segunda-feira, 30 de dezembro de 2013
Mais um ano, outras correntes - por Mumia Abu-Jamal
Mais um ano, outras correntes
[A seguir, texto de Mumia Abu-Jamal lido
durante o ato político-cultural organizado pelo grupo Amig@s de Mumia em frente
à Embaixada dos EUA, no Distrito Federal (DF), no México, no dia 9 de dezembro
(data do 32º aniversário da prisão de Mumia).]
A movermos,
queridos irmãos, irmãs, companheiras, companheiros, amigos e amigas!
Minha
mensagem para vocês este ano é simples. Em primeiro lugar, obrigado. E em
segundo lugar, ainda não estamos livres.
Nunca
subestimem o poder do nosso movimento para fazer as coisas acontecerem. Quando
nos organizamos, quando lutamos, fazemos mudanças. Quando nos reunimos, quando
exigimos, criamos a mudança. Nunca duvidem disso. Nunca duvidem do poder das
pessoas unidas e comprometidas.
Se vocês me
ouviram falar no passado, sabem bem o que eu disse: que não acredito nos
tribunais. Eu não acredito no sistema. Então, acreditar em quem?
Sim, eu
acredito nas pessoas. Acredito nos movimentos de pessoas. Nós somos a prova
disso. Sei que talvez não seja fácil, mas é a coisa certa. Quando assistes uma
injustiça e não fazes nada, estás dizendo que esta injustiça está bem. Estás
aceitando. Mas, quando dizes não! Envias ondas de energia por todo o mundo.
Juntem-se,
trabalhem juntos, construam algo, e faremos inevitável a liberdade.
Eu amo
todos. A movermos! Que viva John África!
Desde a
nação encarcerada, sou Mumia Abu-Jamal.
agência de notícias anarquistas-ana
Havia o escuro
mas eu não sabia onde;
teu rosto era sol.
Eolo Yberê Libera
Amazonas: levante popular anti-indígena - Por Djalma Nery
Amazonas: levante popular anti-indígena
Humaitá em
chamas! – sobre o atual conflito em curso e a posição do Estado brasileiro. Por
Djalma Nery
Neste exato
instante, a cidade de Humaitá, no extremo sul do estado do Amazonas, vive um
intenso conflito. Como de costume, praticamente toda a informação a respeito
desta situação disponível na internet e nos meios de comunicação não dá conta
de sua complexidade e tampouco explicita o pano de fundo e as motivações dos
fatos que se desenrolam.
Primeiro
acompanhe uma breve cronologia dos fatos que levaram à conflagração de um
conflito de imensas proporções.
Nos últimos
dias os Tenharim foram surpreendidos com a controversa morte de seu cacique
Ivan Tenharim. Ele foi encontrado desacordado e ferido próximo à Transamazônica,
foi levado ao hospital e não resistiu. As causas de sua morte ainda não foram
averiguadas, o que tem gerado profunda indignação entre os indígenas, já
acostumados com o descaso do governo brasileiro em relação às suas questões.
Após esta fatalidade, uma sucessão de fatos igualmente estranhos levou a um
conflito sem precedentes na cidade de Humaitá.
Correm
rumores do desaparecimento, desde o dia 16 de Dezembro, de três homens no KM
123 no trecho da BR – Transamazônica, que atravessa a Terra Indígena (TI)
Tenharim. Um servidor da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) conversou com as
lideranças indígenas, repassando o que estava acontecendo na cidade e as
acusações que pesavam contra eles. Nas duas vezes os índios negaram qualquer
envolvimento sobre os desaparecidos e ainda disseram que as aldeias estavam
abertas para averiguação, buscas e investigação por parte da Polícia Federal
(PF) ou do Exercito.
A população
saiu às ruas exigindo maior participação da PF para a busca e localização dos
desaparecidos que, segundo eles, encontram-se na Terra Índigena dos Tenharins.
Porém, ao
invés de um protesto legítimo, o que de fato está ocorrendo é um estado de
terror, possivelmente financiado pelos madeireiros, já que, muitas vezes,
órgãos como a FUNAI e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) se colocam como
empecilhos aos interesses escusos desses.
Há dois
dias servidores da FUNAI e a população de Humaitá pedem apoio e ajuda da PF
para conter as ações dos populares, que, sem nenhum impedimento, já atearam
fogo em carros, barcos e no prédio da FUNAI e da FUNASA entre os dias 25 e 26
de Dezembro. 11 carros e 2 barcos das FUNAI foram queimados, assim como sua
sede, a Casa do Índio e a Casa da Saúde do Índio – todas engolidas pelas chamas
e saqueadas sem que a Polícia Militar (PM) impedisse.
Esta ação
coloca em risco a vida de diversos moradores da cidade, que residem próximo aos
locais incendiados, dos servidores da FUNAI, que neste momento se encontram
escondidos em casas de conhecidos, temendo possíveis ataques dos manifestantes
e de diversos indígenas da etnia Tenharim.
É
importante sabermos que esse conflito oculta interesses econômicos e políticos
disfarçados de comoção popular legítima. Não se trata apenas de três pessoas
desaparecidas, mas sim de um longo conflito entre uma cultura ocidental,
civilizatória e desenvolvimentista, e a existência indígena que, objetivamente,
dificulta ou atrasa a realização de interesses do modo de produção capitalista.
