sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Balanço crítico acerca da Ação Global dos Povos no Brasil (3) - Por Felipe Corrêa

Balanço crítico acerca da Ação Global dos Povos no Brasil (3)

Com a priorização da cultura e da identidade em detrimento da política o movimento diminuía sua capacidade de intervenção na realidade, na mesma medida em que forjava e definia uma cultura comum e uma identidade coletiva. Por Felipe Corrêa

A CONSTRUÇÃO FORMULADA SOBRE A CRÍTICA
Entre a cultura, a identidade e a políticaA esquerda clássica deu sempre pouco espaço às questões culturais e identitárias. Na realidade, muito por razão de uma visão marxista que reflete um exclusivismo da esfera econômica — diversas vezes fundamentado em uma leitura mecanicista do determinismo da infra-estrutura em relação à superestrutura –, deu-se uma quase exclusividade aos aspectos de classe, suprimindo-se questões que dizem respeito à cultura e à identidade. Priorizou-se o objetivo, o racional; negou-se o subjetivo, o emocional. Paixões, desejos, sentimentos, nunca foram bem aceitos pela esquerda clássica, salvo algumas exceções. O fato é que mesmo nos movimentos de base classista, como foi, por exemplo, o sindicalismo revolucionário no Brasil da Primeira República, sempre houve a construção de uma cultura (ainda que nesse caso fosse uma cultura de base classista) e de identidades coletivas, que constituíram os elementos que foram responsáveis por dar uma liga fundamental ao movimento. O mesmo se poderia dizer, por exemplo, da Revolução Chinesa, que fundamentou suas diretrizes na cultura — muitas vezes até nas próprias emoções — e na formação de identidades coletivas para o movimento revolucionário. Defender o classismo, nesse sentido, de maneira alguma significa negar cultura e identidade. Mas, infelizmente, para grande parte da esquerda, esses aspectos não passavam de “desvios pequeno-burgueses”.

Levando em conta, corretamente, as demandas de cultura e identidade, no entanto, o novo movimento impulsionado pela AGP terminou, como a maioria dos novos movimentos sociais, enfatizando essas questões em detrimento da participação política. A questão era a seguinte: a principal bandeira do movimento era a luta contra a “globalização”, sendo esta entendida, para o movimento, como o avanço do neoliberalismo em escala mundial e consolidando-se como modelo único para o mundo, principalmente a partir da política Thatcher-Reagan e do fim do “socialismo real”.

Portanto, independente das bandeiras culturais e identitárias levantadas, deveriam ser prioridade as avaliações das forças em jogo, que terminavam por caracterizar o poder do neoliberalismo no mundo, e, fundamentalmente, no Brasil. Deveria também ser prioridade, a partir dessa leitura, a busca de incidência na realidade, tendo como perspectiva a mudança dessa correlação de forças. Essa intervenção real no jogo de forças é o que estou chamando de participação política. Ou seja, havia a necessidade de constituir uma força com o nosso movimento e, por meio de ações, combater a escalada do neoliberalismo. Era em torno disso que se davam os principais objetivos políticos, de curto e médio prazo, do movimento.

No entanto, na construção do movimento havia um problema. As demandas culturais e identitárias deixavam pouco espaço para as questões políticas. O perfil dos “ativistas” — jovens, na maioria dos setores médios da sociedade, ligados à contracultura, muitos vegetarianos, estudantes de universidades públicas, escolas particulares alternativas etc. — facilitava a criação dessa cultura militante e de uma identidade coletiva que se refletiam em um determinado estilo de vida. Os assuntos de interesse, no que ia para além da política, aproximavam os ativistas, a idade, a classe de origem, o local de estudo, tudo isso naturalmente criava um perfil do movimento no país [1]. Obviamente, não quero generalizar; havia exceções (militantes mais velhos, não ligados à contracultura, da classe trabalhadora etc.), mas o fato é que a cultura militante e a identidade coletiva geradas terminaram por refletir esse perfil que era o da maior parte, ou pelo menos da parte mais influente, que hegemonizava o movimento.

