sexta-feira, 29 de novembro de 2013
quinta-feira, 28 de novembro de 2013
Situacionismo, forma atual de resistência? Por Arlindenor Pedro
Situacionismo, forma atual de resistência?
Guy Debord, Michèle Bernstein e Asger Jorn, três
situacionistas
Criado por marxistas anti-autoritários e artistas
de vanguarda, movimento propunha zanzar pelas cidades, para imaginá-las sob
lógicas não-capitalistas
Os situacionistas europeus de meados do século XX
têm um lugar destacado na história devido à forma singular que tinham de
encarar a vida e vivê-la.
Recém-saídos da guerra, buscaram contrapor suas
idéias libertárias às propostas de reconstrução do mundo europeu originárias da
burguesia liberal e turbinadas pelo Plano Marshall. Estas apresentam uma forma
de urbanismo mais de acordo com a sociedade moderna de consumo. Neste momento,
as cidades se modificam, alterando inclusive a relação do cidadão com o espaço
urbano.
“Defendemos o Urbanismo Unitário como negação do
urbanismo que não constrói nada ‘sobre o terreno’ e sim ‘sobre o papel’.
Buscamos um urbanismo de novas espacialidades que permitam modos de vida em
consonância com processos de subjetivação apropriados, que integrem a cidade em
uma rede permanente de interações com as devidas ressonâncias nas construções
intersubjetivas inerentes à pluralidade da vida comum” – assim se colocavam os
situacionistas, contrapondo-se, inclusive, às propostas modernistas de Le
Corbusier, que naquela época empolgava segmentos importantes da esquerda e dos
comunistas.
Enquanto a arquitetura modernista organizava o
espaço, impedindo a revolução, os situacionistas viam o espaço urbano, em seu
aparente caos, como o campo profícuo para o desenvolvimento de uma arquitetura
capaz de incentivar relações pessoais que impelissem os homens para contestação
e a revolta, tirando-os da passividade e alienação. Os situacionistas chegaram
então a uma convicção exatamente oposta àquela dos arquitetos modernos.
Enquanto estes acreditavam, em um primeiro momento, que a arquitetura e o
urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de
que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo.
Armados com os conceitos da Psicogeografia –
concebida como “ciência” destinada a analisar e decifrar as interações entre
humanos e contextos ambientais –, os situacionistas desenvolveram práticas em
que buscavam avaliar os efeitos do meio ambiente, ordenado conscientemente ou
não, sobre o comportamento afetivo e os sistemas perceptivo e cognitivo dos
indivíduos. Trata-se de um procedimento estratégico utilizado pela
Internacional Situacionista e tornado público nos doze números da Revista da
IS, através de magistrais artigos de seus integrantes — destacando-se aí
Guy Debord e Raoul Vaneigem.
Uma das ferramentas principais para a construção
dessa nova forma de olhar os grandes espaços urbanos foi a prática da deriva
(teoria da deriva), utilizada na formulação dos conceitos libertários sobre
urbanismo, nas suas mais variadas formas, tendo em Debord um dos mais
entusiastas praticantes e defensores.
“As grandes cidades são favoráveis à distração que
chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à
influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve tornar-se
apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo
urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente
inevitáveis. É possível pensar que as reivindicações revolucionárias de uma
época correspondem à ideia que essa época tem da felicidade. A valorização dos
lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso inventar novos
jogos”. Assim os situacionistas definiam a “deriva” em sua Revista IS.
“Pode-se derivar sozinho, mas tudo indica que a
repartição numérica mais frutífera consiste em muitos pequenos grupos de duas
ou três pessoas chegando a uma mesma tomada de consciência, o recorte das
impressões desses diferentes grupos devendo permitir conclusões objetivas. É
desejável que a composição desses grupos mude de uma deriva a outra. Acima de
quatro ou cinco participantes, o caráter próprio da deriva decresce
rapidamente, e em todo caso é impossível superar a dezena sem que a deriva se
fragmente em muitas derivas dirigidas simultaneamente. A prática deste último
movimento é, aliás, de um grande interesse, mas as dificuldades que ele
desencadeia não permitiram até o presente organizá-lo com amplitude desejável.
“A duração média de uma deriva é um dia,
considerado como o intervalo de tempo compreendido entre dois períodos de sol.
Os pontos de partida e chegada, no tempo, em relação ao dia solar, são
indiferentes, mas é preciso notar, entretanto, que as últimas horas da noite
são geralmente impróprias para a deriva.
