Nós, os autômatos sociais… (Ou os fundamentos sociais da crueldade)
Há quem diga que a miséria e a ignorância são as causas mais profundas da violência e da crueldade humanas, mas não é verdade.
A miséria e
a ignorância já são, na verdade, consequências diretas da crueldade do homem.
É,
portanto, exatamente o inverso do que se pensa e propaga.
Digamos
que, sem dúvida alguma, a miséria e a ignorância produzem ainda mais violência
e crueldade, mas, no fundo delas, está o desprezo pelas vidas, a
insensibilidade dos homens diante do sofrimento alheio, está a frieza da nossa
espécie. Afinal, quem seria capaz de esbanjar milhões em futilidades ou viver
exibindo seus bens se lhe doesse de verdade o sofrimento de um outro que passa
fome e necessidade? Ou, mais do que isso, quem exploraria os outros, sem dar a
mínima para a sua existência, senão seres que atingiram tal frieza e
insensibilidade?
É
assustador o quanto o homem pode ser monstruoso, sem se dar conta disso.
É claro que
não temos dúvida de que a humanidade é capaz de grandes demonstrações de
grandeza, de empatia, de solidariedade, de bondade e sensibilidade (muitos são
os exemplos que não nos permitem esquecer que podemos ser seres magnânimos e
superiores – e superior aqui não quer dizer estar além de outros seres vivos;
mas, sim, superior com relação a nós mesmos, com relação ao que nos tornamos).
Mas a
questão é: porque, sendo dotados de todas estas potencialidades, vivemos
mergulhados em guerras, ódios, crueldades? A resposta é simples, embora nem por
isso a compreensão desta nossa condição seja fácil. Nós fizemos um corte profundo
com a vida; nós nos enclausuramos, nos tornamos seres solipsistas, nós criamos
um mundo-próprio, que se põe em guerra contra a natureza, o que, no fim das
contas, é uma guerra contra nós mesmos, uma guerra contra a natureza que nos
habita, contra a vida que é a mesma em todos nós, do menor ao maior dos seres.
Apesar de
todas as nossas virtuais possibilidades, que seriam, de fato, inúmeras, as
sociedades humanas fundaram seus alicerces em valores contrários à vida, e é
por isso que, quanto mais se clama pela vida, quanto mais a buscamos
desenfreadamente em diversões e alegrias ilusórias, mais nos afastamos dela,
porque, já na origem do homem, do homem que vive em cultura, ou seja, já na
origem de nossa organização como homem, a vida em nós começou a ser esmagada em
nome da nossa proteção e segurança. Tornamo-nos reféns de nosso próprio medo da
vida. É assim que toda a vida se tornou uma ameaça para nós.
Nós
perdemos, como já dissemos outras vezes (ao citar Nietzsche) nossa saudável
razão natural; uma razão que nos ensinava os limites de nossa espécie, que nos
dotava de freios e de uma lógica muito mais real, porque mais concreta e vital,
do que nossas abstratas ideias megalômanas. Mas disso já falamos. O que não
falamos, com muita clareza, é que os fundamentos da crueldade são sociais. Não
existem seres perversos em si, que nasçam perversos. Também não existem seres
que nasçam bons, no sentido religioso do termo. Mas é certo que trazemos em nós
virtualidades que podem e devem ser trabalhadas para que possamos criar um
campo social realmente satisfatório para todos os homens e para os outros seres
vivos igualmente (que também têm o direito de viver em paz e livres, mesmo
porque a escravidão não é natural e muito menos justificável por qualquer
argumento racional e isso quer dizer que, no fundo, é na base de nossa
constituição como seres sociais que se esconde a nossa própria crueldade; é
porque as sociedades têm feito dos homens meios para que alguns poucos triunfem
sobre a maioria; meios para institucionalizar a exploração; meios para que
alguns usufruam de outros impiedosamente, que, por fim, são gerados os
autômatos sociais, nós mesmos – pelo menos enquanto não tomamos consciência
desta cegueira e não tomamos nas mãos nossas próprias vidas e a reinventamos. E
reinventar a própria vida não significa fazer um corte com o social, não
significa viver à parte do mundo.
Significa
recriar novas bases para si mesmo, bases mais verdadeiramente humanas e vitais,
algo que sirva de exemplo para o próprio campo social. Algo que ponha em
movimento exatamente o que está estagnado em nós: a própria vida. O indivíduo é
mais forte do que se pensa. É nele que começa a mudança.
É o exemplo
de uns poucos que fazem eco e transformam o social. Não foi assim com a
abolição da escravidão humana e com tantos outros movimentos? Quando se age e
não apenas se fala, se imprime na carne o ideal. A justiça, por exemplo, deixa
de ser um ideal e se torna real quando um homem é capaz de ser justo.
São os
exemplos que ensinam de verdade e não as palavras.
Todo dia,
afinal, escutamos barbaridades: crianças de três anos que são jogadas em rios,
famílias assassinadas, animais maltratados e barbarizados; quantas histórias de
crueldades ouvimos e nos mantemos alheios, como se fosse normal. Mas o que nos
faz acreditar que é normal esta psicopatia social, esta monstruosidade em um
ser que é capaz de amar, que é capaz de salvar vidas, que é capaz de se
solidarizar com o sofrimento do outro? É fácil sermos maniqueístas e apenas
separar o joio do trigo.
É fácil
dizer que existem os maus e os bons. Mas isto também não é verdade. Ou, pelo
menos, esconde o principal. Esconde que os homens têm sido triturados desde o
início, que as vidas são destruídas já no berço, por nossos valores insensatos,
por uma crueldade e frieza que foram inscritas com ferro e fogo no homem, mas
que, ainda assim, estão longe de ser algo natural ou inexorável. Precisamos
enfrentar o fato de que o social tem criado monstros, homens sem alma, sem
sentimentos, para servirem a ideais sujos de ganância, exploração e servidão.
A produção
de homens dóceis, como dizia Foucault, que não reagem, que vivem mecanicamente,
repetindo o que aprenderam como máquinas sem pensamento, é a finalidade do
tirano, como já dizia Espinosa. A produção de homens fracos, sem vontade
própria, que obedecem cegamente e que, portanto, matam também cegamente: assim
tem caminhado a humanidade… Mas quando deixaremos de ser autômatos e nos
tornaremos seres humanos de verdade?
PS: Ofereço
este texto em memória de todas as vidas perdidas e destroçadas pela crueldade,
e também em memória da minha gatinha, que se despediu da vida com a mesma
coragem com que entrou nela.
Regina
Schöpke é filósofa, medievalista, tradutora e autora dos livros.
Fonte: http://www.anda.jor.br/
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