O agronegócio agradece a cada vez que indígenas se enfraquecem.
Humaitá é
uma zona de intensos conflitos com madeireiros, que procuram extrair
ilegalmente madeira de áreas protegidas (ou terras indígenas) para
comercializá-las. São esses mesmos madeireiros que possuem o poder econômico (e
portanto político) na região e, como sabemos, conseguem fazer com que seus
interesses sejam levados a cabo. Há indícios de que justamente esses indivíduos
estejam se aproveitando da comoção popular para patrocinar o caos, do
qual se beneficiam, acirrando o ódio e incendiando os ânimos –assim os
manifestantes (que têm sua razão para estar insatisfeitos) são utilizados como
massa de manobra para favorecer interesses de uma elite. Afirma-se até que boa
parte da gasolina que vem sendo utilizada aos montes esteja sendo paga por eles
ou seus representantes, que não concordam, entre outras coisas, com os pedágios
das terras indígenas, e se organizam para combatê-los com todo o tipo de
recurso.
A PM e a
PF, compactuando com esse ódio étnico, vêm sendo claramente negligentes,
afirmando até mesmo que não é a primeira vez que os índios “causam” uma
situação como essa e que até mesmo merecem a represália que vêm sofrendo. Desde
que o cacique Ivan foi morto, há mais de 15 dias, a PF nem mesmo foi até a TI
averiguar, simplesmente deixando a coisa acontecer; eles se mexeram apenas
quando desapareceram homens brancos. O Estado brasileiro está sendo conivente;
índios, cidadãos e servidores da FUNAI estão em perigo e não são tomadas as
medidas necessárias para divulgar corretamente o que ocorre e conter a
violência que se alastra de maneira completamente irresponsável. Até as 14h30
do dia 26 de Dezembro, não havia aparecido sequer uma viatura da PM para fazer
prontidão à porta da FUNAI; dezenas de pessoas mexeram na cena do crime,
tiraram fotos e pegaram o que quiseram do local, e após quase um dia inteiro de
distúrbios é que a polícia decide comparecer ao local.
Não se
trata de defender ou atacar indígenas, mas de denunciar a negligência do Estado
e dos meios de comunicação brasileiros, prontos a defender os interesses
daqueles que os mantêm: industriais, fazendeiros e a burguesia, passando por
cima de populações desfavorecidas e/ou marginalizadas.
Precisamos
furar esse bloqueio midiático e pressionar o Estado para que haja rapidamente.
Centenas de indígenas estão ameaçados apenas por serem indígenas e muitos deles
estão sendo conduzidos ao Batalhão de Infantaria do Exército para que possam
ser protegidos. Servidores da FUNAI têm sua vida em risco por serem
identificados como protetores dos índios.
Por favor,
passe esse texto adiante, divulgue essa situação, entre em contato com
quaisquer pessoas que você conhecer e que possam ajudar a mobilizar esforços
para reverter essa situação calamitosa em curso.
Temos que colocar isso a limpo e no foco das notícias.
Há vidas em risco nesse exato instante. Contamos com toda ajuda.
Humaitá, 26
de dezembro de 2013
Fotografias
de Idivan Assayag.
Leia um
relato com novas informações, também de Djalma Nery, aqui.
E veja algumas fotos das instalações e veículos queimado, aqui.
E veja algumas fotos das instalações e veículos queimado, aqui.
Fonte: http://passapalavra.info/2013
Israel, Palestina e a distante solução de dois Estados - Por Ben Waite
Israel, Palestina e a distante solução de dois Estados
Distanciamento
de ativistas e comentaristas ocidentais da solução de dois Estados está
ocorrendo paralelamente a uma mudança marcante da política de Israel para a
direita
Com a
crença no processo de paz no Oriente Médio liderado pelos EUA passando por uma
baixa histórica, um número crescente de comentaristas e peritos dizem que a
solução de dois Estados para o conflito entre Israel e Palestina está morta.
Eles argumentam que a colonização israelense da Cisjordânia é muito extensa
para ser revertida e que, logo, estabelecer um Estado palestino independente é
agora impossível. No seu lugar, a maioria deles, de esquerda pelo menos,
acreditam em um estado unitário binacional para ambos israelenses e palestinos.
Embora
predições de futuros acontecimentos políticos nunca sejam exatas, é muito
importante levar em conta a atual trajetória do conflito, e as consequências de
um caminho tão radical quanto abandonar a solução de dois Estados.
A expulsão
de centenas de milhares de palestinos de seus lares foi central para o estabelecimento
de Israel em 1948 (Fred Csasznik)
O
distanciamento de ativistas e comentaristas ocidentais da solução de dois
Estados está ocorrendo paralelamente a uma mudança marcante da política de
Israel para a direita, enquanto divisões entre palestinos e israelenses estão
mais profundas do que nunca. O historiador Avi Shlaim descreve o atual governo
israelense como o mais “agressivamente de direita, diplomaticamente
intransigente e abertamente racista… na história de Israel.” Tem surgido o
debate sobre se o tratamento dado a árabes israelenses, sem mencionar
palestinos em territórios ocupados, agora constitui algo parecido com o
apartheid. Esses acontecimentos são no mínimo um péssimo sinal para a
perspectiva da emergência de um Estado binacional harmônico, exceto, talvez,
como uma meta distante a ser realizada depois de um longo e pouco provável
processo de reconciliação.