“Esta duração média da deriva não tem senão valor
estatístico. Logo ela se apresenta diferente de sua pureza, os interessados
evitando dificilmente, no começo ou no fim desse dia, distrair-se por uma ou duas
horas para empregá-las em ocupações banais; no fim do dia a fadiga contribui
muito para esse abandono. Mas, sobretudo, a deriva se desenvolve com frequência
em algumas horas deliberadamente fixadas, ou mesmo fortuitamente durante muitos
breves instantes, ou, ao contrário, durante muitos dias sem interrupção. Apesar
das paradas impostas pela necessidade de dormir, certas derivas com intensidade
suficiente são prolongadas por três a quatro dias, até mesmo mais que isso. É
verdade que, no caso de sucessão de derivas durante longo período, é quase
impossível determinar com alguma precisão o momento em que o estado de espírito
próprio de uma deriva dá lugar ao de outra.
“A influência das variações do clima sobre a
deriva, embora real, não é determinante senão no caso de chuvas prolongadas,
que a impedem quase absolutamente. Mas trovoadas ou outras espécies de
precipitação são, ao contrário, propícias…” (in Internatonale Situationniste,
pp.51-55).
Eu acentuaria, então, que devemos ter em conta que
o acaso é um elemento determinante no processo da deriva. Portanto, o
planejamento para este tipo de estudo não deve ultrapassar a escolha do ponto
de partida. Nao se trata aí de um passeio turístico e nem de se querer chegar a
um local definido. O ato de se perder no espaço e no tempo tem importante
reflexo no conteúdo do que se colhe: com sapatos confortáveis, água,
sanduíches, máquinas fotográficas, papel para anotações, abrigo para o sol etc,
devem aqueles que se lançam na deriva deixar o ambiente envolvê-los e ir caminhando
ou parando, muito de acordo com a percepção do espaço e das pessoas que nele
transitam, vivem ou apenas fazem comércio.
Após a deriva, deve-se sistematizar a empreitada,
através das impressões, das imagens, dos sons e das anotações colhidas.
Por que viramos em determinada rua e não em outra?
Que impressões trouxeram a praça onde paramos para conversar? Como variou a
temperatura durante as mudanças de local? Que tipos vimos pelos caminhos? Que
impressão nos dão as fachadas encontradas?
Aqui no Brasil, com o processo de integração da
economia aos grandes mercados globais, nossas metrópoles estão passando por um
processo de grandes transformações.
Em apenas algumas décadas, num movimento
fantástico, fez-se o transplante de levas inimagináveis de pessoas para as
grandes cidades. Em pouco tempo, deixamos de ser um país rural. Hoje quase 90%
da população vive nas áreas urbanas, num processo constante e desordenado que
transformou essas cidades em fonte de problemas insuperáveis. Impossível uma
máquina pública que dê conta das questões apresentadas por essas megacidades:
transporte insuficiente, insegurança, precárias condições de deslocamento,
sistema de saúde e atendimento médico de má qualidade são alguns dos elementos
que as transformaram em verdadeiros barris de pólvora, onde reina a
insatisfação em todos os segmentos sociais.
Dentro do conceito de sociedade da mercadoria, as
próprias cidades transformaram-se em produtos e, como tais, são vendidas no
mercado internacional do turismo como centros de lazer, de sexo, de negócios,
de esporte etc, obrigando os seus moradores a uma rápida adaptação à nova
finalidade comercial da cidade. O ato de morar, de ocupar um imóvel, passa a
estampar uma situação na qual o valor de uso (as condições reais da moradia) submete-se
ao valor de troca (o preço de mercado da moradia). Mora-se, ou tem-se um ou
mais imóveis em um bairro, de acordo com o valor adquirido no mercado
imobiliário.
Impulsionadas por esse mercado, áreas que antes se
colocavam como reserva da especulação (e por isso não recebiam, por décadas,
investimentos públicos) passaram a viver recentemente mudanças radicais, para
atender aos traçados feitos nas pranchetas dos investidores em eventos como
Copa de Mundo, Olimpíadas etc. Para isso, populações são deslocadas e
instaura-se um momento de grande especulação imobiliária com alta nos preços de
compra, aluguéis, serviços etc, que atinge não só os bairros alvos mas a cidade
como um todo. Esses espaços passam a ter um aspecto diferenciado do que tinham
até então, transformando-se em vitrines do consumo turístico, das quais se
afasta tudo aquilo que destoa do que foi imaginado pelos arquitetos de plantão
— incluindo-se aí as massas pobres, que devem ser escondidas em outras áreas da
cidade.
