A herança de Chico Mendes
A convergência entre ecologia e socialismo teve no Brasil um precursor na extraordinária figura de Chico Mendes, um lutador que pagou com sua vida seu compromisso com a causa dos povos da floresta amazônica. Chico se transformou numa figura lendária, um herói do povo brasileiro, mas o tratamento mediático de sua historia tende a ocultar a radicalidade social e politica de seu combate. Existem também tentativas infelizes de “cortar pela metade” sua herança politica: ecologistas reconciliados com o capitalismo “esquecem” seu compromisso socialista, enquanto que socialistas atrasados negam a dimensão ecológica de sua luta.
Formado na
cultura cristã libertadora das comunidades de base, o jovem seringueiro
Francisco Alves Mendes Filho, nascido em 15 de dezembro de 1944, descobre o
marxismo nos anos 1960 graças a um veterano comunista, Euclides Fernandes
Tavora, antigo tenente de 1935, partidário de Luis Carlos Prestes, que, depois
de ficar preso em Fernando de Noronha, se exilou na Bolivia, onde participou
nas lutas populares; perseguido, foi morar na selva amazônica, na fronteira do
Acre com a Bolívia. Este aprendizado marxista teve uma influência importante na
formação das ideias políticas de Chico Mendes: em suas próprias palavras, o
encontro com Tavora “foi uma das melhores ajudas e uma das razões pela
qual eu julgo que estou em toda essa luta. Outros companheiros, infelizmente,
naquela época, não tiveram o privilégio de receber uma orientação tão
importante como a que recebi para o futuro”.[1] Em 1975 Chico funda, junto com Wilson Pinheiro, o sindicato
dos trabalhadores rurais de Brasiléia, e, pouco depois, em 1977, o sindicato
dos trabalhadores rurais de Xapuri, sua terra natal. No mesmo ano, é eleito
vereador pelo MDB para a Câmara Municipal local, mas bem rapidamente se dá
conta de que este partido não é solidário com suas lutas. É nesta época que ele
vai inaugurar, com seus companheiros do sindicato, uma forma de luta
não-violenta inédita no mundo: os famosos empates. São centenas de
seringueiros, com suas mulheres e filhos, que se dão as mãos e enfrentam, sem
armas, os bulldozers das grandes empresas interessadas no desmatamento, na
derrubada das arvores. Algumas vezes os trabalhadores são derrotados, mas
frequentemente conseguem parar, com suas mãos nuas, os tratores, bulldozers e
motosserras dos destruidores da floresta, ganhando às vezes a adesão dos peões
encarregados do desmatamento. Os inimigos dos seringueiros são os
latifundiários, o agronegócio, as empresas madeireiras ou pecuárias, que querem
derrubar as árvores para exportar a madeira e/ou para plantar mato no lugar da
floresta, criando gado para a exportação – inimigos poderosos, que contam com a
UDR, como braço político e, como braço armado, jagunços e pistoleiros
mercenários, além de inúmeras cumplicidades na polícia, na Justiça e nos
governos (local, estadual e federal). É a partir desta época que Chico Mendes
começa a receber as primeiras ameaças de morte; pouco depois, em 1980, seu
companheiro de lutas, Wilson Pinheiro, será assassinado. Para vingar este
crime, que, como de costume, ficou impune, um grupo de seringueiros resolveu
“justiçar” o fazendeiro mandante do assassinato.[2] Chico Mendes é enquadrado pelo regime militar na Lei de
Segurança Nacional, a pedido dos fazendeiros da região que procuravam
envolvê-lo neste episodio. Varias vezes, em 1980 e 1982, ele é levado à
julgamento diante de Tribunais Militares, acusado de “incitação à violência”,
mas acaba sendo absolvido, por falta de provas.