A consequência disso foi o crescente afastamento da incidência real na realidade e das preocupações políticas, que aos poucos foram sendo incorporadas como um elemento estético que fazia parte do “kit ativista”. Muito mais interessados no “grupo-fechado-em-si” do que na atuação política coletiva, os ativistas, muito frequentemente, substituíram a política pela cultura e pela identidade. Ou seja, a preocupação de constituir uma força para incidir na realidade passou para segundo plano. Esse “grupismo”, a cultura do grupo fechado em si mesmo, foi estimulado também pela cultura e a identidade criadas: ficava difícil para pessoas “diferentes” se aproximarem. Afinal de contas, tentar se aproximar de um grupo em que os assuntos eram os mesmos, que os interesses eram semelhantes e que o perfil dos participantes era parecido, era um fator complicador. Adultos trabalhadores tentaram por vezes se aproximar, mas se afastaram. Para mim, diversos desses afastamentos ocorreram por falta de identificação pessoal com a certa homogeneidade que preponderava no movimento [2].

Com a priorização da cultura e da identidade em detrimento da política — algo que, a meu ver, nunca foi proposital, mas “simplesmente aconteceu” — o movimento diminuía sua capacidade de intervenção na realidade, na mesma medida em que forjava e definia uma cultura comum e uma identidade coletiva. O movimento aos poucos foi tendo mais a função de transformar a própria militância, do que de transformar aquilo que estava fora do movimento — a realidade social.

O pessoal e o político
Outro problema da esquerda clássica era, ainda no campo das relações humanas, o desdém para com os vínculos pessoais e as amizades que se criavam dentro das lutas. Política era uma coisa, relações sociais, outra.O novo movimento que surgia evidenciava os limites dessa prioridade essencialmente política em detrimento das relações sociais, pessoais. Acreditava-se que elas eram relevantes, senão fundamentais, no processo de luta. No entanto, surge o problema, junto com a própria noção de “grupo de afinidade”, endossada por muitos da geração AGP. De que afinidade se falava afinal? Política? Pessoal? A soma da premissa da necessidade da construção de novas relações sociais e pessoais com a idéia de grupo de afinidade teve como resultado grupos que tinham mais afinidades pessoais do que políticas.

O problema é que o critério para pertencimento ao coletivo não se dava mais em relação aos objetivos e métodos políticos de atuação, mas se a pessoa se dava bem com os outros, se nutria os mesmos interesses etc. O critério de união não era programático, ou seja, não se buscava agregar em torno de uma proposta política; as pessoas iam chamando seus conhecidos, buscando interessados que apareciam naturalmente. Surgia daí uma tendência de reforçar a mesma cultura e a mesma identidade que vinha sendo criada, num ato de auto-alimentação do próprio movimento. O discurso da diversidade era substituído, na prática, por uma homogeneização sem precedentes. Permitia-se ou não o ingresso coletivo pela afinidade pessoal e não pela convivência política; conflitos pessoais dentro dos grupos impediam a participação política coletiva. Não se separava o que era pessoal do que era político. Se na teoria se defendia que pessoal e político deveriam constituir um todo coerente, na prática o pessoal se sobrepunha ao político.

O mesmo valia para o critério de alianças. Sem posições programáticas bem definidas e com o pessoal sobrepondo-se ao político, não é difícil prever que as alianças, em grande medida, obedeciam à mesma regra. Não havia análise da realidade e priorização de setores, movimentos, grupos etc. que deveriam nortear as alianças. Juntava-se quem aparecia. E como era natural, um grupo com um determinado perfil tendia a atrair pessoas com o mesmo perfil. Sem um esforço para romper esse círculo, ele se auto-alimenta indefinidamente, fato que se tornou realidade.

Outro fator que se evidenciou em detrimento do político, priorizando o individual, foi a substituição do conteúdo pela forma. Prática bastante evidente hoje em dia, persuadiu parte significativa dos ativistas do movimento que, utilizando a máxima do “fazer da sua vida algo próximo de seus ideais” — um princípio bastante razoável, é verdade — passavam no campo pessoal à forma do “politicamente correto”, na mesma medida em que se afastavam do conteúdo político. Explico.

