terça-feira, 13 de novembro de 2012

Jeitinho e jeitão: uma tentativa de interpretação do caráter brasileiro - Por Francisco de Oliveira.*

Ilustração: Cassio Lordeano, ilustrador de uma série de livros da Boitempo incluindo a Coleção Marx e Engels

Norbert Elias se destaca entre os modernos clássicos das ciências sociais por não recusar a investigação sobre o caráter das sociedades. É o que ele faz, brilhantemente, no seu derradeiro livro, Os Alemães, publicado em 1989, um ano antes de morrer, já nonagenário. Ali ele se pergunta, diretamente e sem rodeios, o que fez com que a Alemanha estivesse no coração das grandes tragédias modernas, a Primeira, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto.

Tinha condições subjetivas para tanto: viveu uma experiência dolorosa como soldado na Primeira Guerra Mundial; judeu, teve de se exilar da Alemanha durante o nazismo; sua mãe foi trucidada em Auschwitz. Norbert Elias tinha também credenciais intelectuais para tentar explicar como a nação que sintetizou a era das Luzes, a pátria de Kant, Hegel e Goethe, tenha desenvolvido a indústria do extermínio: estudou medicina e psicanálise, doutorou-se em filosofia e foi professor de sociologia na Inglaterra.

Para ele, o desenvolvimento tardio do capitalismo na Alemanha, a ausência de uma revolução burguesa no país, a unificação nacional sob o tacão militar de Bismarck, o culto à organização, do qual o militarismo é o emblema mais ostensivo – tudo isso criou um caráter alemão. Esse caráter distingue a sociedade germânica de todas as outras, mesmo as europeias. Para Elias, não são apenas circunstâncias históricas que explicam o surgimento de Adolf Hitler. Isso é uma meia-verdade. As ideias monomaníacas que engendraram a bestialidade fascista talvez não tivessem acolhida sem a existência prévia do caráter alemão, nos termos definidos por Norbert Elias.

Os cientistas sociais costumam recuar ante tal tipo de análise. Têm receio de serem julgados preconceituosos. E, talvez, de se virem excluídos da interlocução com a ciência social alemã, uma das mais brilhantes fontes do pensamento filosófico-social em todos os tempos.
Mas é por um caminho “norbertiano” que pretendo investigar o caráter brasileiro. Penso que o peculiar modo nacional de livrar-se de problemas, ou de falsificá-los, constitui o famoso jeitinho brasileiro.

Os clássicos do pensamento social brasileiro têm dificuldade em lidar com a questão do caráter nacional, que amalgama o subjetivo e o objetivo. Salvo, evidentemente, Gilberto Freyre. Mas o autor de Casa Grande & Senzalamascarou a sua investigação com a nostalgia de um tempo que nunca existiu, e com o enaltecimento da suposta – e ilusória – capacidade da metrópole lusitana em se adaptar aos trópicos coloniais. 

Por isso, ele enxergou no Nordeste açucareiro, a primeira região importante na formação do Brasil – que o historiador Evaldo Cabral de Mello definiu como “açucarocrata” –, uma dominação “doce”. O sociólogo de Apipucos construiu uma hipótese que serve de justificativa ideológica da sociedade decorrente da escravidão. A sua interpretação é, ela própria, uma das vertentes do jeitinho brasileiro. 

Sérgio Buarque de Holanda enfrentou melhor a questão. O seu “homem cordial” – para quem as relações pessoais e de afeto (para o bem ou para o mal) se sobrepõem à impessoalidade da lei e à norma social – é a própria encarnação do jeitinho brasileiro.

Caio Prado Júnior não ofereceu nenhuma contribuição sobre o assunto. Embora o seu marxismo fosse criativo e original, ele ficou prisioneiro da objetividade, o mantra que impediu gerações de marxistas, aqui e alhures, de investigar o caráter das nações. 

