alguma coisa. E é uma história última, é uma história escatológica, em que alguma coisa deve ser consumada, julgada, deve passar-se aqui, mas num tempo outro, deve, portanto, subtrair-se à cronologia, sem sair para um exterior. É essa a razão pela qual a história messiânica é incalculável. Na tradição judaica há toda uma ironia do cálculo, os rabinos faziam cálculos muito complicados para prever o dia da chegada do Messias, mas não paravam de repetir que se tratavam de cálculos proibidos, pois a chegada do Messias é incalculável. Mas, ao mesmo tempo, cada momento histórico é aquele da sua chegada, o Messias é sempre já chegado, está sempre já aí. Cada momento, cada imagem está carregada de história, porque ela é a pequena porta pela qual o Messias entra. É esta situação messiânica do cinema que Debord partilha com o Godard das Histoire(s) du cinéma. Apesar da sua antiga rivalidade – Debord disse em 68 de Godard que ele era o mais tolo de todos os Suíços pró-chineses –, Godard reencontrou o mesmo paradigma que Debord tinha sido o primeiro a traçar. Qual é esse paradigma, qual é essa técnica de composição? Serge Daney, acerca das Histoire(s) de Godard, explicou que era a montagem: “O cinema procurava uma coisa, a montagem, e era dessa coisa que o homem do século XX tinha uma necessidade terrível”. É o que mostra Godard nas Histoire(s) du cinéma.
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Mas voltemos às condições de possibilidade do cinema, a repetição e a paragem. O que é uma repetição? Há na Modernidade quatro grandes pensadores da repetição: Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Gilles Deleuze. Os quatro mostraram-nos que a repetição não é o retorno do idêntico, do mesmo enquanto tal que retorna. A força e a graça da repetição, a novidade que traz, é o retorno em possibilidade daquilo que foi. A repetição restitui a possibilidade daquilo que foi, torna-o de novo possível. Repetir uma coisa é torná-la de novo possível. É aí que reside a proximidade entre a repetição e a memória. Dado que a memória não pode também ela devolver-nos tal qual aquilo que foi. Seria o inferno. A memória restitui ao passado a sua possibilidade. É o sentido desta experiência teológica que Benjamin via na memória, quando dizia que a recordação faz do inacabado um acabado, e do acabado um inacabado. A memória é, por assim dizer, o órgão de modalização do real, aquilo que pode transformar o real em possível e o possível em real. Ora, se pensarmos nisso, trata-se também da definição do cinema. Não faz o cinema sempre isso, transformar o real em possível, e o possível em real? Podemos definir o já visto como o fato de “perceber algo do presente como se já tivesse sido”, e o inverso, o fato de perceber como presente algo que já foi. O cinema tem lugar nessa zona de indiferença. Compreendemos então porque o trabalho com imagens pode ter uma tal importância histórica e messiânica, pois é uma forma de projetar a potência e a possibilidade em direção ao que é por definição impossível, em direção ao passado. O cinema faz então o contrário do que fazem as mídias. As mídias dão-nos sempre o fato, o que foi, sem a sua possibilidade, sem a sua potência, dão-nos portanto um fato sobre o qual somos impotentes. As mídias adoram o cidadão indignado mas impotente. É o mesmo objetivo do telejornal. É a má memória, a que produz o homem do ressentimento.
Ao colocar a repetição no centro da sua técnica composicional, Debord torna de novo possível aquilo que nos mostra, ou melhor, abre uma zona de indecidibilidade entre o real e o possível. Quando mostra um trecho do telejornal, a força da repetição é tal que deixa de ser um fato consumado, e volta a ser, por assim dizer, possível. Nos perguntamos: “Como isto foi possível?” – primeira reação –, mas ao mesmo tempo compreendemos que sim, tudo é possível, mesmo o horror que nos fazem ver. Hannah Arendt definiu um dia a experiência final dos campos como o princípio do “tudo é possível”. É também nesse sentido extremo que a repetição restitui a possibilidade.
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Estas duas condições transcendentais não podem nunca estar separadas, elas formam un sistema conjuntamente. No último filme de Debord há um texto muito importante logo no início: “Mostrei que o cinema se pode reduzir à esta tela branca, e à esta tela preta”. O que Debord entende por isto é precisamente a repetição e a paragem, indissolúveis enquanto condições transcendentais da montagem. O preto e o branco, o fundo em que as imagens estão tão presentes que nem as conseguimos ver, e o vazio em que não há imagem alguma. Existem aqui analogias com o trabalho teórico de Debord. Se tomarmos, por exemplo, o conceito de “situação construída” que deu nome ao situacionismo, uma situação é uma zona de indecidibilidade, de indiferença entre uma unicidade e uma repetição. Quando Debord diz que é preciso construir situações trata-se sempre de algo que se pode repetir e também algo de único.