Projetos como “Porto Maravilha” e “Cidade
Olímpica”, no Rio, e outros semelhantes em outras cidades, são implementados a
toque de caixa, alterando-se traçados e a forma de viver de importantes
segmentos da população. Santuários ecológicos, como o Cocó, em Fortaleza, dão
lugar a vias expressas e viadutos para atender à ganância dos investidores, que
vorazmente vão ocupando todos os espaços, em nome de um pretenso progresso.
Na década de 50/60, na Europa, a atividade política
dos situacionistas, dentre outros, conseguiu impedir a destruição de inúmeros
logradouros em cidades importantes como Paris, Amsterdã etc. Suas atitudes, que
atingiram o auge nas grandes insurreições de 68 em toda a Europa, foram
decisivas na conscientização de parcelas importantes da população de diversos
países, as quais exigiram melhores condições de vida nas cidades que habitavam.
Penso que movimentos atuais no Brasil como o
Catraca Livre, Ocupar Cocó, Ocupa Câmara e outros, que têm levado milhões de
pessoas às ruas, são filhos diretos das manifestações e movimentos de debate e
contestação daquela época, em que os situacionistas se destacavam.
Suas ideias são atuais e têm influenciado muitos
ativistas desses movimentos, haja vista a intensa republicação de seus artigos
e apontamentos, notadamente os que saíram na IS.
A prática da deriva nessas grandes metrópoles pode
tornar-se um valioso instrumento de compreensão da vida real, a vida-vivida,
que nelas ocorre, ultrapassando-se o irreal que nos é vendido através de peças
publicitárias das agências que servem às grandes corporações imobiliárias.
Derivar pelo Bexiga, em São Paulo, pela Rua do Jogo
da Bola, na zona portuária do Rio, ou mesmo pelo centro de Recife, Fortaleza,
Belo Horizonte e outras cidades certamente será um grande prazer, pois são
áreas que estão alterando sua forma centenária de viver e logo entrarão na
lógica da sociedade da mercadoria. Os apontamentos e a contextualização da
realidade desses logradouros tornam-se imperiosos para o nascimento de uma nova
realidade, que virá após o capitalismo. Para isso, basta nos apropriarmos das
novas tecnologias da Internet, You Tube etc e registramos nossas experiências.
Fonte: http://outraspalavras.net/
terça-feira, 26 de novembro de 2013
Nós, os autômatos sociais… (Ou os fundamentos sociais da crueldade) – por Regina Schöpke
Nós, os autômatos sociais… (Ou os fundamentos sociais da crueldade)
Há quem diga que a miséria e a ignorância são as causas mais profundas da violência e da crueldade humanas, mas não é verdade.
A miséria e
a ignorância já são, na verdade, consequências diretas da crueldade do homem.
É,
portanto, exatamente o inverso do que se pensa e propaga.
Digamos
que, sem dúvida alguma, a miséria e a ignorância produzem ainda mais violência
e crueldade, mas, no fundo delas, está o desprezo pelas vidas, a
insensibilidade dos homens diante do sofrimento alheio, está a frieza da nossa
espécie. Afinal, quem seria capaz de esbanjar milhões em futilidades ou viver
exibindo seus bens se lhe doesse de verdade o sofrimento de um outro que passa
fome e necessidade? Ou, mais do que isso, quem exploraria os outros, sem dar a
mínima para a sua existência, senão seres que atingiram tal frieza e
insensibilidade?
É
assustador o quanto o homem pode ser monstruoso, sem se dar conta disso.
É claro que
não temos dúvida de que a humanidade é capaz de grandes demonstrações de
grandeza, de empatia, de solidariedade, de bondade e sensibilidade (muitos são
os exemplos que não nos permitem esquecer que podemos ser seres magnânimos e
superiores – e superior aqui não quer dizer estar além de outros seres vivos;
mas, sim, superior com relação a nós mesmos, com relação ao que nos tornamos).