Mais
realisticamente, abandonar a luta por um Estado palestino agora daria vida a um
entre vários futuros possíveis, todos com consequências desastrosas para o povo
da Palestina. O cenário mais provável, ao menos a curto prazo, é de que isso
daria liberdade ao governo israelense para acelerar e continuar suas atuais
políticas, perpetuando e solidificando ainda mais o status quo. Isso resultaria
em miséria contínua para o povo palestino e, crucialmente, na consolidação e
expansão dos assentamentos israelenses na Cisjordânia e Jerusalém. Palestinos
teriam que escolher entre viver com as imposições e humilhações diárias ou
arrumar as malas e ir embora.
Em anos
recentes, sucessivos governos israelenses vêm tentando ‘normalizar’ a ocupação
da Cisjordânia, principalmente coagindo a Autoridade Palestina de Mahmoud Abbas
e Salam Fayyad, e com ela trabalhando para isolar e finalmente neutralizar o
Hamas. Esse processo tem sido altamente bem sucedido. A construção de
assentamentos na Cisjordânia segue em ritmo normal, apenas provocando uma
resistência pequena e ineficaz. Enquanto isso, israelenses estão cada vez menos
interessados na ocupação, voltando suas atenções para questões econômicas e
sociais internas.
Porém, como
as recentes revoluções no Oriente Médio demonstraram, um regime não consegue
oprimir severamente uma população para sempre. No caso da Palestina e Israel,
um fator adicional demográfico pode aumentar ainda mais a instabilidade a longo
prazo de uma ocupação permanente. Mesmo que os dados sejam contestados,
aparentemente o crescimento populacional árabe tanto em Israel, como nos
territórios palestinos ocupados, é muito maior do que o judeu, ao ponto de,
logo mais, os israelenses se tornarem uma minoria na Palestina histórica. Sem
uma separação dos dois povos, a própria raison d´etre israelense – sua maioria
judia – será ameaçada. No contexto desta preocupação, várias propostas para uma
solução mais decisiva para o ‘problema palestino’ tem surgido, ou melhor,
reaparecido.
A opção
Jordânia
A primeira
tem sido a divulgação de uma ideia, popular nos anos 70, de um estado palestino
em federação com a Jordânia. Ela tem conquistado alguma credibilidade pelo fato
de refugiados palestinos constituírem a maioria numérica na Jordânia, também
levando-se em conta a experiência passada deste país na administração da
Cisjordânia, antes de 1967. Para Israel, isso oferece uma oportunidade de
renunciar a sua responsabilidade com os palestinos e, ao mesmo tempo,
permanecer com as áreas da Cisjordânia que deseja, em sua maioria traçadas pela
‘barreira’ de separação. A esperança é que o epicentro da vida palestina se
mudaria para o leste do Rio Jordão, com as áreas palestinas na Cisjordânia se
transformando em nada mais do que periferias indesejáveis. Para Israel, isso
criaria uma impressão de ‘finalidade’ no conflito e eliminaria, quase por
completo, a perspectiva de um estado palestino vizinho do lado oeste do Rio
Jordão. Mesmo que a ‘Opção Jordânia’ não seria bem recebida por muitos, dada a
atual fraqueza do governo palestino, ela até poderia ser imposta.
A Jordânia
está em uma situação precária rodeada por nações que se encontram em guerra ou
desobediência civil, e com a ameaça da Primavera Árabe chegando a seus
territórios. A liderança do país se preocupa há muito tempo com a enorme
população refugiada palestina dentro de suas próprias fronteiras, que não
possuem os direitos de cidadãos jordanianos naturais, que muitas vezes é causa
de rebeldia. Logo, é muito improvável que a ‘Opção Jordânia’ seja aceita pelos
jordanianos, a não ser em circunstâncias extremas. De qualquer maneira, parece
que ela foi discutida por Benjamin Netanyahu e o Rei Abdullah durante uma
visita este ano. Se nada mais, isto demonstra que aqueles próximos ao conflito
entre Israel e Palestina estão começando a considerar ideias não ortodoxas para
uma solução o mais rápida possível.
Limpeza
Étnica
Outra
potencial solução que está surgindo é mais direta e alarmante. A expulsão de
centenas de milhares de palestinos de seus lares foi central para o
estabelecimento de Israel em 1948. A verdade sobre isso foi negada por muitos
anos, mas a ideia de ‘transferência populacional’ está lentamente sendo aceita
e, mais preocupantemente, propagada. No passado, ‘transferência populacional’
era um discurso político marginalizado, reservado para figuras de extrema
direita como Rehavam Ze´evi, que usava palavras como “piolhos” e “câncer” ao se
referir à população palestina de Israel.
A ideia
começou a chamar atenção quando o historiador israelense Benny Morris, famoso
por seu livro sobre a expulsão de comunidades palestinas em 1948 no que agora é
Israel, falou em uma infame entrevista em 2004 sobre a “necessidade” de limpeza
étnica, lamentando que o governo israelense da época tenha “falhado” ao não
terminar o trabalho. Mesmo que inicialmente a entrevista tenha causado espanto,
pontos de vista como esse agora parecem aceitáveis em Israel ao ponto de
banalidade. De fato, até o entrevistador de esquerda, que tinha expressado
choque e desprezo em relação aos comentários de Morris, foi comovido
recentemente a dar graças àqueles que fizeram “o sujo, nojento trabalho” do
massacre e expulsão de 1948 que “garante que meu povo… possa viver.”