Antonio Cândido, nosso clássico moderno, tratou do tema em “Dialética da malandragem”, o poderoso ensaio sobre Memórias de um Sargento de Milícias, romance de Manuel Antônio de Almeida que se passa no Rio de meados do século XIX. Ainda que se aproxime decididamente do jeitinho, faltou ao ensaio, a meu ver, um pouco de irreverência, para que ele correspondesse à ginga do malandro carioca. Cândido respeita tanto o brasileiro pobre que aborda as figuras populares com uma reverência quase mística. Para ele, nossa sociedade é tão obscenamente desigual que qualquer crítica às classes dominadas não passa de preconceito – mais um – dos ricos.

Outros autores, como Roberto DaMatta, vão diretamente à problemática do caráter nacional. É o que ele faz em Carnavais, Malandros e Heróis. Não é pela vertente de DaMatta, contudo, que pretendo chegar lá. Busco desenvolver uma investida mais nitidamente materialista, mesmo sabendo que o abandono da investigação antropológica possa implicar empobrecimento da análise.
Eis a tese: o jeitinho é um atributo das classes dominantes brasileiras que se transmitiu às classes dominadas.

Conforme Marx e Engels de A Ideologia Alemã, as ideias e os hábitos das classes dominantes transformam-se em hegemonia e caráter nacional. No Brasil, a classe dominante burlou de maneira permanente e recorrente as leis vigentes, sacadas a fórceps de outros quadros históricos. O drible constante nas soluções formais propicia a arrancada rumo à informalidade generalizada. E se transforma, ao longo da perpétua formação e deformação nacionais, em predicado dos dominados.

Essa situação, que é social, se configura no malandro, o especialista no logro e na trapaça. O malandro, com sua modernidade truncada, foi primeiro o carioca. E esse carioca era geralmente pobre, mas não miserável. Como não poderia deixar de ser, era mulato: esgueirava-se por entre as classes e os estratos mais abastados, no típico – e falso – congraçamento de classes herdado do escravismo.

Tinha “bossa” quem dominava a aptidão para fugir ou escapar das soluções formais. Bossa que é a expressão do jeitinho, a maneira de ganhar a vida sem se submeter aos ditames da norma, de conviver sem ser reconhecido como fora da lei. A moderna música popular brasileira, nascida no Rio, com toda razão foi chamada de bossa nova. Ela foi um jeitinho de escapar das convenções musicais à la Vicente Celestino, cópia falsa do grande canto lírico italiano. E também um jeitinho de incorporar as malandragens do samba – de origem africana e escrava – ao universo das elites.

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A burla das classes dominantes brasileiras às normas seria atávica? Meu horror à burguesia (esse sim quase totalmente atávico) – cujo retrato acabado foi a açucarocracia pernambucana, perdulária e arrogante – tenderia a confirmar que o jeitinho é um caso de mau-caratismo, um dado subjetivo. Mas prefiro a trilha aberta por Norbert Elias: a burla é uma forma de adotar o capitalismo como solução incompleta na periferia do sistema. Incompleta porque o capitalismo trouxe para cá a revolução das forças produtivas, mas não as soluções formais da civilidade. As classes dominantes então “se viram”, dão um jeitinho para garantir a coesão de um sistema troncho e, comme il faut, a exploração.

Sem querer atribuir tudo aos nossos colonizadores, a semente do jeitinho já vicejava na irresolução que Portugal dá às questões de administração e governo da jovem – e enorme – colônia. Não dispondo nem de homens nem de recursos capazes da façanha de fazer a minúscula cobra engolir o enorme elefante, Portugal opta pela solução capenga das capitanias hereditárias. Na mesma época, tendo criado um novo caminho para o Oriente com Vasco da Gama, dom Manuel, o Venturoso, emprega até o fim os modestos recursos portugueses na conquista da Índia, e só consegue estabelecer relações comerciais em pontos isolados do sul do continente.
No Brasil, as capitanias são entregues a fidalgos, alguns com recursos ínfimos e a maioria quase sem nenhum capital. O resultado da colonização pelo método das capitanias foi pífio, à exceção de duas ou três. O fracasso na Índia é do mesmo porte, senão maior: Lisboa torna-se a meca das especiarias orientais, mas Portugal nunca ocupou a Índia. Sequer conseguiu com que a língua portuguesa tivesse peso expressivo entre as centenas de dialetos do país. A lembrança lusa mais forte ficou restrita a Goa e Macau.

