Meu trabalho é a arma do manifestante, aponta Latuff
O
cartunista Carlos Latuff é um dos principais ativistas político de esquerda do
Brasil. Aos 45 anos, tem charges publicadas em diversos países, com temas
ligados aos direitos humanos e à cidadania, como os trabalhos a favor da causa
Palestina e contra a repressão do Estado sobre manifestantes sociais. Com um
trabalho que é compartilhado basicamente através da internet, ganhou diversos
seguidores e muitos inimigos, principalmente os sionistas.
Natural do Rio de Janeiro, Latuff recentemente trocou o centro do País pelo Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, acompanhou – e retratou – as manifestações de rua, a ocupação da Câmara Municipal pelo Bloco de Luta e outras atividades promovidas por estudantes e sindicalistas. Em entrevista ao Jornal do Comércio, na praça da Matriz, o cartunista avalia as manifestações deste ano no País, o papel da imprensa, a criminalização de setores mais pobres da sociedade e conta um pouco de seu trabalho.
Natural do Rio de Janeiro, Latuff recentemente trocou o centro do País pelo Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, acompanhou – e retratou – as manifestações de rua, a ocupação da Câmara Municipal pelo Bloco de Luta e outras atividades promovidas por estudantes e sindicalistas. Em entrevista ao Jornal do Comércio, na praça da Matriz, o cartunista avalia as manifestações deste ano no País, o papel da imprensa, a criminalização de setores mais pobres da sociedade e conta um pouco de seu trabalho.
Jornal do
Comércio – Seu trabalho adquiriu dimensão internacional a partir da causa
Palestina. Como isso começou?
Carlos Latuff – Em 1998, passei 15 dias na Cisjordânia e, depois de ver como os palestinos vivem, comecei a retratar isso. Ganhei o título de antissemita, pecha que é aplicada a quem decide apoiar a causa palestina. Em 2012, fui classificado pelo Centro Simon Wiesental como o terceiro maior antissemita do mundo, só perdi para a Irmandade Muçulmana do Egito e para o regime iraniano. Tive essa classificação porque fiz uma charge do primeiro ministro de Israel (Benjamin Netanyahu) torcendo o cadáver de uma criança palestina, de onde saem votos para uma urna. Fiz isso porque os recentes ataques a Gaza foram feitos sempre às vésperas de eleições em Israel. É uma questão política e não cultural ou racial. Mas porque o Netanyahu é judeu e estamos falando de Israel, sou automaticamente associado ao antissemitismo. E na cabeça das pessoas vêm as imagens do holocausto que são batidas diariamente, através desse lobby de organizações que se utilizam da ideia de que os judeus foram vítimas – e de fato foram vítimas – para associar as criticas a Israel como perseguição, da mesma maneira que perseguiam os judeus no nazismo ou na Idade Média. A minha posição em relação à questão palestina não tem a ver com judeus e negação do holocausto. A questão é os direitos humanos dos palestinos. É do direito à terra. Da mesma maneira que defendo o direito à terra do camponês brasileiro, defendo o do palestino. Não adianta tentar desacreditar a causa palestina associando ao antissemitismo. O antissemitismo existe como existe o ódio aos homossexuais, aos negros. Existem ódios. O ódio ao judeu é mais um ódio. Como existe ódio aos palestinos e aos muçulmanos. A questão de defender a causa palestina não tem nada a ver com ódio aos judeus, tem a ver com direitos humanos. Eu não sou antissemita, as charges que faço não são antissemitas.
JC – Como foi ver milhares de manifestantes da Primavera Árabe empunhando suas charges?
Latuff – O meu trabalho é como uma arma que pode ser utilizada pelo manifestante. Ela (a charge) é utilizada da mesma maneira que ele utiliza a pedra, o coquetel molotov ou o celular.