Debord o menciona ainda no final de In girum imus nocte et consumimur igni, quando, em vez da tradicional palavra “Fim”, aparece a frase: “A retomar do início”. Há aqui igualmente o princípio que trabalha no próprio título do filme, que é um palíndromo, uma frase que se volta nela mesma. Neste sentido, há uma palindromia essencial no cinema de Debord.
Juntas, a repetição e a paragem realizam a tarefa messiânica do cinema de que falávamos. Esta tarefa tem essencialmente a ver com a criação. Mas não é uma nova criação depois da primeira. Não se deve considerar o trabalho do artista unicamente em termos de criação: pelo contrário, no fundo de cada ato de criação há um ato de des-criação. Deleuze disse um dia, acerca do cinema, que cada ato de criação é sempre um ato de resistência [O Ato de Criação por Gilles Deleuze]. Mas o que significa resistir? É antes de mais nada ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte que o fato que aí está. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento define-se antes de tudo pela sua capacidade de des-criar o real.
Se esta é a tarefa do cinema, o que é uma imagem que foi assim trabalhada pelas potências da repetição e da paragem? O que muda no estatuto da imagem? É preciso repensar aqui toda a nossa concepção tradicional da expressão. A concepção corrente da expressão é dominada pelo modelo hegeliano segundo o qual toda a expressão se realiza numa mídia quer seja uma imagem, uma palavra ou uma cor, que no fim deve desaparecer na expressão acabada. O ato expressivo é consumado quando o meio, a mídia, já não é percebida enquanto tal. É preciso que a mídia desapareça no que nos dá a ver, no absoluto em que se mostra, que nele resplandece. Pelo contrário, a imagem que foi trabalhada pela repetição e pela paragem é um meio, uma mídia que não desaparece no que nos dá a ver. É o que eu chamaria de “meio puro”, que se mostra enquanto tal. A imagem dá-se a ver ela própria em vez de desaparecer no que nos dá a ver. Os historiadores do cinema assinalaram como uma novidade desconcertante o fato de que, em Monika de Bergman (1952), a protagonista, Harriet Andersson, fixa de repente o seu olhar na objetiva da câmara. O próprio Bergman escreveu a propósito desta sequência: “Aqui e pela primeira vez na história do cinema estabelece-se de súbito um contato direto com o espectador”. Desde então, a fotografia e a publicidade banalizaram este procedimento. Estamos habituados ao olhar da estrela de pornô que, enquanto faz aquilo que tem a fazer, olha fixamente a câmara, mostrando assim que se interessa mais pelos espectadores do que pelo seu partner.
Desde os seus primeiros filmes e de forma cada vez mais clara, Debord mostra-nos a imagem enquanto tal, isto é, e segundo um dos princípios teóricos fundamentais de A sociedade do Espetáculo, enquanto zona de indecidibilidade entre o verdadeiro e o falso. Mas existem duas maneiras de mostrar uma imagem. A imagem exposta enquanto tal já não é imagem de nada, é ela própria sem imagem. A única coisa da qual não se pode fazer imagem é, por assim dizer, ser imagem da imagem. O signo pode significar tudo, exceto o fato de estar a significar. Wittgenstein dizia que o que não se pode significar, ou dizer num discurso, o que é de alguma forma indizível, isso mostra-se no discurso. Existem duas formas de mostrar essa relação com o “sem-imagem”, duas formas de fazer ver o que já não há nada para ver. Uma é o pornô e a publicidade, que fazem como se houvesse sempre o que ver, ainda e sempre imagens por detrás das imagens; a outra a que, nessa imagem exposta enquanto imagem, deixa aparecer esse “sem-imagem”, o que é, como dizia Benjamin, o refúgio de toda a imagem. É nesta diferença que se articulam toda a ética e toda a política do cinema.
(Giorgio Agamben, «Le cinéma de Guy Debord» (1995), in Image et mémoire, Hoëbeke, 1998, pp. 65-76.)
Fonte: http://epifenomenos.blogspot.com/
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