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Voltemos ao caso do Rio, lembrado a propósito da malandragem e da bossa nova. Foi Juscelino Kubitschek, outro exemplar do homem cordial, quem jogou a pá de cal nas pretensões modernas do Rio: retirou-lhe a centralidade de capital e não botou nada no lugar. Incapaz de resolver os problemas cariocas, que já se apresentavam em grau superlativo, deu um jeitinho e transferiu a capital para Brasília, nos ermos do Planalto Central.

Espanta-se quem anda hoje pelas ruas da cidade que antigamente ostentava sua modernidade: o Rio ficou a cara do Brasil. A despeito do oba-oba em torno do renascimento carioca, basta observar ao redor do Palácio do Catete, antiga residência dos presidentes da República. O bairro que se oferece à vista exibe mediocridade urbana, pobreza ostensiva e tráfico de crack.

A fantasia da mulher carioca, linda e elegante (e que de fato disputava o topo da beleza com mulheres de outras nacionalidades, com a vantagem da miscigenação), deu lugar à imagem de mulheres – e homens – que andam com sandálias surradas e se vestem pobremente. Como não perceber aí sinais de uma modernidade truncada?

No caso de Juscelino e das classes dominantes, a mudança da capital foi um “jeitão” para deslocar um problema: criar uma nova fronteira para a expansão capitalista, catapultada pela indústria da construção civil. O jeitinho foi fazer isso por meio dos candangos, trabalhadores informais, depois abandonados à própria sorte, “sem lenço e sem documento”, como cantaria Caetano Veloso, ele próprio, conforme a análise de Roberto Schwarz, um cultor do jeitinho transformado em “verdade tropical”. O Brasil é assim, defende Caetano, a esquerda é que não o entende.

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Na segunda metade do século XIX, o café liderava a expansão econômica. Não só no Vale do Paraíba, em São Paulo ou mesmo no Brasil: o café era a mercadoria mais importante do comércio mundial. Só foi desbancado dessa posição, pelo petróleo, nos anos 40 do século XX. Mas o início da expansão do café se deu sobre o lombo dos escravos.

Qual foi o jeitão da classe dominante, no caso os cafeicultores, a partir do fim do escravismo, em 1888? Em vez de incorporar os ex-escravos à cidadania, fornecendo-lhes meios de cultivar a terra e se incorporarem ao trabalho regular, foram importar a mão de obra europeia, transformando São Paulo na maior cidade italiana do mundo. Malandramente, cheios de bossa, contornaram os problemas do fim do escravismo e se desresponsabilizaram pelos ex-escravos, de novo, como cantaria Caetano, pessoas “sem lenço e sem documento”.

Surgia o trabalho informal, quer dizer, sem formas. O jeitão da classe dominante obrigou os dominados a se virarem por meio do jeitinho do trabalho ambulante, dos camelôs que vendem churrasquinho de gato como almoço, das empregadas domésticas a bombarem de Minas e do Nordeste para as novas casas burguesas dos jardins Europa, América, Paulistano. E também para os apartamentos das elegantes – e já medíocres – madames de Copacabana, Ipanema e Leblon, propiciando o vexame bem brasileiro de criados negros, vestidos a rigor, servindo suco de maracujá a demoiselles que se abanavam como se estivessem nos salões parisienses.

Lá em cima, no Pernambuco açucarocrata, Gilberto Freyre podia criar então a nossa versão de E o Vento Levou. Casa Grande & Senzala é a mais formidável denúncia do estupro como formador da nacionalidade, mas visto de um ângulo nostálgico. Ainda não era o tempo das madames e demoiselles, mas o dos sinhôs e das sinhás e sinhazinhas.

