Black blocs, o alvo é a Copa.
“Vale a pena perguntar por que esses jovens
chegaram ao ponto de enxergar na violência a única forma de ser escutados”, diz
Esther Solano, professora da Unifesp, que entrevista os adeptos da tática desde
as manifestações de junho
Jovens na
casa dos 20 anos, com emprego e acesso ao ensino superior, embora ambos de
qualidade discutível; submetidos à precariedade dos serviços públicos do Estado
em áreas como saúde, transporte e educação; defensores de uma visão de mundo na
qual atacar símbolos do capitalismo não pode ser considerado um ato violento,
pois a verdadeira violência contra a população é praticada pelo sistema
político e corporativo – dados como esses compõem o perfil dos black blocs de
São Paulo, na visão da pesquisadora Esther Solano Gallego.
“Eles
querem ser escutados, mas por alguém que tenha um olhar um pouco mais imparcial
e se disponha a realmente entendê- los”, diz a professora de Relações Internacionais
na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Esther vai às ruas desde junho
– primeiro como manifestante; depois, com o colega Rafael Alcadipani, professor
da Fundação Getúlio Vargas, passou a conversar com diferentes grupos para
procurar entender suas motivações.
"São
jovens que têm um projeto político, que quando saem para a rua para quebrar um
banco entendem que esse gesto tem um significado” (Marcelo Camargo/ABr)
A pesquisa
acabou centrada na dinâmica entre os policiais, a cargo de Alcadipani, e os
adeptos da tática black bloc. É ao lado deles que a professora fica nas
manifestações. O objetivo do trabalho, de acordo com Esther, não é emitir
julgamentos ou defender qualquer dos lados, mas sim tentar entender um fenômeno
social que cabe aos pesquisadores conhecer.
Uma das
questões que agora ocupam a pesquisadora tem a ver com a criação de uma
força-tarefa, unindo Ministério Público e as polícias Civil e Militar,
anunciada pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo no início de
outubro.O secretário Fernando Grella Vieira defende o indiciamento dos black
blocs por associação criminosa.
Na
entrevista a seguir, a espanhola Esther Solano – que se doutorou em Ciências
Sociais em meio à crise econômica em seu país e veio para o Brasil em 2011, diz
que é difícil saber se as medidas levarão os jovens a radicalizar suas ações ou
a retroceder por medo da prisão. Certo mesmo é que por enquanto os adeptos da
tática permanecem nas ruas, e que seu objetivo é chamar a atenção do mundo –
literalmente – na Copa de 2014, cuja abertura coincidirá com o primeiro
aniversário das grandes manifestações de junho.
Brasil de
Fato – Com quantos jovens que utilizam a tática Black Bloc você já conversou?
Esther
Solano Gallego – Mais ou menos 30. Comecei a falar com eles porque me parece
muito importante entender o que está acontecendo, e a única forma de entender é
sair para a rua e conversar com eles, o que para mim, por paradoxal que pareça,
é muito fácil. Esses jovens não consideram os meios de comunicação de massa
seus interlocutores. Mas, quando eu me apresentei como professora e
pesquisadora, me aceitaram muito bem.
Qual o
perfil que você já identificou neles?
É bem
heterogêneo. Temos que diferenciar: há aqueles que sabem realmente o que
significa a tática black bloc, leem e sabem articular um discurso mais ou menos
politizado, e que são a grande maioria dos que entrevistei. Mas claro que há
alguns que simplesmente aproveitam o momento de caos para cobrir o rosto. Tenho
tentado conversar com eles também, porque acho que estão representando sua
própria forma de violência. Mas são a minoria na minha pesquisa, e essas
conversas não têm dado muitos frutos.
Em relação ao primeiro grupo, são jovens que têm um projeto político, que quando saem para a rua para quebrar um banco entendem que esse gesto tem um significado. Os mais novos têm 17 anos, mas em geral a idade vai de 20 a 24 anos; a grande maioria trabalha, muitos estudam. Há alguns formados, a maioria em universidade particular, mas há também gente de universidades públicas como a USP. A maioria é de classe média baixa. São usuários do transporte público, do SUS, da escola pública, mas a maioria não vem daquela periferia mais pobre e excluída.
Eles fazem
parte do que vários estudiosos têm chamado de um subproletariado que vem
crescendo muito nos últimos anos no Brasil?
A maioria,
sim. São jovens que trabalham há pouco tempo, mas já conhecem bem a
precariedade do Estado. Friso novamente que a maior parte não é daquela
periferia que praticamente não tem acesso às manifestações.