Nestes
primeiros anos de sua atividade sindical, Chico Mendes, socialista convicto,
milita nas fileiras do Partido Comunista do Brasil. Decepcionado com este
partido que, segundo seu depoimento, na hora da luta “se escondia atrás das
cortinas”[3], ele adere em 1979-80 ao novo Partido dos Trabalhadores,
fundado por Lula e seus companheiros, situando-se logo em sua ala esquerda,
socialista. Sua tentativa de se eleger deputado estadual pelo PT em 1982 não
tem sucesso, o que não é de surpreender, considerando pequena base eleitoral do
partido nestes primeiros anos. Em 1985 ele organiza, com seus companheiros
sindicalistas, o Encontro Nacional dos Seringueiros que vai fundar o Conselho
Nacional dos Seringueiros; sua luta recebe o apoio do PT, da Pastoral da Terra,
da CUT e do MST que se esta formando nesta época.
São nesses
anos que o combate dos seringueiros e outros trabalhadores que vivem da
extração (castanha, babaçu, juta) para defender a floresta vai convergir com o
das comunidades indígenas e grupos camponeses diversos, dando lugar à formação
da Aliança dos Povos da Floresta. Pela primeira vez seringueiros e indígenas,
que tantas vezes se haviam enfrentado no passado, unem suas forças contra o
inimigo comum: o latifúndio, o agro-business, o capitalismo agrícola destrutor
da floresta. Chico Mendes definiu com as seguintes palavras as bases desta
aliança: “Nunca mais um companheiro nosso vai derramar o sangue do outro,
juntos nos podemos proteger a natureza que é o lugar onde nossa gente aprendeu
a viver, a criar os filhos e a desenvolver suas capacidades, dentro de um
pensamento harmonioso com a natureza, com o meio ambiente e com os seres que
habitam aqui”.[4]
Chico
Mendes era perfeitamente consciente da dimensão ecológica desta luta, que
interessava não só aos povos da Amazônia, mas a toda a população mundial, que
depende da floresta tropical (“o pulmão verde do planeta”):
“Descobrimos
que para garantir o futuro da Amazônia era necessário criar a figura da reserva
extrativista como forma de preservar a Amazônia. (…) Nós entendemos, os
seringueiros entendem, que a Amazônia não pode se transformar num santuário
intocável. Por outro lado, entendemos, também, que há uma necessidade muito
urgente de se evitar o desmatamento que esta ameaçando a Amazônia e com isto
está ameaçando até a vida de todos os povos do planeta. (…)
O que nós
queremos com a reserva extrativista? Que as terras sejam da União e que elas
sejam de usufruto dos seringueiros ou dos trabalhadores que nela habitam, pois
não são extrativistas só os seringueiros.”[5]
A solução
proposta, uma espécie de reforma agrária adaptada às condições da Amazônia, é
de inspiração socialista, posto que se baseia na propriedade pública da terra,
e no usufruto dos trabalhadores. É provavelmente nesta época que Chico diz à
sua companheira de lutas Marina Silva : “Nega velha, isso que a gente faz
aqui é ecologia. Acabei de descobrir isso no Rio de Janeiro”.[6]
Em 1987,
organizações ambientalistas americanas convidam Chico Mendes para dar seu
testemunho em uma reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento; sem
hesitação, ele denuncia que o desmatamento da Amazônia era resultado dos
projetos financiados pelos bancos internacionais. É a partir deste momento que
ele se torna internacionalmente conhecido, recebendo, pouco depois, o Prêmio
Ecológico Global 500, das Nações Unidas. Seu combate era ao mesmo tempo social
e ecológico, local e planetário, “vermelho” e “verde”.