Carlos Latuff – Em 1998, passei 15 dias na Cisjordânia e, depois de ver como os palestinos vivem, comecei a retratar isso. Ganhei o título de antissemita, pecha que é aplicada a quem decide apoiar a causa palestina. Em 2012, fui classificado pelo Centro Simon Wiesental como o terceiro maior antissemita do mundo, só perdi para a Irmandade Muçulmana do Egito e para o regime iraniano. Tive essa classificação porque fiz uma charge do primeiro ministro de Israel (Benjamin Netanyahu) torcendo o cadáver de uma criança palestina, de onde saem votos para uma urna. Fiz isso porque os recentes ataques a Gaza foram feitos sempre às vésperas de eleições em Israel. É uma questão política e não cultural ou racial. Mas porque o Netanyahu é judeu e estamos falando de Israel, sou automaticamente associado ao antissemitismo. E na cabeça das pessoas vêm as imagens do holocausto que são batidas diariamente, através desse lobby de organizações que se utilizam da ideia de que os judeus foram vítimas – e de fato foram vítimas – para associar as criticas a Israel como perseguição, da mesma maneira que perseguiam os judeus no nazismo ou na Idade Média. A minha posição em relação à questão palestina não tem a ver com judeus e negação do holocausto. A questão é os direitos humanos dos palestinos. É do direito à terra. Da mesma maneira que defendo o direito à terra do camponês brasileiro, defendo o do palestino. Não adianta tentar desacreditar a causa palestina associando ao antissemitismo. O antissemitismo existe como existe o ódio aos homossexuais, aos negros. Existem ódios. O ódio ao judeu é mais um ódio. Como existe ódio aos palestinos e aos muçulmanos. A questão de defender a causa palestina não tem nada a ver com ódio aos judeus, tem a ver com direitos humanos. Eu não sou antissemita, as charges que faço não são antissemitas.
JC – Como foi ver milhares de manifestantes da Primavera Árabe empunhando suas charges?
Latuff – O meu trabalho é como uma arma que pode ser utilizada pelo manifestante. Ela (a charge) é utilizada da mesma maneira que ele utiliza a pedra, o coquetel molotov ou o celular.
JC – Como
começou o trabalho para a primavera árabe?
Latuff – Aqueles manifestantes do Egito, eles conheciam o meu trabalho da Palestina e entraram em contato comigo para que eu produzisse charges. Eles fizeram contato via twitter, dois dias antes do protesto do Cairo. Os protestos já estavam sendo planejados para derrubar o (Hosni) Mubarak e, a principio, fiz cinco charges. Eles começaram a imprimir e levar para a rua. Continuei a produzir até a queda do Mubarak. Depois da queda, veio a junta militar e continuei fazendo. Fiz até as eleições, que elegeram Mohammed Morsi. Durante o regime Morsi também fiz charges. Depois com o golpe que derrubou o Morsi, dei uma parada. Apoiei os egípcios sempre, mas quando falei que o que houve agora foi um golpe militar contra o Morsi, que gostando ou não gostando foi eleito, me chamaram de tudo quanto é coisa, inclusive que eu era adepto da Irmandade Muçulmana, para dizer o mínimo. Eles têm ojeriza da Irmandade e entenderam que os militares – os mesmos militares que mataram manifestantes em 2011 e 2012, e responsáveis por tantos massacres – agora estão salvaguardando a revolução de janeiro. Agora, faço uma charge ou outra para eles, mas perdi o tesão porque eles são malucos.
JC – O ativismo já resultou em ameaças de morte?
Latuff – Sim, várias vezes. A última foi depois de uma declaração minha sobre a família de policiais morta em São Paulo. Recebi ameaças de um ex-brigadiano reformado e de uma policial que trabalha na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Disseram que se me encontrassem, me matavam. Mas já recebi ameaça de morte de sionistas, do seguimento radical do Egito e de outros.
JC – A vinda para Porto Alegre foi por este motivo?
Latuff – Não. No Rio de Janeiro nunca fui ameaçado por um policial, saí porque aqui tem uma qualidade de vida muito melhor.
JC – Como avalia o cenário eleitoral em meio a essa crise de representatividade?
