segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Guarda-chuvas políticos - Por Emanuel Conceição

Guarda-chuvas políticos

Em que “organizações guarda-chuva” cola a juventude, hoje? Serão elas ainda necessárias? Por Emanuel Conceição

No ativismo, na militância, há quem entenda que todo o sistema político existente serve ainda para alcançar seus objetivos finais; há outros que, como aconteceu comigo, entendem que o sistema político vigente é inútil como instrumento para sua ação, e partem para o ativismo autônomo. É a estes últimos que estas reflexões são direcionadas.

A partir de suas atividades, estes que enxergam a inutilidade do sistema político vigente – ou, melhor dizendo, como ele serve para que certas classes dominem e explorem outras, que lutam contra a exploração e a dominação – tentam encontrar outras pessoas com sensibilidades e interesses semelhantes, tentam estabelecer acordos mínimos para fazer atividades em conjunto, rebolam pra conseguir fazer aquilo a que se propõem… Sabemos o quanto isso é trabalhoso.

Por outro lado, há também quem, tendo em conta ou não esta crítica ao sistema político, se junta “ao que já está aí” de uma forma ou outra; no meu caso, este “o que está aí” era andar com os punks e os petistas ao mesmo tempo – afinal, era 1992, tempos do “Fora Collor”, e tudo aquilo era muito mágico, por assim dizer: ir às ruas e protestar, intervir no processo político, colocar para fora o que pensava das coisas, da vida e do mundo. Eram os tempos em que ser “de esquerda” implicava, quase automaticamente, numa opção anti-sistêmica. Mais que um método, a opção pela “esquerda” trazia consigo certa “sensibilidade”, certa forma de ver o mundo na qual todos não apenas podiam, mas deviam tomar seus destinos em suas próprias mãos.

A sensibilidade de esquerda que tinha era exatamente isso: uma “sensibilidade”, um ódio instintivo ao “sistema” como um todo, sem muito conhecimento dos detalhes, de como se processa a dominação no capitalismo, de como combater esta dominação etc.. Junte isso tudo e pronto, temos um “jovem eu” – como se eu já fosse velho e caquético para falar de um “jovem eu”, olha só que petulância! – que incorporou-se à “área de influência do PT” por muitos anos, pelo menos até 2000 (mesmo, contraditoriamente, me declarando anarquista desde aquela época).

O que me levou então a entrar na área de influência do PT? Por que o PT atraía tantos jovens naquela época? Me parece que esta “sensibilidade de esquerda” da qual falei me levou – e a incontáveis outros da minha idade – para perto do PT porque, realmente, “era o que estava aí”. Eu não tinha a menor noção de que eu poderia bolar minhas próprias atividades políticas por conta própria, sem precisar me submeter ao direcionamento político de quem quer que fosse, e que neste processo talvez encontrasse outras pessoas com atividades afins etc. Na verdade, o que me interessava era falar mal de Collor, de Itamar Franco, de FHC etc., e ter gente com quem fazê-lo enquanto buscava cuidar de outras coisas (cooperativa de catadores, movimento estudantil etc.)… Pegava bem ser de esquerda, dava status, ajudava a ficar bem na fita com as meninas do outro lado da sala – eu sempre me sentava com os nerds e esquisitões do fundo – e ser de esquerda na época era ser do PT. E lá fui eu.

Daí a teoria do guarda-chuva. Temos inseguranças e medos que nos atacam todos os dias, sejam eles de ordem biológica ou criados socialmente: o patrão nos deixa inseguros porque pode nos demitir a qualquer momento, isso quando temos a duvidosa sorte de termos um patrão; um soropositivo tem medo de expor sua condição e ser excluído de uma série de ambientes e oportunidades; existe o medo de parecermos esquisitos em certos ambientes e sermos rejeitados; um homossexual tem medo de ser morto pelo cara com quem teve uma ótima noite de sexo, como não raro acontece; na próxima esquina uma bala perdida pode nos encontrar, quando não é um sacizeiro travado de crack ou cola que puxa uma faca e exige tudo o que temos; mulheres negras têm medo de parar de alisar o cabelo e sofrer todo tipo de humilhação; temos medo de não sermos amados e sofrermos por causa disso; o salário do mês que vem pode não chegar; um carro pode nos atropelar quando atravessamos a rua; mulheres são criadas desde pequenas com um medo constante de serem estupradas; muitos pais têm medo do que pode acontecer com seus filhos quando eles viajam ou vão a uma festa, e muitos filhos têm medo de perder o mínimo de segurança que representa morar com os pais; um sem-terra, por mais combativo que seja, tem medo de morrer pelas mãos de um jagunço ou de um policial; alcoólatras e drogadictos têm medos que só confessam às substâncias que os amenizam; e por aí vai. Um dos fatores da coesão social nesta fase do capitalismo é a insegurança, que se reproduz diariamente por meios variadíssimos.

Fazer ativismo político é mais ou menos como sair de casa no meio de uma tempestade. A forma de sociedade sob a qual vivemos nos coloca uma série de meios “seguros” de viver, que de certa maneira recusamos quando nos decidimos a construir uma nova sociedade. Dá frio na barriga. Dá medo. Tocar num só ponto da ordem estabelecida equivale, na cabeça de quem está paralisado pelo medo, a bulir com toda a segurança e estabilidade que tem, por mínima que seja. Assim, “acabar com a propriedade privada é bulir na minha casa”, “acabar com a necessidade de existirem patrões é querer o caos”, “parar rua é fazer baderna”, e por aí vai. E pior: há o medo, comum nos meios ativistas, de que o que fazemos não resulte no que queremos, de pararmos no meio do caminho por falta de forças, de sermos traídos etc.