Mas a
questão é: porque, sendo dotados de todas estas potencialidades, vivemos
mergulhados em guerras, ódios, crueldades? A resposta é simples, embora nem por
isso a compreensão desta nossa condição seja fácil. Nós fizemos um corte profundo
com a vida; nós nos enclausuramos, nos tornamos seres solipsistas, nós criamos
um mundo-próprio, que se põe em guerra contra a natureza, o que, no fim das
contas, é uma guerra contra nós mesmos, uma guerra contra a natureza que nos
habita, contra a vida que é a mesma em todos nós, do menor ao maior dos seres.
Apesar de
todas as nossas virtuais possibilidades, que seriam, de fato, inúmeras, as
sociedades humanas fundaram seus alicerces em valores contrários à vida, e é
por isso que, quanto mais se clama pela vida, quanto mais a buscamos
desenfreadamente em diversões e alegrias ilusórias, mais nos afastamos dela,
porque, já na origem do homem, do homem que vive em cultura, ou seja, já na
origem de nossa organização como homem, a vida em nós começou a ser esmagada em
nome da nossa proteção e segurança. Tornamo-nos reféns de nosso próprio medo da
vida. É assim que toda a vida se tornou uma ameaça para nós.
Nós
perdemos, como já dissemos outras vezes (ao citar Nietzsche) nossa saudável
razão natural; uma razão que nos ensinava os limites de nossa espécie, que nos
dotava de freios e de uma lógica muito mais real, porque mais concreta e vital,
do que nossas abstratas ideias megalômanas. Mas disso já falamos. O que não
falamos, com muita clareza, é que os fundamentos da crueldade são sociais. Não
existem seres perversos em si, que nasçam perversos. Também não existem seres
que nasçam bons, no sentido religioso do termo. Mas é certo que trazemos em nós
virtualidades que podem e devem ser trabalhadas para que possamos criar um
campo social realmente satisfatório para todos os homens e para os outros seres
vivos igualmente (que também têm o direito de viver em paz e livres, mesmo
porque a escravidão não é natural e muito menos justificável por qualquer
argumento racional e isso quer dizer que, no fundo, é na base de nossa
constituição como seres sociais que se esconde a nossa própria crueldade; é
porque as sociedades têm feito dos homens meios para que alguns poucos triunfem
sobre a maioria; meios para institucionalizar a exploração; meios para que
alguns usufruam de outros impiedosamente, que, por fim, são gerados os
autômatos sociais, nós mesmos – pelo menos enquanto não tomamos consciência
desta cegueira e não tomamos nas mãos nossas próprias vidas e a reinventamos. E
reinventar a própria vida não significa fazer um corte com o social, não
significa viver à parte do mundo.
Significa
recriar novas bases para si mesmo, bases mais verdadeiramente humanas e vitais,
algo que sirva de exemplo para o próprio campo social. Algo que ponha em
movimento exatamente o que está estagnado em nós: a própria vida. O indivíduo é
mais forte do que se pensa. É nele que começa a mudança.
É o exemplo
de uns poucos que fazem eco e transformam o social. Não foi assim com a
abolição da escravidão humana e com tantos outros movimentos? Quando se age e
não apenas se fala, se imprime na carne o ideal. A justiça, por exemplo, deixa
de ser um ideal e se torna real quando um homem é capaz de ser justo.
São os
exemplos que ensinam de verdade e não as palavras.
Todo dia,
afinal, escutamos barbaridades: crianças de três anos que são jogadas em rios,
famílias assassinadas, animais maltratados e barbarizados; quantas histórias de
crueldades ouvimos e nos mantemos alheios, como se fosse normal. Mas o que nos
faz acreditar que é normal esta psicopatia social, esta monstruosidade em um
ser que é capaz de amar, que é capaz de salvar vidas, que é capaz de se
solidarizar com o sofrimento do outro? É fácil sermos maniqueístas e apenas
separar o joio do trigo.
É fácil
dizer que existem os maus e os bons. Mas isto também não é verdade. Ou, pelo
menos, esconde o principal. Esconde que os homens têm sido triturados desde o
início, que as vidas são destruídas já no berço, por nossos valores insensatos,
por uma crueldade e frieza que foram inscritas com ferro e fogo no homem, mas
que, ainda assim, estão longe de ser algo natural ou inexorável. Precisamos
enfrentar o fato de que o social tem criado monstros, homens sem alma, sem
sentimentos, para servirem a ideais sujos de ganância, exploração e servidão.