O mais clássico dos clássicos do pensamento social brasileiro – Antonio Cândido, nossa referência moral e intelectual, considera Casa Grande & Senzalao livro mais importante das ciências sociais brasileiras – é também um pastiche. Sob determinado aspecto, ele é quase um deboche do jeitão de irresolução do problema da mão de obra e do seu rebaixamento às relações “adocicadas” – aquelas em que o filho do senhor transforma o negrinho, companheiro de travessuras, em cavalo vivo. Eis aí a lembrança mais festejada da infância dos senhores. Pais e mães da Casa Grande ensinavam aos filhos o jeitinho doce de ensinar e se divertir ensinando. Os filhos dos negros, por sua vez, aprendiam quem estaria sempre por cima, docemente…

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Getúlio Vargas, o estancieiro gaúcho que liderou a Revolução de 1930, tentou formalizar o jeitinho para acabar com o jeitão. Vale dizer: buscou civilizar a classe dominante para que o proletariado existisse. Criou uma legislação trabalhista avançada, mas a expansão capitalista seguiu desobedecendo as regras e, junto com os empregos formalizados pela nova legislação, a avalanche do trabalho informal engolfava todas as relações sociais.

A informalidade é a forma, o jeitinho de substituir as relações racionais e obrigatórias pela intimidade, como já demonstrou Sérgio Buarque. Mas essa substituição, assim que se apresenta o primeiro conflito, mostra sua outra face: a informalidade se converte no rigor mais severo, no apelo à arbitrariedade e não raro em exibições de crueldade. O senhor de engenho que se deitava com sua mucama era o mesmo que a castigava no tronco quando alguma falta, suposta ou verdadeira, lhe ofendia a propriedade.

Diga-se logo, para não nos autocaricaturarmos com nosso eterno “complexo de vira-lata” (apud Nelson Rodrigues), que Thomas Jefferson, o grande paladino da liberdade, também estuprava suas escravas. A diferença, essencial para distinguir o jeitinho de outras práticas de dominação, é que Jefferson deu o seu nome à sua descendência negra, coisa que nenhum dos nossos senhores de engenho chegou a fazer.

Em Pernambuco mesmo, as fábricas da Paulista, que chegaram a ser o maior complexo industrial têxtil da América Latina, eram propriedade dos Lundgren. E o membro da família que tocava a fábrica era um sueco que se deitou com 300 das suas operárias. Ele deixou uma prole enorme, mas não há notícia de pobres com sobrenome Lundgren. No máximo, na falta de sobrenome, davam-se aos negros escravos nomes de santos católicos. Daí a proliferação de sobrenomes “dos Santos” e de toda a corte católica dos altares.

Antes de Sérgio Buarque, Machado de Assis, ele mesmo um mulato, portanto conhecedor do truque do jeitinho, fez com que Dom Casmurro seja até hoje o retrato mais notável da classe dominante brasileira: “Por fora, bela viola, por dentro pão bolorento”, como se diz no popular. Bentinho é liberal por fora e escravista por dentro. Machado usou um jeitinho literário para legar um formidável enigma, ao qual já se dedicaram milhares de páginas: Capitu traiu mesmo ou foi vítima de uma vituperação de classe? Maria Capitolina, a Capitu, era mais pobre que o seu marido liberal, Bentinho. E, com seus “olhos de ressaca”, provavelmente tinha sangue negro.
Nascido inicialmente das contradições entre uma ordem liberal formal e uma realidade escravista, o jeitinho transformou-se em código geral de sociabilidade.

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Recordo um caso pessoal, passado há muito tempo. Eu trabalhava com Celso Furtado (rigorosamente antijeitinho), que recebia um diretor do Banco Interamericano de Desenvolvimento, por sinal conterrâneo seu. Este, vendo-me por perto, e julgando que eu não era parte da conversa, pediu-me água. Pediu a primeira, a segunda e a terceira vez. Fui obrigado a dizer-lhe que não confundisse gentileza com servilismo, e que da próxima vez ele mesmo se servisse. Não ocorria àquele senhor que alguém que não fosse da sua grei pudesse tomar parte de uma conversa com altos representantes da banca interamericana.

A origem do jeitinho, assim como a da cordialidade teorizada por Sérgio Buarque, se explica pela incompletude das relações mercantis capitalistas. Parece sempre que as pessoas estão “sobrando”. Elas são como que resquícios de relações não mercantis, não cabem no universo da civilidade. E às pessoas que sobram pode ser pedido qualquer coisa, já que é obrigação do dominado servir ao dominante.

