quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Situacionismo, forma atual de resistência? Por Arlindenor Pedro



Situacionismo, forma atual de resistência?
          Guy Debord, Michèle Bernstein e Asger Jorn, três situacionistas

Criado por marxistas anti-autoritários e artistas de vanguarda, movimento propunha zanzar pelas cidades, para imaginá-las sob lógicas não-capitalistas 

Os situacionistas europeus de meados do século XX têm um lugar destacado na história devido à forma singular que tinham de encarar a vida e vivê-la.

Recém-saídos da guerra, buscaram contrapor suas idéias libertárias às propostas de reconstrução do mundo europeu originárias da burguesia liberal e turbinadas pelo Plano Marshall. Estas apresentam uma forma de urbanismo mais de acordo com a sociedade moderna de consumo. Neste momento, as cidades se modificam, alterando inclusive a relação do cidadão com o espaço urbano.
“Defendemos o Urbanismo Unitário como negação do urbanismo que não constrói nada ‘sobre o terreno’ e sim ‘sobre o papel’. Buscamos um urbanismo de novas espacialidades que permitam modos de vida em consonância com processos de subjetivação apropriados, que integrem a cidade em uma rede permanente de interações com as devidas ressonâncias nas construções intersubjetivas inerentes à pluralidade da vida comum” – assim se colocavam os situacionistas, contrapondo-se, inclusive, às propostas modernistas de Le Corbusier, que naquela época empolgava segmentos importantes da esquerda e dos comunistas.

Enquanto a arquitetura modernista organizava o espaço, impedindo a revolução, os situacionistas viam o espaço urbano, em seu aparente caos, como o campo profícuo para o desenvolvimento de uma arquitetura capaz de incentivar relações pessoais que impelissem os homens para contestação e a revolta, tirando-os da passividade e alienação. Os situacionistas chegaram então a uma convicção exatamente oposta àquela dos arquitetos modernos. Enquanto estes acreditavam, em um primeiro momento, que a arquitetura e o urbanismo poderiam mudar a sociedade, os situacionistas estavam convictos de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo.
Armados com os conceitos da Psicogeografia – concebida como “ciência” destinada a analisar e decifrar as interações entre humanos e contextos ambientais –, os situacionistas desenvolveram práticas em que buscavam avaliar os efeitos do meio ambiente, ordenado conscientemente ou não, sobre o comportamento afetivo e os sistemas perceptivo e cognitivo dos indivíduos. Trata-se de um procedimento estratégico utilizado pela Internacional Situacionista e tornado público nos doze números da Revista da IS, através de magistrais artigos de seus integrantes — destacando-se aí Guy Debord e Raoul Vaneigem.

Uma das ferramentas principais para a construção dessa nova forma de olhar os grandes espaços urbanos foi a prática da deriva (teoria da deriva), utilizada na formulação dos conceitos libertários sobre urbanismo, nas suas mais variadas formas, tendo em Debord um dos mais entusiastas praticantes e defensores.

“As grandes cidades são favoráveis à distração que chamamos de deriva. A deriva é uma técnica do andar sem rumo. Ela se mistura à influência do cenário. Todas as casas são belas. A arquitetura deve tornar-se apaixonante. Nós não saberíamos considerar tipos de construção menores. O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível pensar que as reivindicações revolucionárias de uma época correspondem à ideia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso inventar novos jogos”. Assim os situacionistas definiam a “deriva” em sua Revista IS.

“Pode-se derivar sozinho, mas tudo indica que a repartição numérica mais frutífera consiste em muitos pequenos grupos de duas ou três pessoas chegando a uma mesma tomada de consciência, o recorte das impressões desses diferentes grupos devendo permitir conclusões objetivas. É desejável que a composição desses grupos mude de uma deriva a outra. Acima de quatro ou cinco participantes, o caráter próprio da deriva decresce rapidamente, e em todo caso é impossível superar a dezena sem que a deriva se fragmente em muitas derivas dirigidas simultaneamente. A prática deste último movimento é, aliás, de um grande interesse, mas as dificuldades que ele desencadeia não permitiram até o presente organizá-lo com amplitude desejável.

“A duração média de uma deriva é um dia, considerado como o intervalo de tempo compreendido entre dois períodos de sol. Os pontos de partida e chegada, no tempo, em relação ao dia solar, são indiferentes, mas é preciso notar, entretanto, que as últimas horas da noite são geralmente impróprias para a deriva.

“Esta duração média da deriva não tem senão valor estatístico. Logo ela se apresenta diferente de sua pureza, os interessados evitando dificilmente, no começo ou no fim desse dia, distrair-se por uma ou duas horas para empregá-las em ocupações banais; no fim do dia a fadiga contribui muito para esse abandono. Mas, sobretudo, a deriva se desenvolve com frequência em algumas horas deliberadamente fixadas, ou mesmo fortuitamente durante muitos breves instantes, ou, ao contrário, durante muitos dias sem interrupção. Apesar das paradas impostas pela necessidade de dormir, certas derivas com intensidade suficiente são prolongadas por três a quatro dias, até mesmo mais que isso. É verdade que, no caso de sucessão de derivas durante longo período, é quase impossível determinar com alguma precisão o momento em que o estado de espírito próprio de uma deriva dá lugar ao de outra.

“A influência das variações do clima sobre a deriva, embora real, não é determinante senão no caso de chuvas prolongadas, que a impedem quase absolutamente. Mas trovoadas ou outras espécies de precipitação são, ao contrário, propícias…” (in Internatonale Situationniste, pp.51-55).