Pragmático,
homem de terreno e de ação, organizador e lutador, preocupado com questões
praticas e concretas – alfabetização, formação de cooperativas, busca de
alternativas econômicas viáveis – Chico era também um sonhador e um utopista,
no sentido nobre e revolucionário da palavra. É impossível ler sem emoção o
testamento socialista e internacionalista que ele deixou para as gerações
futuras, publicado depois de sua morte numa brochura do sindicato de Xapuri e
da CUT :
“Atenção
jovem do futuro,
6 de
setembro do ano de 2120, aniversario do primeiro centenário da revolução socialista
mundial, que unificou todos os povos do planeta, num só ideal e num só
pensamento de unidade socialista, e que pôs fim à todos os inimigos da nova
sociedade.
Aqui ficam
somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte.
Desculpem.
Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos que eu mesmo não verei.
Mas tenho o prazer de ter sonhado”.[7]
Em 1988 o
Encontro Nacional da CUT aprova a tese apresentada por Chico Mendes em nome do
Conselho Nacional dos Seringueiros, com o titulo “Defesa da Natureza e dos
Povos da Floresta”, que apresenta, entre suas reivindicações, a seguinte
exigência, ao mesmo tempo ecológica e social: “pela imediata desapropriação dos
seringais em conflito para a implantação de assentamentos extrativistas de modo
a não agredir a natureza e a cultura dos povos da floresta, possibilitando a
utilização autossustentável dos recursos naturais, incrementando tecnologias
secularmente desenvolvidas pelos povos extratores da Amazônia…”.[8] Ele obtém nesta época duas vitórias importantes: a implantação
das primeiras reservas extrativistas criadas no Estado do Acre, e a
desapropriação do Seringal Cachoeira, do latifundiário Darly Alves da Silva, em
Xapuri. Chico atribuía grande significado a esta conquista: “A coisa mais
importante para estimular a continuidade deste movimento foi a vitória dos
seringueiros da Cachoeira. Esta vitória da Cachoeira teve uma repercussão
positiva pra toda a região, pois os seringueiros estão conscientes de que eles
lutaram contra o grupo mais forte, com assassinos sanguinários. Os seringueiros
tinham consciência que estavam lutando com o esquadrão da morte e mesmo assim
não temeram. Tivemos dias em que contamos com 400 seringueiros reunidos (…) em
piquetes no meio da mata (…)”.[9]
Para a
oligarquia rural, que tem, há séculos, o habito de “eliminar” – em total
impunidade – aqueles que ousam organizar os trabalhadores para lutar contra o
latifúndio, ele é um “cabra marcado para morrer”. Pouco depois, em dezembro de
1988, Chico Mendes é assassinado, em frente de sua casa, por pistoleiros a
serviço dos Alves da Silva.
Por sua
articulação entre socialismo e ecologia, reforma agraria e defesa da Amazônia,
lutas camponesas e lutas indígenas, a sobrevivência de humildes populações
locais e a proteção de um patrimônio da humanidade – a ultima grande floresta
tropical ainda não destruída pelo “progresso” capitalista – o combate de Chico
Mendes é um movimento exemplar, que continuara a inspirar novas lutas, não só
no Brasil mas em outros países e continentes.
Hoje,
princípios de 2005, a luta dos seringueiros continua, com altos e baixos. O
prefeito de Xapuri e o governador do Acre são do PT e se enfrentam com o poder
da oligarquia. Mas os pistoleiros à soldo dos latifundiários da Amazônia
continuam matando, como o mostrou espetacularmente o recente assassinato da
missionaria norte-americana Dorothy Stang, amplamente conhecida por seu
compromisso com a luta dos camponeses sem terra. Marina Silva é ministra do
Meio Ambiente no governo de Lula, onde tenta promover medidas de proteção
da floresta amazônica – mas não conseguiu impedir a legalização da soja
transgênica imposta pela Monsanto.