É uma característica relativamente comum incorporar elementos do âmbito pessoal, em vez de levá-los para fora, para o campo da mudança social. Exemplos disso são infindáveis, mas só para exemplificar, posso citar: passar a chamar os negros de afro-americanos e acreditar que o problema do racismo está resolvido; utilizar linguagem inclusiva e pensar que o problema de gênero está solucionado; consumir alimentos sem agrotóxicos e acreditar que o problema do agronegócio está resolvido etc. É fato que, também inconscientemente — nunca ouvi ninguém falar “vou priorizar o individual em detrimento do político” ou defender essa posição abertamente –, isso “simplesmente aconteceu”, tornou-se verdade prática sem uma reflexão teórica que lhe desse sustentação. Puxados por aquilo que na realidade é mais simples, ou seja, uma mudança no comportamento individual, os ativistas afastavam-se das atividades no campo social, evidentemente mais complexas, visto que elas implicavam conviver com o diferente, discutir, ter argumentos, persuadir — em suma, tudo o que implica a luta.

Durante o crescimento da AGP no Brasil evidenciaram-se diversos fatos nesse sentido. A cultura do “politicamente correto” era promovida, incentivando-se, ainda que tacitamente: utilizar linguagem inclusiva [3], ler somente mídia alternativa, ser vegetariano ou vegano, andar de bicicleta, optar pela vida coletiva (morar com amigos etc.), ter relacionamento aberto e/ou bissexual, não consumir produtos de grandes marcas ou de marcas que produziam em sweatshops, utilizar software livre, evitar os debates mais acirrados na forma etc. O ativista tinha de ser uma pessoa quase perfeita, sem todos os vícios da sociedade presente e buscar não se “contaminar” com tudo de errado que nela havia — fato que não deixava de herdar da contracultura certo costume de um vigiar o comportamento do outro. Apesar disso, nossa geração realizou poucas lutas contra a opressão de gênero, a grande imprensa, os matadouros, a discriminação sexual, a exploração dos trabalhadores da indústria automobilística, das corporações e dos sweatshops etc. Há diversos exemplos, mas quero insistir num ponto central: com o passar do tempo, o comportamento individual foi substituindo a política coletiva e a mudança do indivíduo passou constantemente a sobrepor a luta — a busca pelo modelo do “ativista perfeito e coerente” afastava-os da realidade e complicava ainda mais a interação com pessoas “normais”, diferentes portanto.

O fim da política classistaA esquerda clássica, com influência determinante do marxismo ortodoxo, que assumia o citado mecanicismo determinista em relação à economia, colocava o proletariado urbano industrial como um sujeito revolucionário determinado a priori. A luta de classes definia-se a partir do critério da exploração e a linha que dividia as classes era traçada com base nos meios de produção. De um lado, a burguesia, proprietária dos meios de produção, de outro, o proletariado, trabalhadores que só possuíam sua própria força de trabalho. Havia, também, muitas vezes, um outro mecanicismo teleológico de acreditar que a mudança no modo de produção traria, inevitavelmente, a solução de outras questões políticas (abolição do Estado) e sociais/culturais (problemas de gênero etc.).

Estava claro para o nosso movimento que havia sérios problemas nessa teoria. Por um lado, sabia-se que o proletariado industrial poderia ter tido papel de destaque em diversas lutas, mas era evidente que o campesinato (evidenciado pelo levante zapatista, por exemplo), setores precarizados e excluídos, por outro, também haviam sido responsáveis por mobilizações e episódios de luta significativos. Parecia-nos que o sujeito revolucionário não poderia ser concebido a priori, fora de um processo concreto de luta, e que o critério puro e simples da exploração do trabalho assalariado parecia insuficiente para demarcar as classes sociais. Parecia também evidente que a luta econômica não resolveria automaticamente problemas políticos, culturais e ideológicos.

Essas negações e dúvidas, rapidamente, converteram-se em uma posição, para muitos, de que o próprio conceito de classe estava em xeque; defendia-se, com frequência, que não se podia mais analisar a sociedade com base no critério de classe. Entretanto, não se buscou teorizar sobre outras possibilidades de utilizar o conceito de classe e não se questionou o fato de as mobilizações não possuírem base e nem terem conteúdo classista. A própria luta de classes, ainda que expressa no movimento por meio do princípio anticapitalista, era abandonada como elemento de leitura da sociedade, ou mesmo como perspectiva. Dava-se a todas as lutas específicas (negros, feminismo, movimento LGBT, etc.) a mesma relevância, senão mais, que as lutas de base classista.