Qualquer reunião brasileira está cheia de batidinhas nas costas na hora do cumprimento, impondo logo de saída uma intimidade que é intimatória e intimidatória. Um dos cumprimentos mais característicos de Luiz Inácio Lula da Silva, por exemplo, é bater com as costas da mão na barriga dos interlocutores. Mesmo em encontros formais, o primeiro gesto de Lula ao se aproximar de qualquer pessoa é tocar-lhe a barriga.

A matriz desses gestos encontra-se evidentemente no longo período escravagista. Nele, o corpo dos negros era propriedade, podia ser tocado e usado. O surpreendente é que esses gestos e costumes tenham persistido ao longo de 100 anos de vigência de um capitalismo pleno.

O escravismo e a escravidão não explicam inteiramente a “longa duração” da informalidade generalizada e dos hábitos que a acompanham. Os Estados Unidos tiveram um sistema escravista que chegou até a organizar fazendas de criação de negros. A ruptura com o escravismo custou à nação norte-americana uma guerra civil que deixou marcas até hoje. Mas o jeitinho não foi o expediente que usaram para superar os problemas colocados pelo capitalismo que avançava.
Aqui, o jeitinho das classes dominantes se impôs na abolição da escravatura. Primeiro veio a Lei do Ventre Livre: garotos e garotas negros eram libertados em meio à escravidão. Mas como inexistia a perspectiva de terem terra, emprego ou salário, a libertação não lhes servia para quase nada.

Depois veio a Lei dos Sexagenários. Aos 60 anos, os negros que ainda estivessem vivos eram libertados. Ora, já se sabia que a vida média de um escravo não alcançava os 40 anos. Como mostrou Luiz Felipe de Alencastro em O Trato dos Viventes, depois de décadas de labuta no eito, o consumo do trabalho pelo capital não era uma metáfora: o negro era um molambo de gente, e não um homem livre, mesmo quando libertado pela Lei dos Sexagenários.

O que parecia cautela e previsão era, na verdade, o jeitinho (e o jeitão) em movimento. Gradualmente, até a chamada Lei Áurea, a escravidão persistiu. Isso criou uma superpopulação trabalhadora que o sistema produtivo não tinha como incorporar. Com a industrialização, tão sonhada pelos modernos, o problema se agravou. Tendo que copiar uma industrialização de matriz exógena, que tende sempre à economia do trabalho, os excedentes populacionais cresceram exponencialmente.

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Assim, o chamado trabalho informal tornou-se estrutural no capitalismo brasileiro. É ele que regula a taxa de salários, e não as normas trabalhistas fundadas por Vargas. A partir daí todas as burlas são permitidas e estimuladas. A pergunta que um candidato a emprego mais ouve é: com carteira ou sem carteira? O funcionário com carteira resulta em descontos para a Previdência. Ou, se o salário for um pouquinho melhor, até para o Imposto de Renda. A resposta do candidato ao emprego é óbvia: sem carteira.

Quando o trabalhador ou trabalhadora que tem consciência dos seus direitos recusam o emprego sem carteira, às vezes escuta “malandro, não quer trabalhar”.

Em qualquer setor, em qualquer atividade, o jeitinho se impõe. O executivo de terno italiano de grife, o apresentador da televisão e a atriz de um musical não são assalariados. São pessoas jurídicas, PJs, unicamente para que empresas paguem menos impostos. Advogados, dentistas e prestadores de serviços oferecem seus préstimos com ou sem recibo, e esse último é mais barato. Bancários, telefonistas, vendedores e outras tantas categorias viram suas profissões periclitar: eles são agora atendentes de call centers, terceirizados por grandes empresas.

O jeitinho é a regra não escrita, sem existência legal, mas seguida ao pé da letra nas relações micro e macrossociais. Está tão estabelecido, é tão natural que estranhá-lo (hoje menos do que ontem, reconheça-se) pode ser entendido como pedantismo, arrogância ou ignorância: “Nego metido a besta”, é a sentença. A não resolução da questão do trabalho, o seu estatuto social, é no fundo a matriz do jeitinho. Simpático, ele é uma das maiores marcas do moderno atraso brasileiro.
* Publicado originalmente na Revista Piauí #73.

Francisco de Oliveira, um dos mais importantes sociólogos brasileiros, é professor titular de sociologia da Universidade de São Paulo.

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