Em sua
entrevista, Morris argumenta que futuras circunstâncias poderão mais uma vez
justificar a expulsão de palestinos. Esse tipo de pensamento já apareceu de
forma embrionária no Knesset e corredores de poder. O ministro de relações
exteriores Avigdor Lieberman tem constantemente proposto uma política de
‘transferência suave’ de cidadãos árabes de Israel para territórios palestinos,
e ações semelhantes já foram pautadas por políticos como Otniel Schneller, do
partido centrista Kadima. Uzi Cohen, um membro influente do partido Likud já
propôs publicamente a completa transferência de palestinos e árabes
israelenses, declarando que a ideia tem “amplo apoio”. A recente sugestão do
membro do Likud Moshe Feinglin, que Israel pague os palestinos para deixarem a
Cisjordânia, foi considerada por estrategistas políticos que ajudam Benjamin
Netanyahu (do mesmo partido) como uma forma de conquistar votos de direita. O
próprio pioneiro da proposta de ‘transferência’ renovada, Rehavam Ze´evi, está atualmente
sendo reconhecido pelo Knesset, onde fundos para preservar sua memória
cresceram muito em 2013, e agora provêm materiais para escolas onde é descrito
como um “homem de princípios”, e um “idealista”. Está claro que a nova
‘transferência populacional’ saiu das extremidades da política israelense.
No fim das
contas, acordos e decisões políticas são feitas por e refletem os desejos dos
grupos envolvidos, especialmente os poderosos. O erro de quem prega o abandono
do paradigma de dois Estados é imaginar que estarão em uma posição para
determinar seu substituto. Na verdade, é a força de vontade política que
determinará o percurso do conflito entre Palestina e Israel, não o pensamento
heterodoxo de influências marginalizadas. Abandonar a ideia de soberania
palestina é abandonar décadas de luta pela Justiça; e atualmente é
positivamente perigoso. Sendo o componente decisivamente dominante da questão,
Israel tem o poder desproporcional de impor uma solução que satisfaça suas
vontades. Se tanto a ‘Opção Jordânia’ como a renovada ‘transferência
populacional’ sendo discutida até agora teoricamente serão adotadas em prática,
é algo que só o tempo nos dirá. Contudo, aqueles que esperam um Estado
binacional harmônico e justo a nascer com a implementação da solução de dois
Estados, seriam sábios em considerar a balança das probabilidades.
Tradução
por Ítalo Piva. Original em New Left Project.
Fonte: http://revistaforum.com.br/
sexta-feira, 27 de dezembro de 2013
Meu trabalho é a arma do manifestante, aponta Latuff – por Fernanda Nascimento e Jimmy Azevedo
Meu trabalho é a arma do manifestante, aponta Latuff
O
cartunista Carlos Latuff é um dos principais ativistas político de esquerda do
Brasil. Aos 45 anos, tem charges publicadas em diversos países, com temas
ligados aos direitos humanos e à cidadania, como os trabalhos a favor da causa
Palestina e contra a repressão do Estado sobre manifestantes sociais. Com um
trabalho que é compartilhado basicamente através da internet, ganhou diversos
seguidores e muitos inimigos, principalmente os sionistas.
Natural do Rio de Janeiro, Latuff recentemente trocou o centro do País pelo Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, acompanhou – e retratou – as manifestações de rua, a ocupação da Câmara Municipal pelo Bloco de Luta e outras atividades promovidas por estudantes e sindicalistas. Em entrevista ao Jornal do Comércio, na praça da Matriz, o cartunista avalia as manifestações deste ano no País, o papel da imprensa, a criminalização de setores mais pobres da sociedade e conta um pouco de seu trabalho.
Natural do Rio de Janeiro, Latuff recentemente trocou o centro do País pelo Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, acompanhou – e retratou – as manifestações de rua, a ocupação da Câmara Municipal pelo Bloco de Luta e outras atividades promovidas por estudantes e sindicalistas. Em entrevista ao Jornal do Comércio, na praça da Matriz, o cartunista avalia as manifestações deste ano no País, o papel da imprensa, a criminalização de setores mais pobres da sociedade e conta um pouco de seu trabalho.
Jornal do
Comércio – Seu trabalho adquiriu dimensão internacional a partir da causa
Palestina. Como isso começou?
Carlos Latuff – Em 1998, passei 15 dias na Cisjordânia e, depois de ver como os palestinos vivem, comecei a retratar isso. Ganhei o título de antissemita, pecha que é aplicada a quem decide apoiar a causa palestina. Em 2012, fui classificado pelo Centro Simon Wiesental como o terceiro maior antissemita do mundo, só perdi para a Irmandade Muçulmana do Egito e para o regime iraniano. Tive essa classificação porque fiz uma charge do primeiro ministro de Israel (Benjamin Netanyahu) torcendo o cadáver de uma criança palestina, de onde saem votos para uma urna. Fiz isso porque os recentes ataques a Gaza foram feitos sempre às vésperas de eleições em Israel. É uma questão política e não cultural ou racial. Mas porque o Netanyahu é judeu e estamos falando de Israel, sou automaticamente associado ao antissemitismo. E na cabeça das pessoas vêm as imagens do holocausto que são batidas diariamente, através desse lobby de organizações que se utilizam da ideia de que os judeus foram vítimas – e de fato foram vítimas – para associar as criticas a Israel como perseguição, da mesma maneira que perseguiam os judeus no nazismo ou na Idade Média. A minha posição em relação à questão palestina não tem a ver com judeus e negação do holocausto. A questão é os direitos humanos dos palestinos. É do direito à terra. Da mesma maneira que defendo o direito à terra do camponês brasileiro, defendo o do palestino. Não adianta tentar desacreditar a causa palestina associando ao antissemitismo. O antissemitismo existe como existe o ódio aos homossexuais, aos negros. Existem ódios. O ódio ao judeu é mais um ódio. Como existe ódio aos palestinos e aos muçulmanos. A questão de defender a causa palestina não tem nada a ver com ódio aos judeus, tem a ver com direitos humanos. Eu não sou antissemita, as charges que faço não são antissemitas.
