A catraca: uma questão estética
Da defesa de um morador de rua para que queimássemos a catraca dentro do terminal pude concluir que a estética do MPL de fato o transcendeu, inserindo-se nas releituras que a população faz da realidade. Por Legume Lucas
Participei na semana retrasada da oitava semana de luta pelo Passe Livre. Na manifestação deste ano em lembrança ao dia nacional do passe livre, dia 26 de outubro, me dediquei apenas a uma tarefa: carregar e proteger a catraca, o símbolo do MPL. Em São Paulo temos, há alguns anos, uma catraca de ônibus comprada em um ferro velho. Como cuidador da catraca, eu, com ajuda de outros militantes, tive que: enrolá-la com jornal e gase, comprar o querosene, carregá-la durante o ato, jogar e por fogo nela. Enquanto os militantes mais novos organizavam o jogral, negociavam com a polícia, cuidavam do trajeto, panfletavam, pude fazer reflexões sobre as mudanças e incorporação de significados que este símbolo provocou dentro do coletivo e para os paulistanos que conhecem de longe ou de perto as manifestações pelo Passe Livre.
Primeiro foi a dimensão simbólica da data. Por que fazemos atos no 26 de outubro? Esta data foi uma escolha do movimento, o limite dado para a aprovação do projeto de lei de passe livre estudantil em 2004 na cidade de Florianópolis. Deste ponto de vista, pouco importa que a lei tenha sido aprovada no dia 4 de novembro. Foi no 26 de outubro que se cercou a câmara dos vereadores em uma noite chuvosa, obrigando-os a sair em camburões da polícia debaixo de muitas ovadas. O vídeo sobre a primeira Revolta da Catraca foi amplamente utilizado nas atividades em escolas feitas pelo MPL-SP e é estranho pensar que boa parte dos militantes de hoje nunca o assistiram.
Segundo, foi o estranhamento ao ouvi-los dizer que precisávamos queimar a catraca no dia 26 porque era o nosso símbolo. Pensando um pouco, era de fato um símbolo criado por nós mesmos. Depois da plenária nacional que estabeleceu a data oficial de luta pensamos – no finado grupo de trabalho nacional – que seria interessante ter algo que unificasse as manifestações, e para tanto foi sugerida a queima da catraca, algo simples de fazer nas diversas cidades.
Já tínhamos um primeiro símbolo do movimento, o Zé Catraca, e a imagem foi amplamente difundida pelas revoltas em Florianópolis (2004 e 2005). Tão forte ficou a imagem que era comum ver outros grupos e agremiações partidárias tentarem se utilizar dele para ganhar adeptos, a União da Juventude Socialista, UJS, por exemplo, utilizou-o em suas mobilizações com o objetivo de filiar 100 mil pessoas. Naquele momento todos os partidos de esquerda procuravam associar sua imagem às revoltas por transporte coletivo ocorridas em todo país. Tentavam apropriar-se da simbologia criada pelas mobilizações sociais, dando um sentido inverso a estas, uma vez que as revoltas que originaram o MPL foram marcadas por uma forte oposição à atuação partidarizada, pelo repúdio ao aparelhamento e pela tentativa de construir uma participação horizontal.
A oposição ao modelo tradicional de esquerda era uma construção política e estética. Tanto que em São Paulo as camisetas do movimento eram apenas pretas ou brancas, recusávamos fazer outras cores, especialmente o vermelho, por entendermos que assim nos desassociávamos da simbologia de uma determinada esquerda. A estética do movimento era marcada também pelo tipo de material produzido. Nossos panfletos tinham gravuras, dobras, espaços em branco, fontes que procuravam diferenciar-se do mar de panfletos distribuídos, deixar com uma “cara do MPL” e ao mesmo tempo construir textos novos, com uma linguagem direta, portanto distante dos jargões de esquerda que para nós deviam ser abandonados.
A estética das manifestações com camisetas brancas e pretas foi claramente rompida em 2010-2011. Talvez porque já estávamos consolidados como movimento claramente diferenciado da esquerda tradicional, optamos por uma explosão de cores nas camisetas e jovens com camisetas azuis, roxas, cinza, rosa, laranja, brancas, verdes e até vermelhas encheram as ruas de São Paulo. A própria catraca queimando foi incorporada às novas camisetas. A criação de uma nova estampa passou por um processo longo de discussão em reuniões, pela criação de diversas versões, para por fim se incorporar o novo símbolo criado às camisetas. Ainda assim não são poucos os militantes, mesmo entre os mais novos, que acham o “Zé Catraca muito mais bonito”. É interessante constatar que embora os diversos coletivos do MPL tenham criado camisetas novas, com estampas diversificadas, desenhos elaborados, pessoas pulando a catraca, nenhuma fez um sucesso similar à original. A quebra da catraca por uma pessoa qualquer tem muita força.
A preocupação estética do movimento era e é representada em suas manifestações – a ausência da bandeiras, a recusa ao carro de som e a presença da bateria são marcas claras. Neste aspecto fica nítida a herança dos movimentos de resistência global. Ao construirmos uma manifestação horizontal, que permite a criação de discursos variados, não uniformizados por um microfone, possibilitamos o diálogo direto com a população, a conversa, a crítica. Não à toa tais manifestações costumam crescer quando caminhamos. A bateria foi criada como uma forma de animar e agitar a manifestação, criando nela um espaço cultural. A dificuldade evidente era não sermos músicos profissionais, então precisávamos encaixar os ensaios em dinâmicas já agitadas de vida e militância. Também contávamos com intervenções “artísticas”, ainda que pontuais, como o pastor contra as catracas e o exército de palhaços. Foi assim uma renovação estética das manifestações urbanas da esquerda.
Neste 26 de outubro de 2012 ficou clara uma outra renovação estética das manifestações ou, pelo menos, uma continuidade criativa. A presença da Fanfarra do Movimento Autônomo Libertário – que conta com militantes do MPL mas é um grupo independente, com agenda e atividades próprias – propiciou a audição de música com sopros, ousando ir além dos instrumentos de percussão tradicionalmente utilizados em manifestações. Nas palavras de um militante, “é melhor do que muito show por aí”. Inovação maior foi a presença do grupo teatral Servos da Catraca. A prática teatral dialogou diretamente com a manifestação, propondo dinâmicas e interações em momentos chave como a Secretaria de Transportes e o Terminal do Parque D. Pedro. Na primeira a manifestação chegava e eles já paravam a rua; o imponente Barão Catraca, perante aqueles baderneiros, declarava seu desprezo pela manifestação – afinal estavam na Secretaria, lugar de poder dos empresários de transporte. Na segunda ocasião o Barão já estava derrotado e era obrigado a assistir à queima de seu amor, a catraca. A união dos símbolos já constituídos e das novas práticas culturais deu-se em frente ao maior terminal urbano da América Latina, reforçando a perspectiva de construção do transporte a partir dos usuários, que naquele momento teriam derrotado os empresários de transporte.
Para além de minhas especulações estéticas sobre a queima da catraca e o diálogo estabelecido com a população, pude – ao ficar cuidando da catraca que precisava esfriar depois de ser queimada– estabelecer uma conversa direta com um morador de rua que acompanhou nossa chegada ao terminal. Ele defendia para mim que queimássemos novamente a catraca, desta vez dentro do terminal. Pude concluir que a estética do MPL de fato o transcendeu, inserindo-se nas releituras que a população faz da realidade.
Fonte: http://passapalavra.info
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