A produção
de homens dóceis, como dizia Foucault, que não reagem, que vivem mecanicamente,
repetindo o que aprenderam como máquinas sem pensamento, é a finalidade do
tirano, como já dizia Espinosa. A produção de homens fracos, sem vontade
própria, que obedecem cegamente e que, portanto, matam também cegamente: assim
tem caminhado a humanidade… Mas quando deixaremos de ser autômatos e nos
tornaremos seres humanos de verdade?
PS: Ofereço
este texto em memória de todas as vidas perdidas e destroçadas pela crueldade,
e também em memória da minha gatinha, que se despediu da vida com a mesma
coragem com que entrou nela.
Regina
Schöpke é filósofa, medievalista, tradutora e autora dos livros.
Fonte: http://www.anda.jor.br/
segunda-feira, 25 de novembro de 2013
Um espectro que ronda o Brasil? – por Luciana Ballestrin
Um espectro
que ronda o Brasil?
Neste ano
ocorreram pelo menos três episódios públicos envolvendo denúncias de
"doutrinação marxista" no ambiente universitário brasileiro.
Neste ano
ocorreram pelo menos três episódios públicos envolvendo denúncias de
“doutrinação marxista” no ambiente universitário brasileiro: a recusa de um
estudante em realizar um trabalho sobre Karl Marx, a pedido de seu professor
(SC); a ação popular movida por um advogado contra um projeto de extensão de
difusão do marxismo (MG), que acarretou em sua suspensão pela Justiça Federal
do Maranhão e a acusação de um filósofo sobre a contaminação do marxismo nas
Ciências Humanas e Sociais (SP). As três notícias tiveram cobertura em veículos
midiáticos, cujas posições ideológicas são historicamente conhecidas do
público.
O espraiamento nacional de uma suposição sobre o avanço do comunismo e do marxismo no Brasil, às vésperas do cinquentenário do Golpe civil-militar, convida a todos os cidadãos e cidadãs para a seguinte reflexão: o que estes discursos e ideias representam no Brasil após 25 anos da promulgação da Constituição de 1988? Gostaríamos de sugerir que isso reflete uma paranoia, compartilhada por pessoas e grupos capazes de formar guetos de opinião e que a despeito do alcance restrito, ganham destaque desproporcional na mídia hegemônica.
O conceito de paranoia, em termos psiquiátricos, possui sua própria história, como todos os conceitos mais ou menos compartilhados pelo campo científico. A despeito das controvérsias particulares inerentes a este campo - no caso, o da psicanálise - é possível sustentar com baixo custo de prejuízo que a ideia de paranoia envolve basicamente um delírio persecutório baseado em uma desconfiança descolada da realidade, razão ou empiria.
O espraiamento nacional de uma suposição sobre o avanço do comunismo e do marxismo no Brasil, às vésperas do cinquentenário do Golpe civil-militar, convida a todos os cidadãos e cidadãs para a seguinte reflexão: o que estes discursos e ideias representam no Brasil após 25 anos da promulgação da Constituição de 1988? Gostaríamos de sugerir que isso reflete uma paranoia, compartilhada por pessoas e grupos capazes de formar guetos de opinião e que a despeito do alcance restrito, ganham destaque desproporcional na mídia hegemônica.
O conceito de paranoia, em termos psiquiátricos, possui sua própria história, como todos os conceitos mais ou menos compartilhados pelo campo científico. A despeito das controvérsias particulares inerentes a este campo - no caso, o da psicanálise - é possível sustentar com baixo custo de prejuízo que a ideia de paranoia envolve basicamente um delírio persecutório baseado em uma desconfiança descolada da realidade, razão ou empiria.
Defensivas ou preventivas, as consequências políticas da proliferação do discurso paranoico anticomunista e antimarxista ferem, paradoxalmente, dois princípios liberais básicos: liberdade de expressão e tolerância. Ao mesmo tempo, reedita a paranoia clássica alimentada pela Guerra Fria, cuja conjuntura internacional fora cúmplice do segundo período ditatorial brasileiro.
Foi justamente neste contexto que ocorreu a institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, amplamente apoiada pela estadunidense e liberal Fundação Ford.
Neste período, várias brasileiras e brasileiros pagaram com a dor, o exílio e a vida, o preço pela defesa de suas ideias comunistas e marxistas, bem como quaisquer outros que contrariassem à lógica da Ditatura Civil-Militar. Hoje, qual é o preço a pagar por essa retórica da intransigência? Como responder a uma paranoia revestida de intelectualidade, a um despautério anacrônico e a um disparate sem fundamento?
