terça-feira, 5 de novembro de 2013

A rua e o poder: uma entrevista com Perry Anderson – por Juliana Sayuri


A rua e o poder: uma entrevista com Perry Anderson
Mais uma vez, a voz das ruas. Ecos talvez das jornadas de junho, manifestações vibrantes voltaram a ocupar São Paulo. Dessa vez, na estrada federal: com multidões furiosas, caminhões incendiados e barricadas nos arredores da Rodovia Fernão Dias, zona norte, onde o estudante Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos, morreu com um tiro disparado por um policial militar no domingo passado.
“As manifestações de junho marcaram o despertar político de uma nova geração. Mas outro levante popular, ainda maior, não pode ser descartado neste momento.” O alerta é do historiador britânico Perry Anderson, professor da Universidade da Califórnia, ex-editor da New Left Review, ensaísta e autor de Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias (Boitempo), entre outros.

Aos 75 anos, Perry Anderson vive entre Londres e Los Angeles, mas dedica um inspirado olhar à América Latina e ao Brasil. Cá esteve para participar do Fronteiras do Pensamento em outubro, em Porto Alegre. No primeiro encontro, a impressão: um gênio difícil, dir-se-ia. Um dos mais importantes teóricos marxistas contemporâneos, o intelectual não é fã de entrevistas, escolhe suas palavras meticulosamente, voz firme, óculos quadrados e anotações datilografadas a tiracolo.
O historiador também passou por Campinas e São Paulo, onde nos reencontramos para um café filosófico nos Jardins. “Não gosto de dar entrevistas, particularmente. Todo mundo dá entrevistas atualmente, é muito fácil. É a síndrome de Andy Warhol: todos serão famosos por 15 minutos. Por isso, penso que só se deve falar quando realmente tiver algo a dizer”, justifica. Nesta entrevista exclusiva ao Aliás, Perry Anderson comenta os rumos do Brasil e do mundo em tempos de explosivos protestos populares.

Domingo passado, um jovem foi morto por um PM na Vila Medeiros, zona norte de São Paulo, provocando protestos violentos que travaram a Fernão Dias. Dilma Rousseff criticou a violência contra jovens negros da periferia, ‘a manifestação mais forte da desigualdade no Brasil’, nas palavras da presidente. Como o sr. analisa o poder (ou a fragilidade) das manifestações nas ruas desde as jornadas de junho no País?
Três grandes conquistas vieram com os protestos de junho. Primeiro, as manifestações marcaram o despertar político de uma nova geração – principalmente, mas não exclusivamente, dos jovens, dos trabalhadores oprimidos. Segundo, ao forçar espetacularmente governantes a recuar no aumento das tarifas de transporte público em grandes cidades, eles fizeram surgir uma compreensão do empoderamento social (de dimensão potencialmente nacional) para setores até então passivos da população. Por último, e não menos importante, levantaram a questão da distribuição escandalosamente distorcida das despesas públicas no Brasil. O mérito para tudo isso vai para os movimentos de esquerda que alavancaram os protestos – o MPL principalmente –, cujo eco popular foi tão expressivo que mesmo forças de direita aderiram às manifestações, pautadas por seus próprios propósitos. Assim, a fragilidade dos protestos está nessa enorme disparidade: por um lado, o pequeno núcleo organizado que inspirou as revoltas de junho; por outro, a escala das multidões que tomaram parte nessas manifestações, sem liderança política ou infraestrutura duradoura. O futuro dependerá de até que ponto essa lacuna poderá ser fechada.

No artigo Lula’s Brazil, publicado na London Review of Books, o sr. destaca a especial ênfase do ex-presidente aos mais pobres. Além da inclusão com programas como o Bolsa Família, o Brasil viu uma forte onda de consumo com a ascensão de uma ‘nova classe média’. A questão toda é sobre poder aquisitivo? É possível proporcionar inclusão e justiça social de outras maneiras?
Certamente é possível – e milhões de brasileiros mostraram neste inverno que eles entendem totalmente como: através da criação de serviços públicos decentes e equitativos para os cidadãos comuns, sobretudo transporte urbano aceitável, assistência médica, habitação social e educação fundamental. A grande conquista do governo Lula foi a criação de empregos e a elevação do poder aquisitivo dos pobres. Esses foram ganhos dentro das relações do mercado. Mas sem avanços correspondentes nas esferas da vida em que as relações de mercadoria não deveriam ter lugar, o risco é realmente gerar uma sociedade de consumo em que, como nos Estados Unidos, aumentar a prosperidade não é, na verdade, empecilho para aumentar, ainda mais rapidamente, a desigualdade. No Brasil, que ainda continua perto do recorde mundial de má distribuição de renda, só uma reforma radical da estrutura tributária, da administração pública e do sistema político pode frear esse perigo. É necessário um Estado que esteja verdadeiramente sob o controle de seus cidadãos, que seja capaz de oferecer serviços honestos, justos e construtivos para eles.