Não que elas não tivessem (e que ainda não tenham) relevância; muito ao contrário. Mas elas não poderiam, nunca, ser desvinculadas de uma perspectiva classista e anticapitalista. Ou seja, a inclusão de parte desses setores no mercado capitalista, como forma de inserção e compensação, deveria ser rechaçada; não poderia ser sustentada como bandeira do movimento. Afinal, não faria sentido gays ricos, mulheres ricas etc. poderem gozar dos benefícios do capitalismo ao passo que os gays e mulheres pobres não poderiam… Aspectos que não foram levados em conta para além do discurso. Afinal, inserir a questão de classe no debate implicaria uma autocrítica que a autocomplacência e a auto-exaltação do movimento não permitia. Pareceria um ortodoxo, “velho e empoeirado”, querendo trazer questões que “já haviam sido superadas”.

No entanto, havia algo mal resolvido. Ainda que o conceito clássico de classe pudesse ser questionado, não havia dúvidas de que a sociedade continuava extremamente desigual. Fossem essas diferenças em termos de distribuição de renda (riqueza/pobreza), propriedade dos meios de produção (incluindo a terra), gestão das empresas, poder político, acesso à educação, saúde etc. Se a principal bandeira do movimento era a luta contra o neoliberalismo e se o neoliberalismo tinha consequências nefastas para a maior parte da população, ou seja, a base dessa pirâmide de desigualdade, querer fazer um movimento que representasse somente os níveis medianos dessa pirâmide, desconsiderando, no caso do Brasil, entre 70% e 80% do país, não poderia significar outra coisa senão um elitismo contrário à ação direta que era defendida. Só poderia significar uma parcela pequena da sociedade, relativamente inserida no capitalismo (pelo menos no que diz respeito à renda familiar, relacionamento, acesso à educação e outros serviços), que lutava em nome de outros, para os outros, em seu lugar.

Um elitismo que, ainda que na teoria sustentasse o envolvimento popular amplo nas lutas, contentava-se, de certa maneira, com a participação extremamente restrita em termos de classe. De novo, sem enfatizar isso abertamente — ninguém nunca disse “acho que os setores de trabalhadores mais precarizados, menos inseridos no capitalismo, não devem participar das mobilizações” –, fazia-se implicitamente uma opção de classe, distinta de um posicionamento classista, que seria o de buscar um envolvimento maior dos setores que, de fato, eram os que sofreriam as maiores consequências com o avanço do neoliberalismo. Mesmo que “sem querer”, o movimento abandonava o classismo em nome de uma prática de setores médios da sociedade.

Novo versus velho
Se a esquerda clássica vinha caracterizada por aquela imagem tradicional do militante chato, velho, barbudo e barrigudo, sempre mal-humorado, com aquele mesmo discurso, que não atraía mais ninguém, havia uma necessidade de se contrapor a isso. Essa imagem da esquerda não atrairia, de fato, a juventude que estava disposta a lutar. Eram necessárias novas fórmulas e adotou-se uma delas — muito em evidência no setor estudantil do Maio de 68 francês –, do discurso do “novo” contra o “velho”. Era, no fundo, uma tentativa de pautar uma nova imagem para uma nova esquerda que surgia e que queria superar os velhos problemas.

Os novos militantes deveriam ser bem-humorados, modernizar o discurso, reformular o material de propaganda etc. Essas novas propostas faziam com que parte significativa do movimento acreditasse, de fato, estar criando algo novo. O espírito parecia esse: criar algo novo, ainda que não se entendesse direito o que estava sendo criado. E não havia problemas nisso, visto que o próprio zapatismo era assim. Afirmava-se de esquerda e, com o tempo, ficava cada vez mais libertário; estava armado, constituía um exército, mas defendia os processos horizontais de tomada de decisão… Havia uma onda na qual emergiam novas experiências, novas idéias, e parecia que elas possuíam pouca relação com a velha esquerda.Essa sensação de “estar criando o novo” afastava, de certa maneira, os envolvidos de um estudo teórico mais aprofundado [4] e gerava certa arrogância por parte dos ativistas que acreditavam, de fato, estar reinventando a roda. Uma arrogância que era estimulada pelo espírito jovem e pela sensação de estar fazendo algo que nunca havia sido feito.