Eu acentuaria, então, que devemos ter em conta que o acaso é um elemento determinante no processo da deriva. Portanto, o planejamento para este tipo de estudo não deve ultrapassar a escolha do ponto de partida. Nao se trata aí de um passeio turístico e nem de se querer chegar a um local definido. O ato de se perder no espaço e no tempo tem importante reflexo no conteúdo do que se colhe: com sapatos confortáveis, água, sanduíches, máquinas fotográficas, papel para anotações, abrigo para o sol etc, devem aqueles que se lançam na deriva deixar o ambiente envolvê-los e ir caminhando ou parando, muito de acordo com a percepção do espaço e das pessoas que nele transitam, vivem ou apenas fazem comércio.

Após a deriva, deve-se sistematizar a empreitada, através das impressões, das imagens, dos sons e das anotações colhidas.

Por que viramos em determinada rua e não em outra? Que impressões trouxeram a praça onde paramos para conversar? Como variou a temperatura durante as mudanças de local? Que tipos vimos pelos caminhos? Que impressão nos dão as fachadas encontradas?

Aqui no Brasil, com o processo de integração da economia aos grandes mercados globais, nossas metrópoles estão passando por um processo de grandes transformações.

Em apenas algumas décadas, num movimento fantástico, fez-se o transplante de levas inimagináveis de pessoas para as grandes cidades. Em pouco tempo, deixamos de ser um país rural. Hoje quase 90% da população vive nas áreas urbanas, num processo constante e desordenado que transformou essas cidades em fonte de problemas insuperáveis. Impossível uma máquina pública que dê conta das questões apresentadas por essas megacidades: transporte insuficiente, insegurança, precárias condições de deslocamento, sistema de saúde e atendimento médico de má qualidade são alguns dos elementos que as transformaram em verdadeiros barris de pólvora, onde reina a insatisfação em todos os segmentos sociais.

Dentro do conceito de sociedade da mercadoria, as próprias cidades transformaram-se em produtos e, como tais, são vendidas no mercado internacional do turismo como centros de lazer, de sexo, de negócios, de esporte etc, obrigando os seus moradores a uma rápida adaptação à nova finalidade comercial da cidade. O ato de morar, de ocupar um imóvel, passa a estampar uma situação na qual o valor de uso (as condições reais da moradia) submete-se ao valor de troca (o preço de mercado da moradia). Mora-se, ou tem-se um ou mais imóveis em um bairro, de acordo com o valor adquirido no mercado imobiliário.

Impulsionadas por esse mercado, áreas que antes se colocavam como reserva da especulação (e por isso não recebiam, por décadas, investimentos públicos) passaram a viver recentemente mudanças radicais, para atender aos traçados feitos nas pranchetas dos investidores em eventos como Copa de Mundo, Olimpíadas etc. Para isso, populações são deslocadas e instaura-se um momento de grande especulação imobiliária com alta nos preços de compra, aluguéis, serviços etc, que atinge não só os bairros alvos mas a cidade como um todo. Esses espaços passam a ter um aspecto diferenciado do que tinham até então, transformando-se em vitrines do consumo turístico, das quais se afasta tudo aquilo que destoa do que foi imaginado pelos arquitetos de plantão — incluindo-se aí as massas pobres, que devem ser escondidas em outras áreas da cidade.

Projetos como “Porto Maravilha” e “Cidade Olímpica”, no Rio, e outros semelhantes em outras cidades, são implementados a toque de caixa, alterando-se traçados e a forma de viver de importantes segmentos da população. Santuários ecológicos, como o Cocó, em Fortaleza, dão lugar a vias expressas e viadutos para atender à ganância dos investidores, que vorazmente vão ocupando todos os espaços, em nome de um pretenso progresso.

Na década de 50/60, na Europa, a atividade política dos situacionistas, dentre outros, conseguiu impedir a destruição de inúmeros logradouros em cidades importantes como Paris, Amsterdã etc. Suas atitudes, que atingiram o auge nas grandes insurreições de 68 em toda a Europa, foram decisivas na conscientização de parcelas importantes da população de diversos países, as quais exigiram melhores condições de vida nas cidades que habitavam.

Penso que movimentos atuais no Brasil como o Catraca Livre, Ocupar Cocó, Ocupa Câmara e outros, que têm levado milhões de pessoas às ruas, são filhos diretos das manifestações e movimentos de debate e contestação daquela época, em que os situacionistas se destacavam.

Suas ideias são atuais e têm influenciado muitos ativistas desses movimentos, haja vista a intensa republicação de seus artigos e apontamentos, notadamente os que saíram na IS.

A prática da deriva nessas grandes metrópoles pode tornar-se um valioso instrumento de compreensão da vida real, a vida-vivida, que nelas ocorre, ultrapassando-se o irreal que nos é vendido através de peças publicitárias das agências que servem às grandes corporações imobiliárias.

Derivar pelo Bexiga, em São Paulo, pela Rua do Jogo da Bola, na zona portuária do Rio, ou mesmo pelo centro de Recife, Fortaleza, Belo Horizonte e outras cidades certamente será um grande prazer, pois são áreas que estão alterando sua forma centenária de viver e logo entrarão na lógica da sociedade da mercadoria. Os apontamentos e a contextualização da realidade desses logradouros tornam-se imperiosos para o nascimento de uma nova realidade, que virá após o capitalismo. Para isso, basta nos apropriarmos das novas tecnologias da Internet, You Tube etc e registramos nossas experiências.

Fonte: http://outraspalavras.net/

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