Ainda assim, tem quem queira sair na tempestade. Aquilo que está fora da segurança de nossas casas parece valer a pena, então saímos para atravessar o aguaceiro. E aí vem a diferença entre quem segue a via autônoma e quem cola com “o que está aí”. Os autônomos vão para onde querem, se encharcam na insegurança controlando seus medos, enquanto estes outros que colam “no que está aí” – dos quais eu mesmo fui parte por muito tempo – não conseguem sair de casa sem um guarda-chuva. A tempestade parece forte demais, assusta, e é preciso um mínimo de proteção para se chegar onde se quer – é o que está na cabeça dos que colam “no que está aí”.

Há dezoito anos busquei o PT como guarda-chuva, e há dez o abandonei. Entendi os problemas por trás daquilo que me parecia ser meu porto seguro, e me vi de repente no meio do aguaceiro sem proteção nenhuma. Era como ter o guarda-chuva levado pelo vento no meio de um descampado. Com o tempo, aprendi a suportar a água batendo direto na minha pele – a roupa já estava colada em mim de tão encharcada – e o vento frio. Ou, melhor dizendo: aprendi a localizar minhas próprias falhas, a ouvir críticas, a lidar com os outros e a entendê-los, mas ainda assim continuo com todas as inseguranças possíveis; apenas aprendi a lidar com elas num processo de superação do que há de capitalismo em mim, como parte de um processo de luta anticapitalista autônoma.

Se me abro assim, é para chegar a uma conclusão simples. O PT foi um guarda chuva para uma geração inteira de jovens. Era “o que havia”. Em outras épocas certamente houve outros guarda-chuvas; antes da ditadura militar o PCB deve ter sido um desses. Mas e hoje?

É preciso entender mais ou menos como uma organização qualquer pode se tornar um guarda-chuva. Ela precisa ter visibilidade, precisa ter seu nome em circulação de forma bastante ampla. Precisa ser uma alternativa a um sistema de dominação, de exploração, de humilhação cotidiana, de vida ruim – ou ao menos precisa parecer com uma alternativa. Precisa ainda ser algo no que se possa participar, ou pelo menos ajudar. São os elementos básicos de algo “que está aí”.

Vistas as coisas desta forma, o PT ainda é um guarda-chuva, e dos grandes, mas está abalado. Ser governo faz com que a utopia – elemento típico de uma organização guarda-chuva – seja substituída pelo mais cru realismo político, a chamada realpolitik: fazer política sem nenhuma perspectiva de mudança radical, sem nenhum projeto novo de sociedade radicalmente contrário a esta de hoje, contando apenas com os recursos que se tem para manter as pessoas com um mínimo para sobreviverem em suas vidas atemorizadas e entorpecidas.

Há setores da juventude – e não só dela – que não vêem mais o PT como guarda-chuva, tal como eu vi no começo dos anos 90. Denúncias de corrupção, engessamento dos movimentos sociais a ele atrelados, falta de combatividade… Não há guarda-chuva que resista a este vendaval.

Mas, se o PT está assim, o que é que “está aí”? Temos o PSOL – que, apesar de extremamente confuso e conflituoso em seus fóruns internos, ainda representa para muitos uma perspectiva de mudança. Temos o PSTU; apesar de não ter figuras públicas de destaque como o PSOL chegou a ter durante um tempo, participa de todas as lutas possíveis, e assim legitima-se enquanto “partido de lutas”. Apesar disso, trata-se de partidos, ou seja, de organizações que, mesmo anticapitalistas até o talo, juntam gente que pensa existir ainda alguma brecha dentro do sistema político a partir da qual podem exercer sua militância. Falando especialmente da juventude, anos de burocratização das entidades estudantis e um sentimento de recusa indefinida e quase instintiva a partidos coloca limites a estas duas alternativas, não obstante haverem crescido bastante nos últimos anos.

Se é assim, é preciso pensar nas alternativas fora do campo partidário. Temos a mais evidente, que é o MST; mas o MST tem o limite – também evidente – de ser um movimento rural. Visto que muito mais da metade da população brasileira vive em cidades com mais de cem mil habitantes, dado extensível também à juventude, há uma dificuldade fundamental aí para que o MST se torne um guarda-chuva para mais da metade da juventude brasileira. Os movimentos de sem-teto nas diferentes cidades se colocam também como alternativas e atraem a juventude urbana, mas não são muitos os que querem correr os riscos de sair do conforto de suas casas e viver como militantes em ocupações, geralmente em prédios abandonados e insalubres.

Tal como a APPO, os zapatistas, o black block e outros movimentos “de longe”, tanto o MST quanto os movimentos de sem-teto se tornam objeto de admiração para a juventude urbana, ao invés de alternativa de canalizar a rebeldia, instrumento de expressão política – e eis aí como funciona a transformação de um movimento social num fetiche: tem quem colecione vídeos de marchas do MST como se fossem figurinhas e os assistem várias vezes, mostram para amigos que repetem o tempo inteiro como o MST é foda e pulam depois para um vídeo de algum black block europeu ou estadunidense para dizer o mesmo, e depois voltam todos para casa felizes e contentes; é mais ou menos como quando eu colecionava adesivos do PT em meus cadernos de escola e achava que Lula era um cara do caralho, e isto em muito já me bastava.

Se é assim, o que resta? Onde, e em que a juventude de hoje está colando? Quais são os guarda-chuvas de hoje? Ou melhor: ainda existe, hoje, a necessidade de guarda-chuvas?

Fonte: http://passapalavra.info/

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