Esses fatos impediram as aproximações com movimentos de bases sociais mais amplas, já que o universo deles parecia fazer parte do velho mundo, que estávamos em vias de superar. Afinal, eram movimentos da esquerda clássica, com velhos burocratas, com idéias e práticas antigas que não “combinavam” com o nosso movimento. Tais fatos também complicaram a expansão do movimento e criaram dogmatismos e sectarismos característicos da velha esquerda. Novamente, o movimento impulsionava as razões de seus próprios limites.

Disciplina, compromisso e regularidade
A velha esquerda valorizava aspectos como o espírito de sacrifício, a disciplina, a necessidade do trabalho permanente, a organização, as cobranças por problemas de responsabilidade etc. Evidentemente tudo isso permeado completamente de autoritarismo.

O novo movimento acreditava que isso poderia ser um fator impeditivo para os interessados e oferecia o oposto como solução. Para resolver esses problemas de autoritarismo, certo espírito “libertário” fornecia as bases para afirmações opostas: espírito de sacrifício era coisa da Igreja; disciplina e cobrança, dos militares; trabalho permanente e organização, dos marxistas ortodoxos. Todos os valores que haviam sido criados pela esquerda anteriormente eram jogados no lixo, sem qualquer avaliação.

A dedicação e o espírito de sacrifício eram substituídos por uma cultura contrária ao compromisso, à disciplina e à regularidade no trabalho, que atingiu níveis doentios [5]. Postura que conforme ia sendo permitida — já que não se falava no assunto com medo de incorrer em autoritarismos — criava precedentes para outros que, no futuro, consciente ou inconscientemente, se baseariam nisso para também não cumprir com aquilo que haviam se comprometido. Assumir e não fazer não só foi aceito como, com frequência, virou a regra no movimento.

O trabalho permanente era substituído pela participação ocasional. Não era mais como outrora, que a vida se adaptava à militância; agora, a militância adaptava-se à vida; seria feita quando desse e se desse. A internet facilitava essa participação esporádica e irregular; a pessoa tocava sua vida com diversas outras prioridades e uma ou duas vezes por dia mandava seus e-mails e estava resolvido.

Essa cultura da irregularidade da militância evidenciava-se nos atos que, quando aconteciam — e para isso havia certo trabalho de divulgação, propaganda etc. — juntavam muita gente, não sem, imediatamente após, desmobilizar todos, inclusive parte da militância que ocupava o centro da organização do movimento. O trabalho só seria retomado na próxima manifestação. Enquanto isso, reuniões, discussões e algo mais; mas trabalho, de fato, havia muito pouco.Esse foi um dos motivos da cultura do trabalho de base nunca ter se desenvolvido na AGP. Por um lado, uma ligação desse tipo de trabalho com a velha esquerda, e por outro, algo incômodo e, por vezes, “trabalhoso demais” para merecer atenção. Um trabalho de formiga que tinha de ser desenvolvido pouco a pouco, e que não proporcionava o glamour, a adrenalina etc. dos atos de rua. Em todas as experiências com as quais tive contato falou-se pouquíssimo de trabalho de base, da sua necessidade, de seu método etc.

Outro elemento da nova esquerda era a ênfase nas festas como forma de luta, buscando, como nos outros casos, fugir do esquema “mobilização classista e combativa” da esquerda clássica. Nessa tentativa, havia muita influência dos carnavais politizados de outros países, fundamentalmente dos EUA e da Europa. As mobilizações de rua tomavam um espírito lúdico, muito mais atrativo na visão dos ativistas, e acreditava-se com isso que teríamos como aumentar a mobilização, inovando na forma [6].

Um pouco no espírito da TAZ de Hakim Bey, buscava-se festejar e protestar. Entretanto, o meio-termo tornava-se cada vez mais difícil e terminamos por encorajar muito mais a festa do que a luta. Não porque defendêssemos isso abertamente, como sempre, mas, na realidade, o espírito de grupo, a convivência, a diversão com música, bebida etc. eram muito mais interessantes que as lutas em si. Dada a “permissão” de abrir mão da disciplina, do compromisso e da regularidade, era natural que o “curso natural das coisas” impulsionasse o conjunto rumo àquilo que era mais agradável — a festa. Não me lembro de ter havido, de nossa parte, autocrítica séria nesse sentido.

