Não é preciso ser um gênio para prever que os motins hão-de regressar periodicamente se não ocorrerem transformações nesta sociedade fundamentalmente desigual e racista. Por Paul Tiyambe Zeleza
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Em momentos de insurreição nacional também é tentadora a busca de analogias. The Independent pretende que a Grã Bretanha experimentou seu momento Katrina. Tal como sucedeu em Nova Orleans, rebentaram os diques destinados a manter a ordem social e, do mesmo modo que a administração republicana do presidente Bush, o governo de coligação parece não saber o que há-de fazer, além de ameaçar com ações policiais ainda mais severas. Tal como com o furacão Katrina, este tem sido um momento angustiante para a Grã-Bretanha, fazendo as atenções incidirem nas classes subalternas, frequentemente invisíveis tanto para o Estado quanto para a elite. “Muito pouco tem sido feito por gerações sucessivas de políticos e servidores públicos para integrar estes indivíduos na sociedade normal. O rastilho desta explosão tem estado a arder desde há anos, talvez mesmo desde há décadas. Se algo bom pode emergir dos horrores dos últimos dias será que nós finalmente enfrentaremos a escandalosa exclusão de nossas classes subalternas.”
Alguns procedem a comparações mais evidentes. O caso dos motins franceses de 2005 é especialmente sedutor. Ambas estas explosões de fúria urbana foram desencadeadas por policiais matando homens negros em comunidades relativamente pobres, com uma vasta população minoritária e uma longa tradição de violência policial, de discriminação política e econômica e de privação de direitos. Os motins de Londres são ainda mais assustadores, afirma um observador, por conta de sua geografia social expansiva e de seu impacto. Enquanto as revoltas francesas estavam confinadas às banlieues [periferias], aos subúrbios remotos da linda Paris das elites e dos turistas, os motins britânicas estão “a chegar à porta das confortáveis residências das classes médias e médias-altas.” Isto é facilitado pelo fato de Londres ser uma cidade que se alastra e pelo fato de a demografia dos bairros pobres se caracterizar por uma mistura sócio-económico-étnica.
Outra analogia européia intrigante é a Grécia, onde a morte a tiro de um jovem em dezembro de 2008 desencadeou manifestações generalizadas, que agitaram Atenas ao longo de uma semana e pressagiaram os motins anti-austeridade dos meses recentes. Um autor que presenciou os dois conjuntos de manifestações observa que “ambos ocorreram sob governos conservadores que se recusaram até mesmo a reconhecer, e muito menos a tentar responder, às razões da insatisfação.” Como deveria ser desnecessário dizer, “uma violência urbana de tamanha intensidade não pode ser meramente atribuída a motivos oportunistas […] Se a Inglaterra quiser aprender com a violência urbana de outras cidades européias, deverá incidir a atenção nas motivações e nas razões de queixa dos participantes. Se não o fizer, na próxima vez as coisas serão piores e mais dolorosas, como sucedeu em Atenas.”
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Raça e classe sempre estiveram entrelaçadas no contexto da Grã-Bretanha imperial, a principal nação comerciante de escravos no século XVIII e a principal potência colonial nos séculos XIX e XX. Isto só para chamar a atenção para a circulação permanente das ideologias de raça e de classe entre a Grã-Bretanha e o seu império, que marcou as relações sociais tanto nas periferias coloniais como no centro metropolitano durante o apogeu do império e posteriormente. Em resumo, a Grã-Bretanha tem um problema persistente de desigualdade e exclusão raciais e de classe, que leva ocasionalmente à eclosão de motins. No pós-guerra irromperam motins raciais com uma frequência previsível: os motins de Notting Hill em 1958, os motins de Brixton em 1981, os motins de Handsworth e Broadwater Farm em 1985 e os motins de Brixton e Bradford em 1995.
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No fundo, este é um país falido liderado por uma classe política falida, apesar da retórica barata de “Grande Sociedade” do primeiro-ministro Cameron ou da extravagante encenação das núpcias reais. O Estado e seus funcionários policiais estão amplamente desacreditados. A capacidade da classe política para administrar a economia em benefício da maioria mais do que da minoria foi severamente danificada pela Grande Recessão e evaporou-se com o brutal regime de austeridade. Enquanto isso, políticos, policiais e a imprensa ficaram desacreditados pelo escândalo de escutas telefônicas envolvendo o império midiático de Murdoch. Os imperadores da classe política britânica nunca apareceram tão nus.
Muitas pessoas comuns não se deixaram impressionar, e menos do que todos as minorias marginalizadas e os trabalhadores mal pagos e subempregados. Alguns perguntam abertamente por que seus saques são piores do que os das elites. Para citar um escritor, “Enquanto os banqueiros saquearam publicamente as riquezas do país e não lhes sucedeu mal nenhum, não custa a entender o motivo por que aqueles que são excluídos do trem da alegria podem pensar que têm direito a meter no bolso um celular [telemóvel]. Alguns dos amotinados são explícitos. ‘Os políticos dizem que nós saqueamos e roubamos, mas eles são os verdadeiros gangsters,’ disse um deles a um repórter.”
Nas palavras pungentes de um comentarista, “Os amotinados de Londres são o produto de uma nação que se desmorona e de uma classe política insensível que lhes virou as costas.” A amplitude do desastre social é surpreendente. “Na bolha da década de 1920, os 5% mais ricos apoderaram-se de 1/3 da renda pessoal. Hoje, na Grã-Bretanha, a desigualdade em salários, riqueza e oportunidades de vida é a maior desde então. Só no ano passado, a fortuna conjunta dos 1.000 mais ricos da Grã-Bretanha subiu 30%, atingindo 333,5 bilhões [milhares de milhões] de libras.” O autor lamenta que “sucessivos governos britânicos conspiraram para gerar pobreza, desigualdade e desumanidade, exacerbadas agora pela perturbação financeira” e alerta, “Olhem para os bandos de jovens destruidores nas ruas das cidades e chorem todo o nosso futuro. A ‘geração perdida’ está a juntar-se para a guerra.”
O segundo contexto é a decadência da democracia britânica, a desestabilização ou desmobilização da participação popular em nível local e a centralização do poder manifestada pelo crescimento da vigilância eletrônica para a população como um todo e da vigilância policial contra os grupos marginalizados. Como observou um jornalista veterano, “Compreende-se que forasteiros presenciando os motins urbanos nesta semana pudessem pensar que as cidades britânicas sejam comandadas pela polícia e pelo ministro do Interior. É certo que existem conselhos municipais e que Londres tem um prefeito eleito, mas em lugar nenhum os vemos nos postos de comando. Não têm poder real e, portanto, gozam de pouco ou nenhum status como líderes cívicos. Na linha de frente está a polícia, e por trás dela apenas o poder central do Estado […] Não existe nada que em qualquer nível de governo substitua uma democracia adequada, aberta, receptiva.”
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Viu-se que a conjugação da austeridade econômica e da brutalidade policial é uma mistura combustível que tem alimentado as chamas da fúria nas cidades britânicas e agitado o país. Não é preciso ser um gênio para prever que os motins hão-de regressar periodicamente se não ocorrerem transformações nesta sociedade fundamentalmente desigual e racista. Como consequência desta insurreição, o modelo de austeridade britânico perdeu sua aura e agora serve como alerta para os limites da paciência popular perante as devastações selvagens do neoliberalismo, que levou à Grande Recessão e está desesperadamente tentando renascer das cinzas.
Este artigo foi publicado originalmente em The Zeleza Post.
Acerca do autor, veja aqui.
Traduzido para o Passa Palavra por Lucas Morais.
Fonte: http://passapalavra.info/
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