A arrogância dos ignorantes virtuais
Redes
sociais são vítimas de uma praga: o palpitiero preguiçoso, que diz tolices sem
pesquisa alguma – e é aplaudido por seus pares
Imaginem a
seguinte cena: uma pessoa que se formou, digamos, em administração de empresas,
mas já foi ao médico muitas vezes na vida. Numa mesa de debate, à sua frente,
médicos e agentes de saúde pública discutem a forma como certo vírus é
transmitido para populações distintas. O administrador se levanta e, gentilmente,
faz uma colocação:
- Os
senhores me perdoem, não sou médico, claro, mas também não concordo com isso
que estão dizendo.
Os médicos
e agentes se entreolham e pergunta ao administrador com o que ele não concorda.
- Ora, está
claro pra mim que o vírus é transmitido mais frequentemente para populações
brancas. Eu sou branco e conheço muitas pessoas brancas, e várias delas tiveram
esse vírus.
Os números
apresentados pelos agentes de saúde pública nos cinco minutos anteriores à
colocação do administrador mostram o oposto: devido a certas condições de
moradia em comunidades negras, o tal vírus era mesmo mais frequente entre
pessoas negras. Os agentes pacientemente explicam os números novamente ao
administrador, que se levanta e, saindo da sala, grita:
-
Ditadores! Vocês não sabem dialogar! Vocês só querem ouvir quem concorda com
vocês!
* * *
A cena que
descrevi acima é frequente em praticamente qualquer debate político,
especialmente na internet, em que as pessoas parecem mais confortáveis com a própria
ignorância, sobretudo quando ela rende reações positivas de leitores. Quer
dizer, na internet é muito fácil encontrarmos quem pensa exatamente como
pensamos, e isso dá uma sensação (falsa) de que o que pensamos realmente deve
ser verdade. A experiência pessoal, individual, sem qualquer reflexão ou
informação crítica sobre ela, é reivindicada por grande parte das pessoas como
um dado. Como se devesse, de fato, ser tratada da mesma maneira que um dado ou
informação construídos por meio de anos ou décadas de trabalho de pesquisa,
investigação, etc.
No caso dos
debates que estão ligado a áreas técnicas – meio ambiente, saúde, saúde
pública, etc. – essas atitudes parecem ser menos comuns, embora ocorram. Quando
se trata de debates sobre política, cultura, sociedade, porém, a coisa é ainda
mais feia. Troquem a cena descrita acima por um debate sobre a questão
indígena, com antropólogos e lideranças indígenas discutindo e um mergulhador
que não tem qualquer formação ou experiência na área fazendo a colocação. Parece
familiar?
Enquanto
socióloga, encontro embates desse tipo todo o tempo, seja na discussão política
de esquerda, seja no feminismo. Ser feminista ou ser de esquerda realmente não
é difícil. Basta propósito e ações comuns. Nos identificamos com elas, acompanhamos
debates, nos envolvemos de várias maneiras – todas válidas. No entanto, se
desejamos crescer como movimento ou como ativistas, é preciso mais do que meia
dúzia de textos de internet (ainda que textos de internet sejam, sim, um
excelente começo).
Tanto o
pensamento feminista quanto o pensamento de esquerda são recheados de conflitos
e contradições internas, claro. A diferença é que, ao ler autores que dedicaram
décadas e formular explicações, investigar questões empíricas, filosóficas ou
teóricas sobre o assunto que nos interessa, não estamos lendo uma discussão de
comentários em Facebook. Estamos lendo um debate construído sobre dados e
pensamentos consolidados, que não se baseiam em experiência pessoal, individual
ou em “opinião”. Esses textos, ainda por cima, costumam nos situar em relação
aos posicionamentos que tomamos: de onde vêm certas percepções e posições que
temos, enquanto militantes e ativistas, sobre a causa, as estratégias, o mundo?
Já dizia Marx: somos seres tributários de nossa história. Enquanto militantes
não é diferente.
Ao mesmo
tempo é importante avisar aos navegantes dessa onda que ninguém, mas ninguém
mesmo, tem a obrigação de ser professor particular voluntário e te explicar o
pensamento de autores, as teorias, os conceitos e os textos que talvez se
esteja com preguiça de ler. A informação hoje está disponível com muita
facilidade; com poucos segundos de Google Acadêmico é possível encontrar
textos, boas análises sobre eles, apresentações de autores, entre outros. É só
se dar o trabalho de procurar, ler e conversar com outras pessoas sobre aquilo.
Assim crescemos.
Para
facilitar esse caminho das pedras – de encontrar leituras, compreender a
relação entre elas, conhecer autores e discutir com quem também está lendo ou
leu aquele material – há alguns sites e cursos, online e presenciais, que se
propõem a fazer esse tipo de introdução (sem falar em coleçõezinhas que várias
editoras têm, apresentando autores, temas ou perspectivas teóricas de diversas
áreas das ciências humanas e sociais). A Universidade Livre
Feminista, ou o Arquivo
Marxista da Internet.
Foi
justamente com esse propósito também que criei, no finzinho de 2013, alguns
cursos introdutórios sobre feminismo – e gostaria de convidar brevemente as
leitoras e leitores a conhecê-los. Neste mês de janeiro, em São Paulo, haverá
quatro encontros temáticos para quem quer saber um pouquinho mais sobre feminismo
antes de entrar em leituras e estudos. Um beabá geral, para o qual vocês podem
se inscrever aqui.
Em fevereiro, na modalidade à distância, ofereço um curso de teoria de gênero
(saiba mais e se inscreva, aqui). Além de
tudo isso, pra quem já conhece um pouco de feminismo e deseja aprofundar seus
estudos de maneira constante, lendo de debatendo com outr@s interessad@s,
comecei um grupo de estudos permanente, online (veja aqui).
Essa é
minha maneira de responder a uma necessidade que aparece em quase todo debate.
Há sempre muita gente que não está interessada, claro, e sempre haverá. Mas
também há muita gente que se perde em meio a tanta informação disponível
(afinal, buscar no Google não é sempre algo fácil de óbvio como eu mesma fiz
supor ainda há pouco) – e que realmente deseja estudar e entender a coisa de
forma mais estruturada.
Aproveitemos
o ânimo de ano-novo para pensarmos, em 2014, um ciberativismo feminista novo:
com um debate menos baseado em desafetos pessoais, experiências individuais e
achismos, e mais baseado no que existe de conhecimento feminista acumulado
sobre o mundo (e não é pouco!). No ano que passou conseguimos atenção e
ampliação da participação online sobre uma série de questões caras a nossas
lutas. Agora temos a opotunidade única de promover um crescimento qualitativo
do nosso movimento!
Seja mais
que bem-vindo, 2014. Meu otimismo me diz que será um ano bom para o feminismo
na internet (e, espero, fora dela também).
Um feliz
ano, feministas de todo o mundo!
Coluna Mulher Alternativa
Fonte: http://outraspalavras.net/
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