Latuff – Infelizmente, nos tornamos reféns das escolhas que o sistema nos dá. A gente precisa criar uma alternativa longe dessa polaridade. Uma alternativa de esquerda. Não uma alternativa de direita, porque alternativa de direita não é alternativa, é a mesma coisa com a cara diferente. Hoje, boa parte da militância de esquerda está atrelada a partidos. Não sei se isso vai mudar, o segmento de militância espontânea que surgiu nos protestos de junho, como não tem um comprometimento, não vai longe. Pode acontecer como a Primavera Árabe: os egípcios foram para as ruas, cada um com suas bandeiras, conseguiram derrubar os (Hosni) Mubarak. Mas, o que veio depois? Os militares. Eles derrubaram o presidente, mas não mudaram o sistema. O sistema político-econômico continua o mesmo. Não tinha uma organização que poderia levar a um processo revolucionário.
JC – Vê a juventude de Porto Alegre mais politizada com relação à carioca?
Latuff – O gaúcho é mais politizado. O Rio de Janeiro não tem para bater no peito um Olívio Dutra. O Brasil inteiro não tem. Comparativamente, o PT daqui é menos pior e pode bater no peito e dizer que teve o Olívio. Se o Olívio fosse candidato para alguma coisa aqui no Estado, faria campanha para ele, isso que não sou petista. Sou crítico do governo do Tarso (Genro), da Dilma (Rousseff). Eu não tenho filiação partidária. Virou moda dizer que quando se critica o governo do PT você é psolista, é tucano, é PIG (Partido da Imprensa Golpista). Eu não tenho nenhuma ligação partidária, mas se o Olívio fosse candidato, faria campanha de olhos fechados. O PT não tem mais ninguém de vulto.
JC – Em Porto Alegre, vimos ativamente o movimento anarquista. Como avalia essa “descoberta”?
Latuff – Ele sempre existiu. Pode ser que se tenha descoberto os anarquistas porque a imprensa falou deles. Mas também o próprio movimento pode não ter se preocupado em ganhar visibilidade. Não podemos negar que existe uma criminalização. Acho que o movimento anarquista poderia aproveitar este momento para falar das suas bandeiras. Pode ser que, a partir das manifestações, haja o surgimento de uma militância não convencional.
Latuff – Aqueles manifestantes do Egito, eles conheciam o meu trabalho da Palestina e entraram em contato comigo para que eu produzisse charges. Eles fizeram contato via twitter, dois dias antes do protesto do Cairo. Os protestos já estavam sendo planejados para derrubar o (Hosni) Mubarak e, a principio, fiz cinco charges. Eles começaram a imprimir e levar para a rua. Continuei a produzir até a queda do Mubarak. Depois da queda, veio a junta militar e continuei fazendo. Fiz até as eleições, que elegeram Mohammed Morsi. Durante o regime Morsi também fiz charges. Depois com o golpe que derrubou o Morsi, dei uma parada. Apoiei os egípcios sempre, mas quando falei que o que houve agora foi um golpe militar contra o Morsi, que gostando ou não gostando foi eleito, me chamaram de tudo quanto é coisa, inclusive que eu era adepto da Irmandade Muçulmana, para dizer o mínimo. Eles têm ojeriza da Irmandade e entenderam que os militares – os mesmos militares que mataram manifestantes em 2011 e 2012, e responsáveis por tantos massacres – agora estão salvaguardando a revolução de janeiro. Agora, faço uma charge ou outra para eles, mas perdi o tesão porque eles são malucos.
JC – O ativismo já resultou em ameaças de morte?
Latuff – Sim, várias vezes. A última foi depois de uma declaração minha sobre a família de policiais morta em São Paulo. Recebi ameaças de um ex-brigadiano reformado e de uma policial que trabalha na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo. Disseram que se me encontrassem, me matavam. Mas já recebi ameaça de morte de sionistas, do seguimento radical do Egito e de outros.
JC – A vinda para Porto Alegre foi por este motivo?
Latuff – Não. No Rio de Janeiro nunca fui ameaçado por um policial, saí porque aqui tem uma qualidade de vida muito melhor.