JC – Como foi ver milhares de manifestantes da Primavera Árabe empunhando suas charges?
Latuff – O meu trabalho é como uma arma que pode ser utilizada pelo manifestante. Ela (a charge) é utilizada da mesma maneira que ele utiliza a pedra, o coquetel molotov ou o celular.
Carlos Latuff – Em 1998, passei 15 dias na Cisjordânia e, depois de ver como os palestinos vivem, comecei a retratar isso. Ganhei o título de antissemita, pecha que é aplicada a quem decide apoiar a causa palestina. Em 2012, fui classificado pelo Centro Simon Wiesental como o terceiro maior antissemita do mundo, só perdi para a Irmandade Muçulmana do Egito e para o regime iraniano. Tive essa classificação porque fiz uma charge do primeiro ministro de Israel (Benjamin Netanyahu) torcendo o cadáver de uma criança palestina, de onde saem votos para uma urna. Fiz isso porque os recentes ataques a Gaza foram feitos sempre às vésperas de eleições em Israel. É uma questão política e não cultural ou racial. Mas porque o Netanyahu é judeu e estamos falando de Israel, sou automaticamente associado ao antissemitismo. E na cabeça das pessoas vêm as imagens do holocausto que são batidas diariamente, através desse lobby de organizações que se utilizam da ideia de que os judeus foram vítimas – e de fato foram vítimas – para associar as criticas a Israel como perseguição, da mesma maneira que perseguiam os judeus no nazismo ou na Idade Média. A minha posição em relação à questão palestina não tem a ver com judeus e negação do holocausto. A questão é os direitos humanos dos palestinos. É do direito à terra. Da mesma maneira que defendo o direito à terra do camponês brasileiro, defendo o do palestino. Não adianta tentar desacreditar a causa palestina associando ao antissemitismo. O antissemitismo existe como existe o ódio aos homossexuais, aos negros. Existem ódios. O ódio ao judeu é mais um ódio. Como existe ódio aos palestinos e aos muçulmanos. A questão de defender a causa palestina não tem nada a ver com ódio aos judeus, tem a ver com direitos humanos. Eu não sou antissemita, as charges que faço não são antissemitas.
JC – Como foi ver milhares de manifestantes da Primavera Árabe empunhando suas charges?
Latuff – O meu trabalho é como uma arma que pode ser utilizada pelo manifestante. Ela (a charge) é utilizada da mesma maneira que ele utiliza a pedra, o coquetel molotov ou o celular.
JC – Como
começou o trabalho para a primavera árabe?
Latuff – Aqueles manifestantes do Egito, eles conheciam o meu trabalho da Palestina e entraram em contato comigo para que eu produzisse charges. Eles fizeram contato via twitter, dois dias antes do protesto do Cairo. Os protestos já estavam sendo planejados para derrubar o (Hosni) Mubarak e, a principio, fiz cinco charges. Eles começaram a imprimir e levar para a rua. Continuei a produzir até a queda do Mubarak. Depois da queda, veio a junta militar e continuei fazendo. Fiz até as eleições, que elegeram Mohammed Morsi. Durante o regime Morsi também fiz charges. Depois com o golpe que derrubou o Morsi, dei uma parada. Apoiei os egípcios sempre, mas quando falei que o que houve agora foi um golpe militar contra o Morsi, que gostando ou não gostando foi eleito, me chamaram de tudo quanto é coisa, inclusive que eu era adepto da Irmandade Muçulmana, para dizer o mínimo. Eles têm ojeriza da Irmandade e entenderam que os militares – os mesmos militares que mataram manifestantes em 2011 e 2012, e responsáveis por tantos massacres – agora estão salvaguardando a revolução de janeiro. Agora, faço uma charge ou outra para eles, mas perdi o tesão porque eles são malucos.
JC – O ativismo já resultou em ameaças de morte?
Latuff – Sim, várias vezes. A última foi depois de uma declaração minha sobre a família de policiais morta em São Paulo. Recebi ameaças de um ex-brigadiano reformado e de uma policial que trabalha na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Disseram que se me encontrassem, me matavam. Mas já recebi ameaça de morte de sionistas, do seguimento radical do Egito e de outros.
JC – A vinda para Porto Alegre foi por este motivo?
Latuff – Não. No Rio de Janeiro nunca fui ameaçado por um policial, saí porque aqui tem uma qualidade de vida muito melhor.
JC – Como avalia o cenário eleitoral em meio a essa crise de representatividade?