Mais do que
em partidos ou administrações, a herança de Chico Mendes está presente nas
lutas, nos combates de seringueiros e indígenas, na mobilização dos camponeses
contra os transgênicos, na convergência entre ecologia e socialismo que começa
a se realizar, não só em pequenas redes militantes, mas também em torno do mais
importante movimento social do Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra. No quadro das comemorações do seu 20° aniversario, o MST organizou, em
colaboração com a UFRJ, um seminário internacional no Rio de Janeiro (julho de
2004) sobre os “Dilemas da Humanidade”.[10] Na brochura de apresentação da Conferência, encontramos
resumido em belas palavras, o “sonho de olhos abertos” (para usar uma expressão
do filosofo marxista da esperança Ernst Bloch) dos organizadores: “um sonho que
teima em acontecer: um mundo igualitário, que socialize suas riquezas materiais
e culturais”. No mesmo documento encontramos este diagnóstico da realidade
atual: “A tal ponto o mundo encontra-se aviltado que não se trata mais de
pensar estratégias para fazê-lo “voltar ao eixos”, trata-se de construir um
caminho novo, baseado na igualdade entre os seres humanos e em princípios
ecológicos”. Um caminho novo, igualitário e ecológico, socializando as
riquezas: acho que Chico Mendes se reconheceria neste programa.
Paris,
15 de maio de 2005
[1] Chico Mendes por ele mesmo, Rio de Janeiro, FASE, 1989,
p. 64. Trata-se de uma entrevista auto-biográfica realizada em Xapuri em
novembro-dezembro de 1988 pelo prof. Pedro Vicente Sobrinho, da Universidade
Federal do Acre, segundo um roteiro estabelecido por Candido Grzybowksi,
professor na Fundação Getulio Vargas.
[2] Em sua entrevista auto-biográfica, Chico Mendes descreve este
incidente: “Mataram Wilson e os trabalhadores ficaram em desespero. (…)
Sentindo que não iam ter nenhuma resposta por parte da justiça (…) foram
emboscar um dos fazendeiros, um dos mandantes da morte de Wilson Pinheiro. (…)
Os trabalhadores submeteram o fazendeiro a um julgamento sumário e a decisão
foi pelo seu fuzilamento. (…) Mas, aí, a Justiça funcionou desta vez, de uma
forma muito brava. Durante 24 horas dezenas, centenas de seringueiros foram
presos, torturados, alguns de unha arrancada com alicate. A Justiça funcionou
porque tinha sido uma reação do pequeno contra o grande”. Chico Mendes por ele
mesmo, Rio de Janeiro, FASE, 1989, p. 19.
[3] ”Eu discordava da algumas posições do PC do B, naquela
época, porque quando a gente se articulava contra o latifúndio, quando eu
enfrentava a luta, os embates e a repressão caiam em cima de mim, eles se
escondiam por detrás das cortinas. Só eu aparecia na história. Comecei a ficar
meio bravo com aquilo, desconfiando daquilo. Rompi com o grupo do PC do B e
aderi ao Partido dos Trabalhadores”. (Chico Mendes por ele mesmo, p. 69).
[4] Discurso de Chico Mendes, citado por Ailton Krenak,
coordenador da União das Nações Indígenas, in Chico Mendes, Sindicato dos
Trabalhadores de Xapuri, Central Unica dos Trabalhadores, S.Paulo, Janeiro de
1989, p. 26.
[5] Chico Mendes por ele mesmo, Rio de Janeiro, FASE, 1989, p. 24.
O título deste capítulo da entrevista autobiográfica é “A criação de reservas
extrativistas na Amazônia como alternativa ecológica e econômica”.
[6] Cf. Legado Chico Mendes, Rio de Janeiro, Sesc, 2003, p. 38.
[7] Chico Mendes, Sindicato dos Trabalhadores de Xapuri, Central
Unica dos Trabalhadores, S.Paulo, Janeiro de 1989, p.34.
[8] Ibid. p. 21
[9] Chico Mendes por ele mesmo, p. 57.
[10] Nesta ocasião, tive a oportunidade de fazer uma exposição
sobre o eco-socialismo, que suscitou ampla discussão.
***
Michael
Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na
Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/
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