terça-feira, 19 de novembro de 2013

Notas de um ex-libertário - Por Antônio Nestor Canelas


Notas de um ex-libertário

O meio libertário simplesmente “esquece” que há ainda proletários a unir-se no mundo e locais de produção a ser tomados. Por Antônio Nestor Canelas

“As abelhas operárias podem partir
até os zangões podem ir embora.
a rainha é sua escrava”

haikai de Clube da luta

Esta espécie de relato-crônica abaixo pode ser lida dentro do mesmo espectro político em que se encontram os textos Emancipação ao contrário: relatos de dois ex-trotskistas, que é o da ruptura. 

Entretanto, lá naquela outra margem, eles estavam a se afogar pela força da correnteza em que se encontravam; deste lado, fica o alerta, estamos a nos afundar diante da própria calmaria das nossas águas.

A mescla da primeira com a terceira pessoa no texto faz parte do próprio processo de ruptura (com a autocondescendência), diante da então cumplicidade daquele que escreve com aquilo que descreve.

* * *
Através de um complexo de Midas às avessas, o “meio libertário” sofre da mesma tragédia. A diferença é que Midas fora atendido, já o meio libertário acredita que fora atendido e a cena é como se Midas fosse ao mercado oferecendo cobre acreditando ter ouro em mãos. O ativista libertário diz “eu sou revolucionário” e, consequentemente, tudo que eu toco é revolucionário. Basta que eu aumente meu número de atividades – meu ativismo – para que o processo revolucionário esteja cada vez mais perto.

Assim, atividades triviais e cotidianas – geralmente pré-capitalistas – como plantar, andar de bicicleta e confeccionar itens de uso pessoal tornam-se, magicamente, revolucionárias. No meio libertário é possível também jogar futebol revolucionário, ter banda revolucionária, ter relação amorosa revolucionária, etc.

A possibilidade de ser anarco/anarca qualquer coisa é incrível, numa ausência de medida que contempla um conjunto aberto que tende ao infinito. É fascinante como, num passe de mágica, sustentar uma das mais difíceis posições políticas da história da luta de classes, aquela que já enfrentou na Rússia máquinas de guerra como o Exército Vermelho e o Exército Branco (ao mesmo tempo), fascistas e liberais na Espanha, passou a ser possível através de fazer qualquer coisa e colocar o prefixo anarco/anarca antes.

Ao invés de buscar a construção de suas próprias formas autônomas – e sólidas – de organização, a solução que o meio libertário encontrou para o impasse histórico que a esquerda autonomista se encontra diante da esquerda bolchevique é o exercício de uma série de atividades lúdicas, em oposição radical à “burocracia e autoritarismo” desta. (É a “luta de classes” idílica)

O meio libertário ou assumiu que a luta de classes acabou, e então “suas” derrotas para a esquerda bolchevique não são fruto das próprias concepções de ambos, mas de alguns momentos históricos encerrados, ou assumiu que estas concepções estão aí novamente, e então reconhece que elas irão se repetir, mas desta vez, quando a repressão bater novamente, propõe-se a diáspora das bicicletas (escrito Frágil nas costas) ou viver em comunidades da miséria como a Colônia Cecília (opção rural) ou ainda viver em alguma okupA (opção urbana), mais conhecidas como o albergue dos anarco-turistas.

No campo da fé, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) é a religião oficial do movimento. A palavra do papa Marcos traz alívio e conforto para o nosso ativismo desenfreado. Mas esta fé contempla a conhecida solução milagrosa de sobrevivência da causa com fiéis não-praticantes, já que está evidente que a disciplina zapatista e a questão da tomada dos meios de produção está fora do horizonte de debate no meio libertário. [*] Já o caso histórico do Exército Negro (Guerrilha Makhnovtchina) é um belo exemplo – e somente – para acusar o autoritarismo dos vermelhos, mas aplicar coletivamente uma página do que Makhno disse, nem pensar.

Mas como todo não-praticante mantemos flertes com intensidades diversas com outras religiões como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que apesar de sofrer algumas restrições por causa do “marxismo” da direção do movimento, tudo se pacifica regado ao bom e velho saudosismo ocidental de algum Paraíso Perdido, (o campo… a natureza…), aquela velha cena tradicional e reacionária do amigo/familiar que vai visitar seus próximos no campo e acha tudo lá belo e harmônico, enquanto todos levantam antes do sol para trabalhar.

Agora, como os vegetarianos radicais (Vegans, Freegans, Frente de Libertação Animal) do meio libertário articulam seu sentimento de anti-industrialização – numa operação complexa que une primitivismo com universo sem carne – com sua solidariedade ao MST e ao EZLN é para mim ainda um mistério. Talvez sejam eles voluntários para ocupar os lugares dos bois na canga de arar a terra. Quanto aos trabalhadores de frigoríficos – que sofrem LER (não só os funcionários públicos a têm), quando não têm dedos/mãos decepados – azar é o deles, ninguém mandou ir trabalhar com carne.

* * *
Diagnosticar o ser autoritário, principal ou única categoria de investigação do meio libertário, é seu motor político-existencial. Aliás, acusar a esquerda tradicional de autoritária está geralmente a serviço da justificativa permanente de toda sorte de liberalismos e individualismos. Os defeitos da esquerda tradicional transformam-se automaticamente em virtudes do meio libertário. (A bem da verdade, Makhno, quando não Bakunin e Durruti inclusive, são considerados degenerados do meio libertário, pois autoritários iguais à dita esquerda tradicional). Ou seja, todo revolucionário autêntico está fadado a ser “autoritário” para o meio libertário.

O que está absolutamente fora do horizonte do meio libertário é o fator proletário em todas estas pautas em que ele transita. Está recalcado do seu pensamento (o anti-intelectualismo é operante) o fato de que andar de bicicleta não faz cócegas na Ford, GM, Fiat, etc. (muito menos resolve a questão da mobilidade urbana para as massas), que fazer hortas urbanas nem belisca a BRFoods, Kraft e Bünge, e que produzir artesanalmente adereços ou utensílios quaisquer não passam perto da Hering, Zara, Malwee, etc. e que morar em oKupAs não combate as grandes construtoras e imobiliárias, etc.

E então, indignar-se dentro do meio libertário diante do Comando Revolucionário dos Anarquistas Unidos (CRAU) na televisão é hipocrisia ou falta de autocrítica séria (aquela com desdobramentos políticos). Todavia, infelizmente, a concessão ao ecologicamente correto e a cumplicidade com a sinistra Revolução da Colher não é exclusiva aos “anarquistas”.

Mais tragicamente, assim como os libertadores de animais, o meio libertário e sua principal ferramenta de luta, o boicote, simplesmente “esquecem” que há ainda proletários a unir-se no mundo e locais de produção a ser tomados.

Nota
[*] Salvo o texto de Leo Vicinius aqui publicado.
Fonte: http://passapalavra.info 

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