Latuff – Infelizmente, nos tornamos reféns das escolhas que o sistema nos dá. A gente precisa criar uma alternativa longe dessa polaridade. Uma alternativa de esquerda. Não uma alternativa de direita, porque alternativa de direita não é alternativa, é a mesma coisa com a cara diferente. Hoje, boa parte da militância de esquerda está atrelada a partidos. Não sei se isso vai mudar, o segmento de militância espontânea que surgiu nos protestos de junho, como não tem um comprometimento, não vai longe. Pode acontecer como a Primavera Árabe: os egípcios foram para as ruas, cada um com suas bandeiras, conseguiram derrubar os (Hosni) Mubarak. Mas, o que veio depois? Os militares. Eles derrubaram o presidente, mas não mudaram o sistema. O sistema político-econômico continua o mesmo. Não tinha uma organização que poderia levar a um processo revolucionário.
JC – Vê a juventude de Porto Alegre mais politizada com relação à carioca?
Latuff – O gaúcho é mais politizado. O Rio de Janeiro não tem para bater no peito um Olívio Dutra. O Brasil inteiro não tem. Comparativamente, o PT daqui é menos pior e pode bater no peito e dizer que teve o Olívio. Se o Olívio fosse candidato para alguma coisa aqui no Estado, faria campanha para ele, isso que não sou petista. Sou crítico do governo do Tarso (Genro), da Dilma (Rousseff). Eu não tenho filiação partidária. Virou moda dizer que quando se critica o governo do PT você é psolista, é tucano, é PIG (Partido da Imprensa Golpista). Eu não tenho nenhuma ligação partidária, mas se o Olívio fosse candidato, faria campanha de olhos fechados. O PT não tem mais ninguém de vulto.
JC – Em Porto Alegre, vimos ativamente o movimento anarquista. Como avalia essa “descoberta”?
Latuff – Ele sempre existiu. Pode ser que se tenha descoberto os anarquistas porque a imprensa falou deles. Mas também o próprio movimento pode não ter se preocupado em ganhar visibilidade. Não podemos negar que existe uma criminalização. Acho que o movimento anarquista poderia aproveitar este momento para falar das suas bandeiras. Pode ser que, a partir das manifestações, haja o surgimento de uma militância não convencional.
Latuff – Aqueles manifestantes do Egito, eles conheciam o meu trabalho da Palestina e entraram em contato comigo para que eu produzisse charges. Eles fizeram contato via twitter, dois dias antes do protesto do Cairo. Os protestos já estavam sendo planejados para derrubar o (Hosni) Mubarak e, a principio, fiz cinco charges. Eles começaram a imprimir e levar para a rua. Continuei a produzir até a queda do Mubarak. Depois da queda, veio a junta militar e continuei fazendo. Fiz até as eleições, que elegeram Mohammed Morsi. Durante o regime Morsi também fiz charges. Depois com o golpe que derrubou o Morsi, dei uma parada. Apoiei os egípcios sempre, mas quando falei que o que houve agora foi um golpe militar contra o Morsi, que gostando ou não gostando foi eleito, me chamaram de tudo quanto é coisa, inclusive que eu era adepto da Irmandade Muçulmana, para dizer o mínimo. Eles têm ojeriza da Irmandade e entenderam que os militares – os mesmos militares que mataram manifestantes em 2011 e 2012, e responsáveis por tantos massacres – agora estão salvaguardando a revolução de janeiro. Agora, faço uma charge ou outra para eles, mas perdi o tesão porque eles são malucos.
JC – O ativismo já resultou em ameaças de morte?
Latuff – Sim, várias vezes. A última foi depois de uma declaração minha sobre a família de policiais morta em São Paulo. Recebi ameaças de um ex-brigadiano reformado e de uma policial que trabalha na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Disseram que se me encontrassem, me matavam. Mas já recebi ameaça de morte de sionistas, do seguimento radical do Egito e de outros.
JC – A vinda para Porto Alegre foi por este motivo?
Latuff – Não. No Rio de Janeiro nunca fui ameaçado por um policial, saí porque aqui tem uma qualidade de vida muito melhor.
JC – Como avalia o cenário eleitoral em meio a essa crise de representatividade?
Latuff – Infelizmente, nos tornamos reféns das escolhas que o sistema nos dá. A gente precisa criar uma alternativa longe dessa polaridade. Uma alternativa de esquerda. Não uma alternativa de direita, porque alternativa de direita não é alternativa, é a mesma coisa com a cara diferente. Hoje, boa parte da militância de esquerda está atrelada a partidos. Não sei se isso vai mudar, o segmento de militância espontânea que surgiu nos protestos de junho, como não tem um comprometimento, não vai longe. Pode acontecer como a Primavera Árabe: os egípcios foram para as ruas, cada um com suas bandeiras, conseguiram derrubar os (Hosni) Mubarak. Mas, o que veio depois? Os militares. Eles derrubaram o presidente, mas não mudaram o sistema. O sistema político-econômico continua o mesmo. Não tinha uma organização que poderia levar a um processo revolucionário.
JC – Vê a juventude de Porto Alegre mais politizada com relação à carioca?