Seria um tanto contraproducente esboçar nessas linhas argumentos e razões que tentem comprovar que o Brasil não é governado por comunistas e que a universidade brasileira não está intoxicada pelo marxismo. Inútil, de igual forma, pensar na originalidade histórica dos escritos marxianos e na importância das várias correntes do marxismo - do vulgar e ortodoxo para o crítico e arejado - para os campos das Ciências Sociais Aplicadas ou não. Da mesma maneira estéril, argumentar que o eurocentrismo, o colonialismo e o progresso moderno não são completamente afastados do marxismo e que justamente por isso, ele encontra resistência nos movimentos decoloniais latino-americanos.
Produtivo, talvez, seja observar o nascimento de um novo tipo de direita no Brasil.
Mesmo os velhos e os contemporâneos clássicos do liberalismo político moderado são capazes de aceitar a tolerância, a diferença, a liberdade de expressão, a existência do Estado e o respeito ao outro. Não estamos falando, portanto, da adversária histórica direita liberal. Ela é nova justamente porque ultrapassa a própria moral e a própria ética do liberalismo e acontece neste exato momento histórico. Ela é nova justamente porque também se apropria dos discursos da esquerda e da democracia para combater a própria esquerda e a própria democracia.
Se, cada vez mais, a esquerda não tem se restringindo à alternativa marxista, criando um repertório de resistência, emancipação e libertação próprias, a direita não tem se restringido à alternativa liberal, criando um repertório de ignorância, esquecimento e ódio próprios. Certamente, o espectro que ronda a primeira já não é mais o do comunismo. Mas, o espectro que ronda a segunda ainda desagua no seu totalitarismo oposto, o fascismo. Ou será que estamos, simplesmente, paranoicos?
(*) Professora Adjunta de Ciência Política, Coordenadora do Curso de Relações Internacionais - Centro de Integração do Mercosul Programa de Pós-Graduação em Ciência Política - Instituto de Filosofia, Sociologia e Política, da Universidade Federal de Pelotas.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/
Ramonet: “Inevitável Mundo Novo”?
Ramonet: “Inevitável Mundo Novo”?
Cinquenta
anos após morte de Aldous Huxley, sua obra alerta: avanço científico pode ser,
em sociedades desiguais e mercantilizadas, caminho para barbárie
Seria
pertinente reler, hoje, Admirável Mundo Novo? Seria pertinente retomar um
livro escrito há aproximadamente 70 anos, numa época tão distante que nem
sequer a televisão havia sido inventada? Seria essa obra algo além de uma
curiosidade sociológica, um best seller comum e efêmero que, no ano
de sua publicação, 1932, vendeu mais de um milhão de exemplares?
Essas
questões parecem ainda mais pertinentes porque o gênero da obra — a fábula
premonitória, a utopia tecno-científica, a ficção científica social — possui um
alto grau de obsolescência. Nada envelhece tão rápido quanto o futuro. Ainda
mais na literatura.
E,
entretanto, quem superar essas reticências e novamente mergulhar nas páginas
do Admirável Mundo Novo certamente ficará chocado com sua atualidade
surpreendente. E irá constatar que o presente alcançou o passado, pelo menos
por uma vez.
O romance,
que se tornou um grande clássico do século 20, narra uma história que se passa
num futuro distante, por volta de 2500, ou mais precisamente, “por volta do ano
600 da era fordista”. Satírica homenagem a Henry Ford (1863-1947), pioneiro
norte-americano da indústria automobilística (e ainda hoje uma das famosas
marcas do ramo), inventor de um método de organização do trabalho para a
produção em série e da padronização das peças.
Essa
técnica, pensada por Ford na década de 20, transformou, por assim dizer, os
trabalhadores em autômatos, em robôs repetindo o mesmo gesto o dia inteiro.
Apesar de seu caráter desumano, foi uma verdadeira revolução no universo
industrial e rapidamente adotada, da Alemanha à União Soviética, por todas as
grandes indústrias mecânicas do mundo. No mundo sindical e operário, e também
entre os intelectuais, o fordismo suscitou críticas violentas, que artistas e
criadores da época muitas vezes abordaram com indiscutível talento cáustico.
Pensemos, por exemplo, em Metropolis, de Fritz Lang (1926), ou Tempos
modernos (1935), de Charles Chaplin.
O autor
de Admirável Mundo Novo, Aldous Leonard Huxley (1894-1963), era um homem
afeiçoado à cultura, particularmente à cultura científica. O tipo do
intelectual onisciente, sedutor e com opinião sobre quase tudo.