Que tipo de
leitura e formação política têm esses jovens com quem você conversa?
Tem de
tudo. Alguns leram bastante os anarquistas e articulam bem essa linguagem.
Outros não leramtanto, mas têm uma visão política bem articulada. São
basicamente duas coisas: a grande maioria possui uma visão política mesmo –
talvez não a da academia –, e enxerga bem o que quer fazer. Vale a pena
reiterar que a maior parte dos jovens que entrevistei tem um pensamento
definido como base de suas ações, o que não impede que, em momentos de
manifestações maiores, apareçam indivíduos com muito menos articulação ou que
simplesmente se aproveitam do momento.
Há alguma
conexão com a origem dos black blocs na Alemanha do final da década de 1980 e
com os chamados movimentos antiglobalização dos anos de 1990?
A maioria
dos que entrevistei não pensava no que era o black bloc antes das
manifestações. Muitos falam que começaram a pensar nisso depois daquele
protesto do dia 13 de junho (no Centro de São Paulo), quando a Polícia Militar,
como eles dizem, “chegou batendo”. Alguns já tinham lido alguma coisa, mas a
grande maioria se envolveu pela ação e reação do momento.
Como você
analisa a acusação de que eles são fascistas e estão a serviço de outra causa
que não é a intenção original das manifestações?
Acho que aí
existem duas coisas. Primeiro, que a esquerda mais institucionalizada, mais
partidária, talvez se sinta muito afastada do que aconteceu. Minha percepção é
de que há um certo ressentimento com isso, porque ninguém contou com os
partidos de esquerda, com os sindicatos ou com os movimentos tradicionais para
ir à rua. Outro aspecto é que, em todas as conversas que tive com eles, não
percebi nenhuma indicação de que sejam manipulados ou de que respondam a outro
grupo. Creio que a motivação é a indignação própria, e que eles têm um grau de
autonomia suficiente para não ser movidos por outro grupo.
O
anticapitalismo é o discurso mais forte?
Uma jovem
me deu uma ótima explicação: em São Paulo a ação começou com o discurso black
bloc internacional, de anticapitalismo e ataque aos símbolos do capital, mas
depois foi se apropriando do discurso das manifestações brasileiras. Ou seja,
talvez não tanto contra o capital, mas incorporando as bandeiras e as
reivindicações dos protestos: mudanças e melhoria do sistema político de forma
geral. O anarquismo é a inspiração, mas, durante as conversas, aparecem muito
mais a precariedade do Estado brasileiro e a violência institucional do que as
ideias anarquistas como motivações de sua presença nas ruas.
Eles também
se colocam como a linha de frente contra a polícia, não é?
Eles dizem
que nunca convocam as manifestações, e que vão à rua para proteger os
manifestantes. São duas ações: uma que eles chamam de proteção – a linha de
frente –, e outra, de ação direta. Essa é a forte agora: chamar a
atenção, “dar um grito”, utilizando a violência como forma de expressar a
indignação. Vale a pena perguntar por que esses jovens chegaram ao ponto de
enxergar na violência a única forma de ser escutados.
Os black
blocs de São Paulo já podem ser considerados um grupo?
Eles sempre
falam que o black bloc não é um grupo, mas uma tática. No final das contas, não
são muitos os que saem na rua. Acho que no Rio de Janeiro o movimento é maior.
Em São Paulo, não são tantos assim, e acabam sendo as mesmas pessoas que a
polícia já levou para a delegacia, já identificou etc. Há também outros que vão
aparecendo, que simplesmente cobrem o rosto, e aí você perde a noção de quem é
quem. As novas medidas da Segurança Pública em São Paulo podem representar um
ponto de virada. Quase todos os black blocs, digamos, mais frequentes já foram
para a delegacia. Os policiais também muitas vezes são os mesmos. Então já
pedem a documentação, revistam as mochilas etc. Imagino que a polícia saiba
quem é a maior parte deles.
Eles têm
receio de ser presos e processados, agora que o Estado anunciou o endurecimento
da reação?
Sem dúvida.
Os que já têm uma passagem por delegacia receiam ser presos novamente e
considerados reincidentes. Agora podem ser enquadrados até por formação de
quadrilha. Processar por associação criminosa me parece excessivo, embora deva
dizer que não tenho grande conhecimento do Direito em geral e do brasileiro em
particular. Mas a questão é que os delegados passam a ter legitimado
pelo Estado o poder de fazer esse enquadramento. O Estado, no seu papel de
protetor da propriedade pública e privada, está se valendo de seu aparato
policial e jurídico para propor o endurecimento das penas.