JC – Como avalia o cenário eleitoral em meio a essa crise de representatividade?
Latuff – Infelizmente, nos tornamos reféns das escolhas que o sistema nos dá. A gente precisa criar uma alternativa longe dessa polaridade. Uma alternativa de esquerda. Não uma alternativa de direita, porque alternativa de direita não é alternativa, é a mesma coisa com a cara diferente. Hoje, boa parte da militância de esquerda está atrelada a partidos. Não sei se isso vai mudar, o segmento de militância espontânea que surgiu nos protestos de junho, como não tem um comprometimento, não vai longe. Pode acontecer como a Primavera Árabe: os egípcios foram para as ruas, cada um com suas bandeiras, conseguiram derrubar os (Hosni) Mubarak. Mas, o que veio depois? Os militares. Eles derrubaram o presidente, mas não mudaram o sistema. O sistema político-econômico continua o mesmo. Não tinha uma organização que poderia levar a um processo revolucionário.
JC – Vê a juventude de Porto Alegre mais politizada com relação à carioca?
Latuff – O gaúcho é mais politizado. O Rio de Janeiro não tem para bater no peito um Olívio Dutra. O Brasil inteiro não tem. Comparativamente, o PT daqui é menos pior e pode bater no peito e dizer que teve o Olívio. Se o Olívio fosse candidato para alguma coisa aqui no Estado, faria campanha para ele, isso que não sou petista. Sou crítico do governo do Tarso (Genro), da Dilma (Rousseff). Eu não tenho filiação partidária. Virou moda dizer que quando se critica o governo do PT você é psolista, é tucano, é PIG (Partido da Imprensa Golpista). Eu não tenho nenhuma ligação partidária, mas se o Olívio fosse candidato, faria campanha de olhos fechados. O PT não tem mais ninguém de vulto.
JC – Em Porto Alegre, vimos ativamente o movimento anarquista. Como avalia essa “descoberta”?
Latuff – Ele sempre existiu. Pode ser que se tenha descoberto os anarquistas porque a imprensa falou deles. Mas também o próprio movimento pode não ter se preocupado em ganhar visibilidade. Não podemos negar que existe uma criminalização. Acho que o movimento anarquista poderia aproveitar este momento para falar das suas bandeiras. Pode ser que, a partir das manifestações, haja o surgimento de uma militância não convencional.
JC – Como
avalia a “autocrítica” da imprensa depois da eclosão das manifestações?
Latuff – Não há motivo para que a imprensa apoie as manifestações, a menos que elas sejam contra o governo. Se as manifestações contestam o establishment, a chamada grande imprensa não pode ser a favor, porque faz parte disso. Acredito que a virada tem a ver com uma percepção que o mainstream teve de que as manifestações poderiam se voltar contra o governo.
JC – Dividir os manifestantes entre “vândalos” e “pacíficos” foi uma estratégia da imprensa para “apoiar” as mobilizações? Em que medida isso legítima a repressão contra manifestantes taxados de violentos?
Latuff – A manifestação limpinha, tranquila, que não quebra nada e não suja nada é a manifestação que agrada ao establishment, porque não causa nada. O bom da manifestação é quando ela causa um ruído. Se não é capaz de produzir ruído algum, então ela é inócua. Quebrar banco, de alguma maneira, criou este ruído. No Brasil, sempre se tentou impedir ruptura, resolvendo os problemas através de acordos petit comitê. Quando se anuncia uma ruptura, o establishment resolve com um acordo, porque sabe que a ruptura é o primeiro passo para a transformação. É crise, ruptura e transformação. É interessante que o establishment fale em manifestações pacíficas se não temos uma polícia pacífica, se o Estado brasileiro não é pacifico. O ambiente em que a gente vive, o massacre social que a gente vive, a vida nas favelas, a violência contra as mulheres, contra os gays, contra os jovens negros, não têm nada de pacífico.
JC – Depois, os manifestantes foram divididos entre os bons manifestantes, os black blocks e os saqueadores – oriundos das favelas. A periferia acabou rechaçada?