Nascido
numa família inglesa à qual pertenceram numerosas personalidades célebres,
Aldous Huxley era parente, por parte de mãe, do escritor Matthew Arnold
(1822-1888), autor dramático, crítico, humanista, viajante e professor de
poesia na Universidade de Oxford. Seu avô, Thomas Henry Huxley (1825-1895), era
um conhecido naturalista, defensor das teorias evolucionistas de Darwin e autor
de uma obra famosa sobre a origem da espécie humana (O lugar do homem na
natureza, 1863). Finalmente, seu irmão Julian Huxley (1887-1975) era biólogo e
filósofo, e também partidário das teorias da evolução. Especialista em
genética, criticava, com muita pertinência, as teorias fantasistas do
geneticista soviético Lyssenko. No período de 1946 a 1948, foi o primeiro
diretor geral da Unesco.
Como não
poderia deixar de ser, Aldous Huxley estudou em Eton e Oxford, os grandes
“centros de condicionamento” das elites britânicas. Também ele havia pensado em
estudar ciência, mas foi impedido devido a uma grave doença na visão. Aos vinte
anos, quase cego, só conseguia ler com o auxílio de uma grossa lupa e aprendeu
braille, como todos os cegos. Apesar da dolorosa deficiência que o acompanhou
por toda a vida, Huxley começou a publicar seus primeiros livros de poemas aos
vinte e cinco anos e, depois dos horrores da primeira guerra mundial
(1914-1918), passou a manifestar uma visão do mundo irônica e desencantada.
Ao retornar
de uma viagem à India, travou grande amizade com o escritor D.H. Lawrence
(autor do conhecido romance O Amante de Lady Chatterley, 1928), que, já
tuberculoso e às vésperas de sua morte — em 1930, em Veneza — iria exercer
sobre si uma importante e duradoura influência.
Em seus
primeiros romances (Crome Yellow, 1921; Antic Hay, 1923;Those Barrens
Leaves, 1925; Point Counter Point, 1928), Aldous Huxley apresenta um
universo no qual a cultura e o humanismo são ameaçados por aqueles que mais os
deveriam proteger. Escritos com uma sinceridade cruel, esses livros são sátiras
de uma inteligência aguçada e exprimem as fraquezas e desilusões da “geração
perdida”. Ele mostra um humor frio, cortante, paradoxal, à moda de Jonathan
Swift, ao evocar, com ceticismo, a sociedade da década de 20.
Nesse
sentido, Admirável Mundo Novo, que é o livro mais representativo desse
período, seria mais um conto filosófico à maneira de Voltaire, no qual o
talento do escritor, ainda sendo grande, é ultrapassado pelo temperamento do
moralista.
Essa visão
pessimista do futuro e crítica feroz do culto positivista da ciência foi
escrita no momento em que as conseqüências sociais da grande crise de 1929
castigavam as sociedades ocidentais e quando a credibilidade dos regimes
democráticos capitalistas parecia vacilar. Antes da subida ao poder de Adolf
Hitler, em 1933, o Admirável Mundo Novo denuncia a perspectiva
aterrorizante de uma sociedade totalitária fascinada pelo progresso científico
e convencida de poder oferecer uma felicidade obrigatória a seus cidadãos.
Apresenta uma visão alucinante de uma humanidade desumanizada pelo
acondicionamento à Pavlov [1]
e pelo prazer ao alcance da pílula (o “soma”). Num mundo horrivelmente
perfeito, a sociedade dissocia a sexualidade da procriação — por motivos
eugênicos e produtivistas.
Em Admirável
Mundo Novo, a americanização do planeta está completa: tudo padronizado e
fordizado, tanto a produção de seres humanos, resultantes de manipulações
genético-químicas, quanto a identidade das pessoas, produzida por hipnose
auditiva, durante o sono — a hipnopedia, qualificada por um personagem do
livro como a “maior força socializadora e moralizadora de todos os tempos”.
Os seres
humanos são, portanto, “produzidos”, no sentido industrial do termo, em
indústrias especializadas — os “centros de incubação e acondicionamento” —
segundo modelos variados, de acordo com tarefas bem especializadas atribuídas a
cada indivíduo e indispensáveis numa sociedade obcecada pela estabilidade.