Latuff – O gaúcho é mais politizado. O Rio de Janeiro não tem para bater no peito um Olívio Dutra. O Brasil inteiro não tem. Comparativamente, o PT daqui é menos pior e pode bater no peito e dizer que teve o Olívio. Se o Olívio fosse candidato para alguma coisa aqui no Estado, faria campanha para ele, isso que não sou petista. Sou crítico do governo do Tarso (Genro), da Dilma (Rousseff). Eu não tenho filiação partidária. Virou moda dizer que quando se critica o governo do PT você é psolista, é tucano, é PIG (Partido da Imprensa Golpista). Eu não tenho nenhuma ligação partidária, mas se o Olívio fosse candidato, faria campanha de olhos fechados. O PT não tem mais ninguém de vulto.
JC – Em Porto Alegre, vimos ativamente o movimento anarquista. Como avalia essa “descoberta”?
Latuff – Ele sempre existiu. Pode ser que se tenha descoberto os anarquistas porque a imprensa falou deles. Mas também o próprio movimento pode não ter se preocupado em ganhar visibilidade. Não podemos negar que existe uma criminalização. Acho que o movimento anarquista poderia aproveitar este momento para falar das suas bandeiras. Pode ser que, a partir das manifestações, haja o surgimento de uma militância não convencional.
JC – Como
avalia a “autocrítica” da imprensa depois da eclosão das manifestações?
Latuff – Não há motivo para que a imprensa apoie as manifestações, a menos que elas sejam contra o governo. Se as manifestações contestam o establishment, a chamada grande imprensa não pode ser a favor, porque faz parte disso. Acredito que a virada tem a ver com uma percepção que o mainstream teve de que as manifestações poderiam se voltar contra o governo.
JC – Dividir os manifestantes entre “vândalos” e “pacíficos” foi uma estratégia da imprensa para “apoiar” as mobilizações? Em que medida isso legítima a repressão contra manifestantes taxados de violentos?
Latuff – A manifestação limpinha, tranquila, que não quebra nada e não suja nada é a manifestação que agrada ao establishment, porque não causa nada. O bom da manifestação é quando ela causa um ruído. Se não é capaz de produzir ruído algum, então ela é inócua. Quebrar banco, de alguma maneira, criou este ruído. No Brasil, sempre se tentou impedir ruptura, resolvendo os problemas através de acordos petit comitê. Quando se anuncia uma ruptura, o establishment resolve com um acordo, porque sabe que a ruptura é o primeiro passo para a transformação. É crise, ruptura e transformação. É interessante que o establishment fale em manifestações pacíficas se não temos uma polícia pacífica, se o Estado brasileiro não é pacifico. O ambiente em que a gente vive, o massacre social que a gente vive, a vida nas favelas, a violência contra as mulheres, contra os gays, contra os jovens negros, não têm nada de pacífico.
JC – Depois, os manifestantes foram divididos entre os bons manifestantes, os black blocks e os saqueadores – oriundos das favelas. A periferia acabou rechaçada?
Latuff – Se as manifestações não forem hábeis em trazer essa militância da favela, não vão adiante. O segmento mais massacrado e vitimado por esse sistema em que as pessoas vão para a rua combater é o das favelas. A imprensa tem um tratamento específico quando a manifestação é na favela: “é manifestação controlada pelo tráfico”. Claro que tem dois tipos de manifestantes: o bom e o mau. Quando o manifestante vai para a rua, queima pneu, tranca a via, desce a favela e o morro, vira carro, “é o tráfico que está junto”. E existe o manifestante “coxinha” da favela, que é do Viva Rio, Afroreggae e Cufa. Esse ativista, que é correio de transmissão das políticas do Estado, é o bom ativista. Não se pode imaginar um processo de transformação que não tenha a favela. Costumo sempre dizer: “no asfalto a bala é de borracha, na favela é de chumbo”. As favelas são territórios de exclusão muito especiais. Estive em várias, fiz ensaios fotográficos. Um em particular é a essência desse processo da chamada guerra contra as drogas. Em Acari, ia andando e tinha buracos, rombos pelo chão, no concreto. Me falaram que aquilo era tiro do helicóptero, jogado de cima. A polícia do Rio de Janeiro tem um helicóptero igual ao que o Exército norte-americano usou no Vietnã.
JC – Porque a militância da favela não cresce?
Latuff – Tem três coisas que impedem de avançar. Uma é o tráfico. Porque o tráfico, no momento em que ele tiver que escolher entre o manifestante e o Estado, ele vai topar o Estado. O traficante não é um revolucionário, é um comerciante e só existe por força do Estado. Ele não é um revolucionário de esquerda. As armas que chegam na mão dele, a droga, não é um avião que joga de cima com um paraquedas. O segundo são as igrejas evangélicas. Na favela tem igreja evangélica em cada buraco e ela está ali para formar cordeiros que abaixam a cabeça. O terceiro são as ONGs, que estão lá também para formar neguinhos dóceis. Negros e favelados dóceis que acreditam que um dia, se trabalharem muito, chegarão lá. É por isso que existe uma tensão tão grande na favela. Porque o establishment sabe que as favelas são bolsões de revolta social.
JC – A ideologia da nova classe média contribui para isso? Ela individualiza o problema que é social?