Latuff – Se as manifestações não forem hábeis em trazer essa militância da favela, não vão adiante. O segmento mais massacrado e vitimado por esse sistema em que as pessoas vão para a rua combater é o das favelas. A imprensa tem um tratamento específico quando a manifestação é na favela: “é manifestação controlada pelo tráfico”. Claro que tem dois tipos de manifestantes: o bom e o mau. Quando o manifestante vai para a rua, queima pneu, tranca a via, desce a favela e o morro, vira carro, “é o tráfico que está junto”. E existe o manifestante “coxinha” da favela, que é do Viva Rio, Afroreggae e Cufa. Esse ativista, que é correio de transmissão das políticas do Estado, é o bom ativista. Não se pode imaginar um processo de transformação que não tenha a favela. Costumo sempre dizer: “no asfalto a bala é de borracha, na favela é de chumbo”. As favelas são territórios de exclusão muito especiais. Estive em várias, fiz ensaios fotográficos. Um em particular é a essência desse processo da chamada guerra contra as drogas. Em Acari, ia andando e tinha buracos, rombos pelo chão, no concreto. Me falaram que aquilo era tiro do helicóptero, jogado de cima. A polícia do Rio de Janeiro tem um helicóptero igual ao que o Exército norte-americano usou no Vietnã.
JC – Porque a militância da favela não cresce?
Latuff – Tem três coisas que impedem de avançar. Uma é o tráfico. Porque o tráfico, no momento em que ele tiver que escolher entre o manifestante e o Estado, ele vai topar o Estado. O traficante não é um revolucionário, é um comerciante e só existe por força do Estado. Ele não é um revolucionário de esquerda. As armas que chegam na mão dele, a droga, não é um avião que joga de cima com um paraquedas. O segundo são as igrejas evangélicas. Na favela tem igreja evangélica em cada buraco e ela está ali para formar cordeiros que abaixam a cabeça. O terceiro são as ONGs, que estão lá também para formar neguinhos dóceis. Negros e favelados dóceis que acreditam que um dia, se trabalharem muito, chegarão lá. É por isso que existe uma tensão tão grande na favela. Porque o establishment sabe que as favelas são bolsões de revolta social.
JC – A ideologia da nova classe média contribui para isso? Ela individualiza o problema que é social?
Latuff – Este regime que a gente vive trabalha com a sensação. Você tem sensação de democracia, sensação de cidadania, mas não existe. Claro, evidente que o pobre tem direitos de comprar bens de consumo, é bom que ele tenha essa possibilidade, ninguém discute isso. Mas o que define a cidadania não é o fato de comprar um celular novo, é o de ter serviços públicos de qualidade. Afinal de contas, estes favelados também pagam impostos e têm os mesmos direitos. Mas o regime capitalista funciona pela exclusão. Não posso cobrar do regime capitalista que ele seja includente. Ele é excludente por natureza, trabalha com o regime de classes. Tem que ter uma classe que gasta e outra que banca o gasto. Uma classe que é patrão e outra que é empregado. Não adianta tentar mudar o capitalismo. Não dá. É preciso dizer isso claramente. Não é reforma que a gente precisa é de uma mudança.
Latuff – Não há motivo para que a imprensa apoie as manifestações, a menos que elas sejam contra o governo. Se as manifestações contestam o establishment, a chamada grande imprensa não pode ser a favor, porque faz parte disso. Acredito que a virada tem a ver com uma percepção que o mainstream teve de que as manifestações poderiam se voltar contra o governo.
JC – Dividir os manifestantes entre “vândalos” e “pacíficos” foi uma estratégia da imprensa para “apoiar” as mobilizações? Em que medida isso legítima a repressão contra manifestantes taxados de violentos?
