Leon Trotski e “O programa de transição”
Há cento e
trinta e quatro anos, em 7 de novembro de 1879, nascia Liev Davidovitch
Bronstein, conhecido como Trotski, dirigente da Revolução de Outubro, fundador
do Exército Vermelho, adversário intransigente do stalinismo, assassinado por
um agente da GPU.
Trotski
considerava a fundação da Quarta Internacional sua contribuição mais importante
para o movimento operário revolucionário. Por ocasião do Congresso de Fundação
da Quarta Internacional, em 1938 – do qual participara Mario Pedrosa como
delegado do Brasil – é que Trotski redige o texto intitulado “A agonia do
capitalismo e as tarefas da Quarta Internacional” que será conhecido como O programa de transição. Trata-se de um momento trágico
para o movimento operário internacional: processos de Moscou na URSS, com a
exterminação da velha guarda revolucionária de 1917, derrota das Frentes
Populares na França e na Espanha, reforço do fascismo na Itália e na Alemanha e
guerra mundial iminente. Nessa conjuntura, os comunistas anti-stalinistas são a
minoria, e sua nova organização, a Quarta Internacional, está longe de poder
competir com as correntes dominantes da esquerda oficial.
Existem
muitos aspectos comuns entre O programa e o Manifesto
Comunista: ambos buscam unidade entre teoria e prática, entre a análise da
realidade e a perspectiva de sua transformação revolucionária; ambos oferecem
um programa que parte de reivindicações imediatas para oferecer um projeto de
luta contra o capitalismo; ambos possuem como traço mais marcante o
internacionalismo e têm como ponto de referência histórico-mundial a realização
de uma sociedade comunista. Do ponto de vista das deficiências, é necessário
constatar que o documento de 1938, como o de 1848, ignora os problemas
ecológicos e tem uma abordagem muito insuficiente da questão da libertação das
mulheres.
O programa
é uma síntese particularmente bem sucedida das principais ideias políticas de
Trotski: a revolução permanente nos países atrasados, a revolução
antiburocrática na URSS, a unidade operária na luta contra o fascismo e o
imperialismo e a necessidade de uma organização internacional dos
revolucionários marxistas.
Como o
próprio Manifesto de Marx e Engels, O programa de transição
tem limitações que correspondem a um momento histórico específico. A mais
evidente é a que aparece no próprio título do documento: a convicção de que o
capitalismo se encontra em sua “agonia”, que as forças produtivas estancaram,
que a burguesia está totalmente desorientada e que o impasse econômico não tem
saída. Felizmente, Trotski não cai na armadilha do “fatalismo otimista”: apesar
de algumas referências a supostas “leis da história”, ele está perfeitamente
consciente de que o capitalismo não findará de morte natural. O futuro não está
decidido nem determinado pelas “condições objetivas”: se o socialismo não
triunfar, a humanidade conhecerá uma terrível guerra e uma catástrofe que
ameaça a própria civilização humana – palavras proféticas! O marxismo de
Trotski atribui um papel decisivo ao “fator subjetivo”, à consciência e ação do
sujeito histórico: “tudo depende do proletariado”.
Como
acontece muitas vezes com os grandes textos do marxismo, O programa foi vítima
de uma fetichização dogmática. Correntes políticas se dizendo trotskistas
transformaram-no numa espécie de catecismo, fora da história e da realidade.
Quando o texto afirma que “as forças produtivas da humanidade deixaram de
crescer” talvez corresponda a 1938, quando a Europa e o mundo ainda se debatiam
com as consequências da grande crise de 1929, mas, para certas correntes
trotskistas, a afirmação continuava valendo em 1960 ou 1980. Os economistas
marxistas que, como Ernest Mandel, procuravam dar conta do extraordinário
desenvolvimento das forças produtivas depois da Segunda Guerra – conduzindo,
claro, a novas crises – eram chamados de “revisionistas”.
Outro erro
cometido por muitos consistia em tomar O programa de transição como um catálogo
de receitas já prontas: por exemplo, em qualquer situação de crise ou de
mudança política, evocar a ordem: “Assembleia Constituinte!”.
Se O programa
de transição, assim como o Manifesto
Comunista, é um documento histórico, que reflete, até certo ponto, uma
conjuntura determinada, ele contém, ao mesmo tempo, algumas ideias fundamentais
do marxismo revolucionário. O que o documento tem de importante – e genial – é
um certo método de intervenção política, que poderia ser chamado de “método do
programa de transição”. Tal método, que é inspirado na experiência da Revolução
de Outubro e das lutas sociais dos anos 20 e 30, tem como ponto de partida a
filosofia da práxis de Marx, isto é, a compreensão de que a consciência social
dos explorados, sua capacidade de tranformação tanto pessoal como em sujeitos
históricos, resulta, antes de tudo, da própria prática, da própria experiência
de lutas e de conflito social.
Rompendo
com uma velha tradição social-democrata de separação entre um “programa mínimo”
reformista e um “programa máximo” abstratamente socialista, Trotski propunha
formular reivindicações “transitórias” que, partindo do nível de consciência
real dos trabalhadores, de suas exigências concretas e imediatas, levavam a um
enfrentamento da lógica do capitalismo, a um conflito com os interesses da
grande burguesia. Por exemplo: a abolição do segredo comercial” – ou do
“segredo bancário” – e o controle dos trabalhadores sobre a indústria; ou
então, a escala móvel de salários e a escala móvel de horas de trabalho, como
resposta ao desemprego; ou, ainda, a expropriação dos grandes bancos e a
nacionalização do crédito.
Mais do que
essa ou aquela palavra de ordem, proposta ou reivindicação – que Trotski havia
diversificado em função de contextos diversos: países coloniais, países
imperialistas, países fascistas e Estados burocráticos – o que há de atual no
documento de 1938 é seu método, sua concepção dialética do programa como
instrumento de luta e de conscientização. Com esse método, escrevia Ernest
Mandel, em 1972, num préfacio ao documento, Trotski buscava “tornar o movimento
consciente dos únicos objetivos que oferecem soluções duráveis e não
passageiras aos males provocados pelo regime capitalista”.
Propor um
programa de transição não significa, insistia Trotski, ignorar as
reivindicações parciais ou elementares dos trabalhadores, ou ignorar a
diferença entre democracia e fascismo. Um dos capítulos d’O programa é dedicado
a uma crítica radical ao sectarismo. Apesar disso, traços sectários também são
encontrados no documento, por exemplo no capítulo dezoito, que declara “uma
guerra implacável” a todas as outras correntes do movimento operário, desde a
social-democracia até o anarcossindicalismo.
O que
inspira O programa de 1938, apesar das terríveis derrotas e das crises do
movimento operário nos anos 30, é uma aposta racional na possibilidade de uma
saída revolucionária para os impasses do capitalismo, na capacidade dos
trabalhadores de tomar, através de sua experiência prática, consciência de seus
interesses fundamentais, na vocação das classes exploradas e oprimidas para
salvar a humanidade da catástrofe e da barbárie. Tal aposta não perdeu nada de
sua atualidade nesse início do século XXI.
***
Michael
Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade
de São Paulo, e vive em Paris desde 1969.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/
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