Notas de um ex-libertário
O meio
libertário simplesmente “esquece” que há ainda proletários a unir-se no mundo e
locais de produção a ser tomados. Por Antônio Nestor Canelas
“As abelhas
operárias podem partir
até os zangões podem ir embora.
a rainha é sua escrava”
até os zangões podem ir embora.
a rainha é sua escrava”
haikai de Clube
da luta
Esta
espécie de relato-crônica abaixo pode ser lida dentro do mesmo espectro
político em que se encontram os textos Emancipação ao
contrário: relatos de dois ex-trotskistas, que é o da ruptura.
Entretanto,
lá naquela outra margem, eles estavam a se afogar pela força da correnteza em
que se encontravam; deste lado, fica o alerta, estamos a nos afundar diante da
própria calmaria das nossas águas.
A mescla da
primeira com a terceira pessoa no texto faz parte do próprio processo de
ruptura (com a autocondescendência), diante da então cumplicidade daquele que escreve
com aquilo que descreve.
* * *
Através de
um complexo de Midas às avessas, o “meio libertário” sofre da mesma tragédia. A
diferença é que Midas fora atendido, já o meio libertário acredita que fora
atendido e a cena é como se Midas fosse ao mercado oferecendo cobre acreditando
ter ouro em mãos. O ativista libertário diz “eu sou revolucionário” e,
consequentemente, tudo que eu toco é revolucionário. Basta que eu aumente meu
número de atividades – meu ativismo – para que o processo revolucionário esteja
cada vez mais perto.
Assim,
atividades triviais e cotidianas – geralmente pré-capitalistas – como plantar,
andar de bicicleta e confeccionar itens de uso pessoal tornam-se, magicamente,
revolucionárias. No meio libertário é possível também jogar futebol
revolucionário, ter banda revolucionária, ter relação amorosa revolucionária,
etc.
A
possibilidade de ser anarco/anarca qualquer coisa é incrível, numa ausência de
medida que contempla um conjunto aberto que tende ao infinito. É fascinante
como, num passe de mágica, sustentar uma das mais difíceis posições políticas
da história da luta de classes, aquela que já enfrentou na Rússia máquinas de
guerra como o Exército Vermelho e o Exército Branco (ao mesmo tempo), fascistas
e liberais na Espanha, passou a ser possível através de fazer qualquer coisa e
colocar o prefixo anarco/anarca antes.
Ao invés de
buscar a construção de suas próprias formas autônomas – e sólidas – de
organização, a solução que o meio libertário encontrou para o impasse histórico
que a esquerda autonomista se encontra diante da esquerda bolchevique é o exercício
de uma série de atividades lúdicas, em oposição radical à “burocracia e
autoritarismo” desta. (É a “luta de classes” idílica)
O meio
libertário ou assumiu que a luta de classes acabou, e então “suas” derrotas
para a esquerda bolchevique não são fruto das próprias concepções de ambos, mas
de alguns momentos históricos encerrados, ou assumiu que estas concepções estão
aí novamente, e então reconhece que elas irão se repetir, mas desta vez, quando
a repressão bater novamente, propõe-se a diáspora das bicicletas (escrito Frágil
nas costas) ou viver em comunidades da miséria como a Colônia Cecília (opção
rural) ou ainda viver em alguma okupA (opção urbana), mais conhecidas como o
albergue dos anarco-turistas.
No campo da
fé, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) é a religião oficial do
movimento. A palavra do papa Marcos traz alívio e conforto para o nosso
ativismo desenfreado. Mas esta fé contempla a conhecida solução milagrosa de
sobrevivência da causa com fiéis não-praticantes, já que está evidente que a
disciplina zapatista e a questão da tomada dos meios de produção está fora do
horizonte de debate no meio libertário. [*] Já o caso histórico do Exército
Negro (Guerrilha Makhnovtchina) é um belo exemplo – e somente – para acusar o
autoritarismo dos vermelhos, mas aplicar coletivamente uma página do que Makhno
disse, nem pensar.
Mas como
todo não-praticante mantemos flertes com intensidades diversas com outras
religiões como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que apesar de
sofrer algumas restrições por causa do “marxismo” da direção do movimento, tudo
se pacifica regado ao bom e velho saudosismo ocidental de algum Paraíso
Perdido, (o campo… a natureza…), aquela velha cena tradicional e reacionária do
amigo/familiar que vai visitar seus próximos no campo e acha tudo lá belo e
harmônico, enquanto todos levantam antes do sol para trabalhar.
Agora, como
os vegetarianos radicais (Vegans, Freegans, Frente de Libertação Animal) do
meio libertário articulam seu sentimento de anti-industrialização – numa
operação complexa que une primitivismo com universo sem carne – com sua
solidariedade ao MST e ao EZLN é para mim ainda um mistério. Talvez sejam eles
voluntários para ocupar os lugares dos bois na canga de arar a terra. Quanto
aos trabalhadores de frigoríficos – que sofrem LER (não só os funcionários
públicos a têm), quando não têm dedos/mãos decepados – azar é o deles, ninguém
mandou ir trabalhar com carne.
* * *
Diagnosticar
o ser autoritário, principal ou única categoria de investigação do meio
libertário, é seu motor político-existencial. Aliás, acusar a esquerda
tradicional de autoritária está geralmente a serviço da justificativa
permanente de toda sorte de liberalismos e individualismos. Os defeitos da
esquerda tradicional transformam-se automaticamente em virtudes do meio
libertário. (A bem da verdade, Makhno, quando não Bakunin e Durruti inclusive,
são considerados degenerados do meio libertário, pois autoritários iguais à
dita esquerda tradicional). Ou seja, todo revolucionário autêntico está fadado
a ser “autoritário” para o meio libertário.
O que está
absolutamente fora do horizonte do meio libertário é o fator proletário em
todas estas pautas em que ele transita. Está recalcado do seu pensamento (o
anti-intelectualismo é operante) o fato de que andar de bicicleta não faz
cócegas na Ford, GM, Fiat, etc. (muito menos resolve a questão da mobilidade
urbana para as massas), que fazer hortas urbanas nem belisca a BRFoods, Kraft e
Bünge, e que produzir artesanalmente adereços ou utensílios quaisquer não
passam perto da Hering, Zara, Malwee, etc. e que morar em oKupAs não combate as
grandes construtoras e imobiliárias, etc.
E então,
indignar-se dentro do meio libertário diante do Comando Revolucionário dos
Anarquistas Unidos (CRAU) na televisão é hipocrisia ou falta de autocrítica séria
(aquela com desdobramentos políticos). Todavia, infelizmente, a concessão ao
ecologicamente correto e a cumplicidade com a sinistra Revolução da Colher não
é exclusiva aos “anarquistas”.
Mais
tragicamente, assim como os libertadores de animais, o meio libertário e sua
principal ferramenta de luta, o boicote, simplesmente “esquecem” que há ainda
proletários a unir-se no mundo e locais de produção a ser tomados.
Nota
[*] Salvo o
texto de Leo Vicinius aqui publicado.
Fonte: http://passapalavra.info
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