Latuff – A manifestação limpinha, tranquila, que não quebra nada e não suja nada é a manifestação que agrada ao establishment, porque não causa nada. O bom da manifestação é quando ela causa um ruído. Se não é capaz de produzir ruído algum, então ela é inócua. Quebrar banco, de alguma maneira, criou este ruído. No Brasil, sempre se tentou impedir ruptura, resolvendo os problemas através de acordos petit comitê. Quando se anuncia uma ruptura, o establishment resolve com um acordo, porque sabe que a ruptura é o primeiro passo para a transformação. É crise, ruptura e transformação. É interessante que o establishment fale em manifestações pacíficas se não temos uma polícia pacífica, se o Estado brasileiro não é pacifico. O ambiente em que a gente vive, o massacre social que a gente vive, a vida nas favelas, a violência contra as mulheres, contra os gays, contra os jovens negros, não têm nada de pacífico.
JC – Depois, os manifestantes foram divididos entre os bons manifestantes, os black blocks e os saqueadores – oriundos das favelas. A periferia acabou rechaçada?
Latuff – Se as manifestações não forem hábeis em trazer essa militância da favela, não vão adiante. O segmento mais massacrado e vitimado por esse sistema em que as pessoas vão para a rua combater é o das favelas. A imprensa tem um tratamento específico quando a manifestação é na favela: “é manifestação controlada pelo tráfico”. Claro que tem dois tipos de manifestantes: o bom e o mau. Quando o manifestante vai para a rua, queima pneu, tranca a via, desce a favela e o morro, vira carro, “é o tráfico que está junto”. E existe o manifestante “coxinha” da favela, que é do Viva Rio, Afroreggae e Cufa. Esse ativista, que é correio de transmissão das políticas do Estado, é o bom ativista. Não se pode imaginar um processo de transformação que não tenha a favela. Costumo sempre dizer: “no asfalto a bala é de borracha, na favela é de chumbo”. As favelas são territórios de exclusão muito especiais. Estive em várias, fiz ensaios fotográficos. Um em particular é a essência desse processo da chamada guerra contra as drogas. Em Acari, ia andando e tinha buracos, rombos pelo chão, no concreto. Me falaram que aquilo era tiro do helicóptero, jogado de cima. A polícia do Rio de Janeiro tem um helicóptero igual ao que o Exército norte-americano usou no Vietnã.
JC – Porque a militância da favela não cresce?
Latuff – Tem três coisas que impedem de avançar. Uma é o tráfico. Porque o tráfico, no momento em que ele tiver que escolher entre o manifestante e o Estado, ele vai topar o Estado. O traficante não é um revolucionário, é um comerciante e só existe por força do Estado. Ele não é um revolucionário de esquerda. As armas que chegam na mão dele, a droga, não é um avião que joga de cima com um paraquedas. O segundo são as igrejas evangélicas. Na favela tem igreja evangélica em cada buraco e ela está ali para formar cordeiros que abaixam a cabeça. O terceiro são as ONGs, que estão lá também para formar neguinhos dóceis. Negros e favelados dóceis que acreditam que um dia, se trabalharem muito, chegarão lá. É por isso que existe uma tensão tão grande na favela. Porque o establishment sabe que as favelas são bolsões de revolta social.
JC – A ideologia da nova classe média contribui para isso? Ela individualiza o problema que é social?
Latuff – Este regime que a gente vive trabalha com a sensação. Você tem sensação de democracia, sensação de cidadania, mas não existe. Claro, evidente que o pobre tem direitos de comprar bens de consumo, é bom que ele tenha essa possibilidade, ninguém discute isso. Mas o que define a cidadania não é o fato de comprar um celular novo, é o de ter serviços públicos de qualidade. Afinal de contas, estes favelados também pagam impostos e têm os mesmos direitos. Mas o regime capitalista funciona pela exclusão. Não posso cobrar do regime capitalista que ele seja includente. Ele é excludente por natureza, trabalha com o regime de classes. Tem que ter uma classe que gasta e outra que banca o gasto. Uma classe que é patrão e outra que é empregado. Não adianta tentar mudar o capitalismo. Não dá. É preciso dizer isso claramente. Não é reforma que a gente precisa é de uma mudança.
Fonte: http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=143329
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