Latuff – Este regime que a gente vive trabalha com a sensação. Você tem sensação de democracia, sensação de cidadania, mas não existe. Claro, evidente que o pobre tem direitos de comprar bens de consumo, é bom que ele tenha essa possibilidade, ninguém discute isso. Mas o que define a cidadania não é o fato de comprar um celular novo, é o de ter serviços públicos de qualidade. Afinal de contas, estes favelados também pagam impostos e têm os mesmos direitos. Mas o regime capitalista funciona pela exclusão. Não posso cobrar do regime capitalista que ele seja includente. Ele é excludente por natureza, trabalha com o regime de classes. Tem que ter uma classe que gasta e outra que banca o gasto. Uma classe que é patrão e outra que é empregado. Não adianta tentar mudar o capitalismo. Não dá. É preciso dizer isso claramente. Não é reforma que a gente precisa é de uma mudança.
Latuff – Não há motivo para que a imprensa apoie as manifestações, a menos que elas sejam contra o governo. Se as manifestações contestam o establishment, a chamada grande imprensa não pode ser a favor, porque faz parte disso. Acredito que a virada tem a ver com uma percepção que o mainstream teve de que as manifestações poderiam se voltar contra o governo.
JC – Dividir os manifestantes entre “vândalos” e “pacíficos” foi uma estratégia da imprensa para “apoiar” as mobilizações? Em que medida isso legítima a repressão contra manifestantes taxados de violentos?
Latuff – A manifestação limpinha, tranquila, que não quebra nada e não suja nada é a manifestação que agrada ao establishment, porque não causa nada. O bom da manifestação é quando ela causa um ruído. Se não é capaz de produzir ruído algum, então ela é inócua. Quebrar banco, de alguma maneira, criou este ruído. No Brasil, sempre se tentou impedir ruptura, resolvendo os problemas através de acordos petit comitê. Quando se anuncia uma ruptura, o establishment resolve com um acordo, porque sabe que a ruptura é o primeiro passo para a transformação. É crise, ruptura e transformação. É interessante que o establishment fale em manifestações pacíficas se não temos uma polícia pacífica, se o Estado brasileiro não é pacifico. O ambiente em que a gente vive, o massacre social que a gente vive, a vida nas favelas, a violência contra as mulheres, contra os gays, contra os jovens negros, não têm nada de pacífico.
JC – Depois, os manifestantes foram divididos entre os bons manifestantes, os black blocks e os saqueadores – oriundos das favelas. A periferia acabou rechaçada?
Latuff – Se as manifestações não forem hábeis em trazer essa militância da favela, não vão adiante. O segmento mais massacrado e vitimado por esse sistema em que as pessoas vão para a rua combater é o das favelas. A imprensa tem um tratamento específico quando a manifestação é na favela: “é manifestação controlada pelo tráfico”. Claro que tem dois tipos de manifestantes: o bom e o mau. Quando o manifestante vai para a rua, queima pneu, tranca a via, desce a favela e o morro, vira carro, “é o tráfico que está junto”. E existe o manifestante “coxinha” da favela, que é do Viva Rio, Afroreggae e Cufa. Esse ativista, que é correio de transmissão das políticas do Estado, é o bom ativista. Não se pode imaginar um processo de transformação que não tenha a favela. Costumo sempre dizer: “no asfalto a bala é de borracha, na favela é de chumbo”. As favelas são territórios de exclusão muito especiais. Estive em várias, fiz ensaios fotográficos. Um em particular é a essência desse processo da chamada guerra contra as drogas. Em Acari, ia andando e tinha buracos, rombos pelo chão, no concreto. Me falaram que aquilo era tiro do helicóptero, jogado de cima. A polícia do Rio de Janeiro tem um helicóptero igual ao que o Exército norte-americano usou no Vietnã.
JC – Porque a militância da favela não cresce?
Latuff – Tem três coisas que impedem de avançar. Uma é o tráfico. Porque o tráfico, no momento em que ele tiver que escolher entre o manifestante e o Estado, ele vai topar o Estado. O traficante não é um revolucionário, é um comerciante e só existe por força do Estado. Ele não é um revolucionário de esquerda. As armas que chegam na mão dele, a droga, não é um avião que joga de cima com um paraquedas. O segundo são as igrejas evangélicas. Na favela tem igreja evangélica em cada buraco e ela está ali para formar cordeiros que abaixam a cabeça. O terceiro são as ONGs, que estão lá também para formar neguinhos dóceis. Negros e favelados dóceis que acreditam que um dia, se trabalharem muito, chegarão lá. É por isso que existe uma tensão tão grande na favela. Porque o establishment sabe que as favelas são bolsões de revolta social.
JC – A ideologia da nova classe média contribui para isso? Ela individualiza o problema que é social?
Latuff – Este regime que a gente vive trabalha com a sensação. Você tem sensação de democracia, sensação de cidadania, mas não existe. Claro, evidente que o pobre tem direitos de comprar bens de consumo, é bom que ele tenha essa possibilidade, ninguém discute isso. Mas o que define a cidadania não é o fato de comprar um celular novo, é o de ter serviços públicos de qualidade. Afinal de contas, estes favelados também pagam impostos e têm os mesmos direitos. Mas o regime capitalista funciona pela exclusão. Não posso cobrar do regime capitalista que ele seja includente. Ele é excludente por natureza, trabalha com o regime de classes. Tem que ter uma classe que gasta e outra que banca o gasto. Uma classe que é patrão e outra que é empregado. Não adianta tentar mudar o capitalismo. Não dá. É preciso dizer isso claramente. Não é reforma que a gente precisa é de uma mudança.
Fonte: http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=143329
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