Você já
teve algum problema nas manifestações?
Nunca.
Comigo os jovens são muito respeitosos, e a polícia também. Isso também pode
parecer paradoxal em razão das cenas de violência nas manifestações, mas o fato
é que minha experiência destes meses nas ruas é esta, tanto com os policiais
como com os Black blocs. Mas claro que fico com um pouco de medo quando começam
a aparecer pedras e bombas.
O que eles
acham de ser chamados de vândalos ou baderneiros?
Eles são
absolutamente contra essa dicotomia criada entre o “bom manifestante” e o
“ruim”, categorias que a imprensa coloca para tentar defini-los. Eles dizem que
o que fazem não é violência, é performance – é um tipo de espetáculo, em que
querem atingir símbolos para chamar a atenção. O discurso é de que a verdadeira
violência é a de um sistema político que não dá respostas para a população e
que mantém, por exemplo, índices altíssimos de homicídios e de mortes no
trânsito. Para eles, a violência é a do sistema, e o que fazem é chamar a
atenção para essa violência política e corporativa.
Críticos ao
redor do mundo dizem que essa tática sequer arranha o capitalismo.
É.
Inclusive há todas aquelas incoerêcias do tipo quebrar um banco, mas usar
iPhone. Isso é parte do paradoxo humano. Claro que eles sabem que o dono do
banco não está nem aí quando depredam uma agência – mas que conseguem chamar a
atenção sobre as coisas que para eles estão equivocadas, tanto no governo
quanto na ordem econômica, isso conseguem, até porque de fato a
espetacularização dos acontecimentos por parte da imprensa é evidente. Agora, a
partir da constatação de que as ruas estão ficando esvaziadas, já presenciei
diálogos entre eles sobre se a população está entendendo ou não o que eles
tentam fazer.
Você esteve
na manifestação do dia 25 de outubro (quando o coronel da PM Reynaldo Simões
Rossi foi agredido)?
Não, mas
depois conversei com algumas pessoas que foram. O fato é que o Movimento Passe
Livre (MPL) tem muita capacidade convocatória, então conseguiu juntar bastante
gente que utiliza a tática black bloc. Como já disse, é um movimento muito
heterogêneo, e entre eles há quem acredite numa violência mais focada e mais
simbólica, e outros que acreditam numa violência mais pesada; os que são mais
articulados e os menos, como aliás em todo grupo social. Quando você junta
tantas pessoas, num estado de emoções à flor de pele – o componente emocional é
muito importante –, com grandes tensões com a polícia, era claro que ia
acontecer o que aconteceu. À noite é quando a tensão aumenta e todo mundo vai
perdendo a paciência. É sempre o pior momento das manifestações.
Você
conhece os rapazes que foram presos?
Os que eu
conheço não foram presos. Sei que houve prisão de gente do MPL, anarcopunks
etc. Ou seja, foi uma manifestação bem heterogênea. Não dá para falar que só
havia black blocs.
Você acha
que, a partir do episódio do espancamento do coronel, a PM e a Justiça vão
endurecer definitivamente as ações contra os black blocs?
Claramente
as políticas vão endurecer. O governador Alckmin já falou da necessidade de
penas mais rígidas para quem agride policiais. O espancamento do coronel
Reynaldo vai esquentar muito os ânimos. Foi uma agressão filmada, transmitida
em todos os meios de comunicação, e espetacularizada, de um PM de alta patente.
Depois houve a resposta da presidenta Dilma oferecendo ajuda à PM de São Paulo.
É claro que isso vai trazer como consequência uma série de respostas
institucionais, radicalizando o discurso, tanto em nível policial como
jurídico. O problema será entrar numa dinâmica de ação-reação violenta na qual
as posturas dos dois lados endureçam.
O black
bloc veio para ficar?
Pelo menos
por enquanto, sim. Mas, a partir dessas medidas do governo, será que eles vão
se radicalizar? Ou vão retroceder com medo de ser presos? Não sei. De qualquer
maneira, a Copa está aí e o foco deles é fazer um espetáculo nela para chamar a
atenção de todo o mundo – de todo o mundo mesmo! Pode até acontecer de a ação
policial ser muito dura e conseguir esvaziar o movimento. Afinal, eles são
jovens de vinte e poucos anos, e é possível que fiquem com medo de ser presos.
Mas a ideia é estar na Copa.
E logo
depois tem a eleição…
A espiral
da violência vem aumentando. Estou preocupada com o que possa vir a acontecer
no ano que vem.
Foto:
Marcelo Camargo/ABr
Fonte: http://revistaforum.com.br/blog
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