Notas:
[1] Como qualquer movimento de maioria jovem, houve uma dificuldade de superar o fim da “fase Che Guevara”, que se encerra pelos vinte e tantos anos. Dando legitimidade à máxima “comunista aos 20, liberal aos 30 e conservador aos 40″, muito da juventude presente no movimento, com o tempo, foi abandonando a luta em favor de posições mais institucionalizadas, mais conservadoras, ou mesmo abandonando a política.
[2] Recordo de uma reunião da AGP no antigo Instituto de Cultura e Ação Libertária (ICAL) em que conversávamos alguns membros antes de uma reunião e chegou uma mulher. Perfil diferente dos presentes; mais velha, aparentava ser uma pessoa simples, menos instruída que a maioria no local, “cara” de trabalhadora. Tive a nítida impressão de que ao ouvir as conversas que aconteciam antes da reunião e ver o perfil dos presentes, a mulher sentiu-se como peixe fora d’água. Em vez de darmos atenção a ela, continuamos conversando sobre as “internas” do movimento, falando de fulano e cicrano, sobre o show não sei de quem etc. Depois de algum tempo, a mulher saiu. Nunca mais apareceu.
[3] Num determinado momento, no CMI, tivemos uma discussão sobre a questão da linguagem inclusiva. Sem negar o fato de que, de fato, o machismo se reflete na linguagem, minha preocupação era que as propostas para solução do problema pareciam estranhas demais. Quem afinal entenderia as arrobas ou os asteriscos: “companheir@s”, “companheir*s”? Não estaríamos fechando ainda mais o nosso círculo de relações? Outras soluções vieram de outras localidades, como, por exemplo, abolir nas palavras que envolviam gênero as letras “o” e “a”, trocando-as por “i”, uma letra neutra em termos de gênero. Não se utilizaria companheir@s, ou companheir*s, mas “companheiris” — uma maneira particular de conceber a linguagem inclusiva que não me tira da cabeça o velho e bom Mussum… Independente dos resultados, é um fato que os próprios termos em que se dava a discussão evidenciavam uma característica “grupista”, do falar para dentro, e uma despreocupação em atingir uma pessoa “normal”, fora dos círculos ativistas.
[4] Eu mesmo pensava que diversos daqueles assuntos vinham sendo trazidos pelos novos movimentos. Depois descobri que todos eles estavam discutidos, com profundidade, na literatura histórica das lutas sociais.
[5] Em 2001, havia um protesto marcado contra o FMI e o BM, cujo encontro havia sido cancelado por razão dos ataques de 11 de Setembro. Estávamos com tudo encaminhado e decidimos, como foi o caso em vários outros países, mudar o tema da mobilização. Em vez de protestar contra as instituições multilaterais, nos manifestaríamos contra a guerra que estourava no Afeganistão. Os presentes na reunião da AGP se animaram. Pensamos em fazer um teatro de rua, com centenas, talvez alguns milhares de pessoas, enfrentando-se mutuamente em plena Av. Paulista e, no final, todos cairiam no chão mortos, representando ludicamente os efeitos da guerra. O coletivo topou e, no meio daquela empolgação, um companheiro sugeriu: “- Quando todos estiverem no chão, poderíamos tocar Thriller, do Michael Jackson, e todos se levantarem e saírem dançando!” A assembléia aprovou e dividiram-se as responsabilidades: um companheiro gravaria a música numa fita cassete, um outro levaria o som e finalmente um outro arrumaria algo como um carrinho de supermercado para empurrar o som. No dia da manifestação, nem fita, nem som, nem carrinho, nem Thriller; todos caíram no chão e foi o fim o teatro. Pensei: “- Na reunião de avaliação vai sobrar para o pessoal que se comprometeu a fazer isso e não fez”. Na assembléia seguinte, de avaliação do ato, nem uma palavra foi mencionada em relação aos problemas de compromisso. “Fazia parte” combinar, se comprometer e não cumprir.
[6] Tanto assim que quando organizamos o A20, colocamos no cartaz de divulgação que haveria uma “festa contra a ALCA na Av. Paulista”. De fato, o cartaz atraiu alguns desavisados que acharam que não se tratava de um protesto de rua, mas, de fato, de uma festa. Ainda que com o fim da “festa” nada festivo, com uma surra da polícia, feridos e presos aos montes, alguns desses curiosos chegaram a permanecer no movimento por algum tempo, abandonando-o em seguida.
(Continua)
Fonte: http://passapalavra.info/

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