No momento
de sua fabricação num frasco de vidro, graças ao “método Bokanovsky” (que
permite produzir até noventa e seis seres humanos quando, no passado, só era
possível obter um único), cada óvulo — e depois cada embrião — recebe doses
mais ou menos importantes de estímulos físicos e ingredientes químicos. Essas
doses irão condicionar, de forma definitiva, a capacidade intelectual, e
determinarão a que categoria e casta pertencerão, em ordem decrescente, esses
seres humanos: Alfa, Beta, Delta, Gama, Ipsilon… segundo o grau de complexidade
da atividade profissional a que estarão destinados.
Além do
mais, cada ser humano é educado, desde nascença, nesses “Centros de
acondicionamento do Estado” em função de valores específicos do seu grupo,
recorrendo-se sistematicamente à hipnopedia para manipular seu espírito, para
criar nele “reflexos condicionados definitivos” e fazer com que aceite seu
destino. “Cem repetições três noites por semana, durante quatro anos, declara
um especialista em hipnopedia. Sessenta e duas mil repetições criam a verdade.”
Dessa forma
Aldous Huxley ilustrava, no livro, os riscos contidos em teses formuladas desde
1924 por John Watson, o pai do “behaviorismo”, “ciência da observação e
controle do comportamento” Watson afirmava, friamente, que poderia pegar na
rua, ao acaso, uma criança saudável, e fazer dela, conforme sua escolha, um
médico, um advogado, um artista, um mendigo ou um ladrão, não importando para
isso seu talento, suas preferências, suas tendências, suas capacidades, seus
gostos ou a origem de seus antepassados.
Em Admirável
Mundo Novo, que é fundamentalmente um manifesto humanista, é possível perceber,
e com razão, uma crítica corrosiva à sociedade stalinista, da utopia soviética
construída com mão de aço. Mas há também uma sátira clara à nova sociedade
mecanizada, padronizada, automatizada que se instalava nos Estados Unidos em
nome da modernidade tecnicista.
Huxley,
excessivamente inteligente e admirador da ciência, exprime, nesse romance, no
entanto, um profundo ceticismo em relação à idéia do progresso, uma
desconfiança em relação à razão. Diante da invasão do materialismo, deixa uma
das mais profundas peças de acusação às ameaças do cientificismo, da
mecanização e do desprezo pela dignidade individual. No fundo, avalia com um desespero
lúcido, a técnica que assegurará aos seres humanos um conforto exterior total,
um aperfeiçoamento notável. Qualquer desejo, na medida em que puder ser
manifestado e sentido, será satisfeito. Porém os homens terão perdido sua razão
de ser. Irão tornar-se, eles mesmos, máquinas. Não será mais possível falar em
condição humana, no sentido próprio.
O título
original — Brave New World — é tomado emprestado de uma das últimas peças de
William Shakespeare, The Tempest (1611). Miranda vê os príncipes de Nápoles
desembarcarem de um navio naufragado e exclama: “Esplêndida humanidade,
maravilhoso mundo novo, quem pode nutrir seres tão perfeitos!”
No espírito
de Huxley, esse título é uma antífrase, pois o mundo que descreve nada tem de
maravilhoso. É uma sociedade de castas, imutável, perene, onde tudo é
programado e não há mais lugar para o acaso. Faz-se tábula rasa do passado,
como recomenda A Internacional, o que, de fato, a cultura de massa
realiza. Os monumentos clássicos de todas as civilizações foram derrubados, a
literatura foi queimada, os museus destruídos, a história apagada.
Excesso de
pessimismo ou simples lucidez? Sabemos que Huxley demonstrou, nesse livro, um
senso excepcional de antecipação. A história recente demonstrou que suas
profecias mais sombrias estavam em vias de se realizar, assim como, em matéria
de manipulação, ele soube prever o surgimento de novas ameaças.
Pessimista
e sombrio, o futuro visto por Aldous Huxley nos serve de advertência e nos
incentiva, numa época de manipulações genéticas, de clonagem e da revolução do
ser vivo, a acompanhar de perto os atuais progressos científicos e seus
potenciais efeitos destrutivos.Admirável Mundo Novo ajuda a compreender o
alcance dos riscos e os perigos com os quais nos deparamos, quando, por todos
os lados, novamente, os “avanços científicos e técnicos” nos confrontam com
desafios que põem em perigo o futuro de nosso planeta. E o futuro da espécie
humana.
Tradução: Teresa
Van Acker
Fonte: http://outraspalavras.net/
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