Mas esse Estado é possível?
Estrategicamente, a chave para a reforma precisa ser uma transformação do sistema político, cuja involução para uma ordem decadente e ensimesmada, afastada da vida popular do país, é agora amplamente reconhecida. Os beneficiários desse sistema – principalmente no Congresso, mas também nos poderes das cidades e dos Estados – não vão aceitar, por vontade própria, nenhuma mudança séria nessa ordem. Só a pressão popular pode forçá-los a fazê-lo. A convocação para uma Assembleia Constituinte é absolutamente correta, mas não pode ser instituída por um apelo presidencial que dependa da aprovação de uma classe política para a qual uma reforma pareceria uma tentativa de suicídio. Em Brasília, o Congresso apenas se renderia à fúria das massas nas ruas e nas praças. Isso é aceitável? As manifestações de junho vieram como um choque para a ordem estabelecida. Outro levante popular, talvez ainda maior, não pode ser descartado neste momento. Mas, para render frutos, uma alternativa construtiva para o atual impasse deve se firmar na imaginação popular. Disso ainda há pouco sinal.

Se fosse escrever um novo artigo, talvez Dilma’s Brazil, como seria? Dilma difere muito de Lula?
Em estilo, naturalmente difere de Lula. Nesse quesito, o dom do ex-presidente é inimitável. Em substância, há poucas diferenças. O que mudou não é nem a natureza nem as ambições da administração, mas as condições em que os dois operam. O crescimento no governo Lula foi impulsionado pelos altos preços de commodities na primeira década do século, que deram ao Brasil um considerável aumento do lucro das exportações. Esse momento passou – e o crescimento caiu. O novo governo tentou contrariar a conjuntura menos favorável ao reduzir as taxas de juros e introduzir modestas medidas protecionistas para estimular a economia. Mas o investimento – baixo há décadas no Brasil, segundo os padrões internacionais – falhou e os preços dos serviços começaram a subir. Isso estreitou o espaço econômico para manobra do governo justamente no momento em que as demandas sociais começaram a explodir, especialmente entre setores jovens da população. Encurralado entre essas duas pressões, o projeto do PT, como moldado no governo Lula, periga se esgotar. É necessário um novo modelo. Se o projeto encontrará um segundo fôlego ainda é uma questão aberta.

Após décadas de neoliberalismo, vimos a ascensão de ‘novos’ governos na América Latina, ao mesmo tempo – Chávez na Venezuela, Kirchner na Argentina, Lula no Brasil. Nomes da esquerda também foram eleitos na Bolívia, Equador e Uruguai. Olhando para trás, as expectativas sobre esses ‘novos’ governos eram muito altas?
Não tenho certeza se concordo com esse retrato. Minha impressão é que a euforia exagerada sobre o grau de uma ruptura com o neoliberalismo no novo século não era tão comum – mesmo porque ficou claro para todos que as experiências sul-americanas que você mencionou estavam se movendo no contrafluxo, quer dizer, contra a tendência do mundo, pois América do Norte, Ásia e Europa estavam ainda alinhados ao neoliberalismo. Na América Latina, é justamente o movimento contrário – não a mais privatização, nem a maior desregulamentação, lidando ainda com uma desigualdade acentuada, mas com medidas de proteção nacional, preocupação com os pobres, defesa da esfera pública – que moldou o horizonte político do continente que, apesar de todas suas irregularidades, tornou-se um farol de esperança para os povos de outros lugares.

Na época, vimos o nascimento do Fórum Social Mundial, após os fortes protestos de Seattle. Nos últimos tempos, vimos o Occupy Wall Street, os indignados espanhóis e outros movimentos contra o capitalismo. A mensagem é similar: outro mundo é possível. Por que esses movimentos explodem, expõem as contradições do sistema capitalista e depois desaparecem?
Aliás, desaparecem? Explicações sobre os padrões dessas repentinas e imponentes explosões de protestos populares – que se iniciam e desaparecem rapidamente, ainda sem provocar muitas mudanças – precisam incluir três fatores principais. Obviamente, o primeiro é a ruptura da continuidade na cultura de esquerda com a vitória do capitalismo ocidental na Guerra Fria. O segundo é o declínio, no mundo inteiro, dos partidos como forma clássica de organização política, agravando essa ruptura de continuidade. E, certamente, o terceiro é o advento da internet, que permite uma comunicação e uma mobilização muito rápidas de muitos indivíduos de outra forma dispersos. Entretanto, precisamente por permitir esse sucesso tão rápido e relativamente tão fácil, nos momentos de crise, a internet acaba desencorajando o trabalho mais lento e mais difícil de criar movimentos políticos com estrutura e organização mais duradouras.

Como o sr. analisa a resposta do Brasil ao escândalo de espionagem americana?
O Brasil certamente se saiu melhor – e mais firmemente – que qualquer país europeu. Ao cancelar a visita oficial a Washington e criticar a espionagem americana no discurso nas Nações Unidas, Dilma Rousseff mostrou gestos de dignidade que nenhum outro líder foi capaz de mostrar. Mas esses gestos permanecem limitados. O grau contínuo de submissão do Brasil ao império americano pode ser visto, por exemplo, no fracasso do país ao (não) oferecer asilo a Edward Snowden, que revelou o esquema de espionagem e desde então está sendo perseguido pela índole vingativa característica de Barack Obama, cujo registro de punições domésticas ultrapassa o de George W. Bush. Podemos ter certeza de que Snowden teria encontrado um refúgio mais feliz no Brasil democrático que na Rússia autocrática. Não ter oferecido isso a Snowden é um motivo para desonra nacional.

Ainda assim, o governo do PT mostra mais independência na política internacional?
Certamente mais que os governos de José Sarney ou de Fernando Henrique Cardoso. Mas se formos justos, precisamos lembrar que nenhuma ação de Lula ou de Dilma, apesar de muitas terem sido positivas, foi tão destemida quanto a de um oligarca da República Velha, Artur Bernardes, que, em 1926, retirou o Brasil da Liga das Nações porque eles se recusaram a dar a qualquer país não europeu um assento permanente no conselho. Essa foi uma decisão de honra.

O sr. publicou um livro sobre a Índia – The Indian Ideology. A experiência desse país seria relevante para o Brasil?
Sim. Acredito que um estudo comparativo entre essas duas democracias – grandes países, mas ainda subdesenvolvidos em certa medida – seria de grande interesse. Deveria haver mais intercâmbio intelectual e político entre Brasil e Índia. Inclusive onde suas reformas sociais oferecem paralelos. É uma pena, pensei muitas vezes, que nunca tenha havido (até onde sei) uma troca de experiências entre seus respectivos programas para redução da pobreza: o Bolsa Família, no Brasil, e a Lei Nacional de Garantia de Emprego Rural, na Índia. Um, referente a uma transferência de dinheiro; outro, à disposição de trabalho. São os dois programas mais importantes nessa linha no mundo.

O sr. é considerado um especialista em história intelectual. Tem conselhos para estudantes nesse campo?
Nunca confunda julgamentos políticos e julgamentos intelectuais. A qualidade dos pensadores sérios nunca é uma simples função de seus pontos de vista ideológicos. Pensamentos – à direita, ao centro e à esquerda – devem ser tratados com cuidado analítico e respeito crítico iguais.

E atualmente qual é o papel dos intelectuais na sociedade?
Há uma ideia generalizada de que para ser um intelectual é preciso ser crítico da ordem estabelecida. Não é verdade. Desde o nascimento moderno do termo, possivelmente mais intelectuais têm sustentado os sistemas dominantes em suas sociedades. Assim, não há uma resposta única a sua questão. O papel dos intelectuais de direita é defender e ilustrar a ordem estabelecida. O papel dos intelectuais de centro é dar eufemismos e conformidade à ordem. O papel dos intelectuais da esquerda é atacá-la radicalmente. E nós precisamos de mais intelectuais assim.
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Perry Anderson é um historiador inglês nascido em 1938.

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