Dois homens negros em busca de esquecimento...
Agora, como sair de casa, pegar os ônibus? Como livrar-me
desses fantasmas, da cabeça virada, bochechas derretidas no chão quente?
Conto de Paula Francisquetti | Imagem: Käthe
Kollwitz
Deus está morto; a sua piedade pelos homens matou-o.
Nietzsche
Nietzsche
Boca a boca
Volta:
o sangue na calçada, J. estendido, inerte, cabeça virada
para o lado. Inclino-me para o boca a boca, arrancam-me dali. Anuncio: tenho
conhecimento de primeiros socorros. Seguram-me pelos braços. O rapaz está morto
não adianta, dizem. Não acredito, não pode ser, mais um não. Brigo ao lado do
corpo do meu amigo. O sol forte esconde a pipa no céu, trombo com J., caímos no
chão de tanto rir, um faz cócegas no outro, nos matamos de rir. Sou desastrado,
ele sabe disso. A sirene da polícia irrompe, a mãe dele chega. Não, não pode
ser. J. reparte comigo metade do chocolate antes do começo do jogo, final de
campeonato. Nesse ano o Coríntians foi campeão. Eh! Timão! A insônia me
encalça, não dá descanso. Uma, duas, três estrelas riscam o céu. A noite,
afoga-me. Ele chutou minha bunda, devolvi um soco, nos atracamos, segura meus
punhos com as mãos, xingo o mais que posso, filho da puta, cu, gargalhamos, vai
buscar as bolas de gude, faz os buracos no chão de terra, jogamos a tarde
inteira, horas seguidas. Nos escondemos na árvore, comemos mangas vermelhas, os
insetos proliferam, o verão avança. Uma maritaca pousa no galho da árvore em
frente a janela do meu quarto. Corro, corro e nada. A mãe dele grita. Sento na
calçada, não consigo manter-me de pé. Minha cabeça gira. Maremoto. A vizinhança
aproxima-se, quero sair dali, quero voltar no tempo, quero a manga vermelha,
quero dar um soco em J.. Como ele partiu? Cuzão. Como foi embora assim? Quem
lhe tirou a vida? Quem é esse filho da puta? Arqueado, zonzo, inconformado,
levanto. Busco a verticalidade. Alguém acendeu uma vela. Cadê Yayá, cadê você
num momento desses? Todos abandonaram-me. É carnaval, vamos puxar o carro
alegórico, cuidar da organização do desfile. O enorme boneco do Lima Barreto
ameaça cair, seguramos as cordas com força, ele fica de pé. Nada de desastre,
não brinquem. A bateria irrompe, meu coração dispara. Literatura negra em
desfile. Desabamos de alegria polvilhados de confete. J., meu companheiro
inseparável, meu irmão, para onde você foi tem samba? Flutuo, quero J., quero
agora, não posso mais esperar. Vou buscá-lo. Espere. Como nossa escola vai
ficar sem você, nosso trovador? O sangue na calçada, a sirene, as pessoas
curiosas em volta. Não consigo sair de casa. Tenho medo, não suporto mais as
visões. Sinuca de bico. Peito entumescido. Voltam-me as mortes recentes: J. e
I., o amigo morto na faculdade, estatelado. Com ele o problema foi infarto,
daqueles fulminantes. Sobrevivo: quieto, encolhido, encharcado. Cascalhos nos
pés. Dobrado, não tenho para onde ir. Não, a culpa não é minha, fiz o que pude,
faço o que posso, tento o máximo, mas não é suficiente, nunca é suficiente. Não
posso ficar ereto, não posso voltar ao samba. O chão abriu-se. Ando sem juízo.
Cabeça na maldita calçada. Vida fendida. Trabalhava como bedel numa
universidade privada, daquelas feito um shopping center. Minhas tarefas: fazer
os alunos entrarem em classe, ajudar os professores com os equipamentos
(projetores, computadores…) e iniciar os primeiros socorros! Não sei como
entrei nessa. Recebíamos um treinamento por ano. Procedimento surreal para um
sujeito como eu. Num dia, sobrou para mim acudir um amigo, I., 65 anos.
Conversávamos com frequência na lanchonete. Foi péssimo, não tive o que fazer,
quando cheguei perto o corpo já estava imóvel, sem pulsação, zerado. Tentei
massagem cardíaca, mas nada, nenhum resultado e o pessoal da ambulância longe.
Sou um fracasso em reanimação, nota zero. Ele, o meu amigo, queria ser
advogado. Faleceu no terceiro ano, sem completar os estudos. Não teve tempo. O
tempo foge-nos, isso sim. Culpado, confuso, pesado, aniquilado, sobrevivo às
bofetadas. Sei, a culpa não é minha, rumino isso há meses, minuto a minuto,
inúmeras vezes, cada história, pedacinho por pedacinho, mas de nada adianta,
nada. Horrível. As cenas de morte dos meus amigos misturam-se. As opacidades
sondam-me. Transformei-me no réu de um julgamento sem fim. Sangue coagulado.
Pedra. O que poderia ter feito, pergunto-me inutilmente. Vem a tortura: se
tivesse feito tal coisa tudo poderia ser diferente, se tivesse chegado antes no
bar, se tivesse, meu amigo da faculdade poderia formar, mas a vida não volta
atrás, não tem jeito, só no cinema. Quero estar num filme, quero a manga
vermelha, quero metade da barra de chocolate, quero ver o Timão em final de
campeonato. Bis, bis. Não quero mais ser bedel, não dou para esse trabalho,
essa vigilância burra. Não aguento essas situações limite, de fim da vida, de
sofrimento ao quadrado. Desisto, chega. Não sei como vim parar aqui. Engano.
Trabalho infame. Agora, como sair de casa, pegar os ônibus? Como livrar-me
desses fantasmas, da cabeça virada, das bochechas derretidas no chão quente?
Lima Barreto caindo e nós na corda, força total. As serpentinas voando em
várias direções. Ufa! Ouço o grito da mãe de J. Daria tudo para não ter mais
essas visões, daria tudo para relaxar, respirar, dormir, namorar, andar a esmo,
esperar a felicidade chegar de mansinho. Mas não, não acho saída desse inferno.
Será que J. vem? Vai atrasar? Comprei duas entradas do cambista. O dia
amanheceu azul. Adoro futebol, gritar no meio da turba com J. ao meu lado. Ao
Coríntians, o céu, o céu anil e nossa alegria mais pura. Gol! Gol! Gol! Nesse
dia, o Timão ganhou de goleada, beleza! Se tivesse chegado a tempo! Ah, meu
deus! Yayá, onde está você? Sacanagem você esconder-se assim numa hora dessas.
Sonho com Felisburgo, aquelas árvores todas, o cheiro de terra molhada, o fogão
a lenha aceso, as panelas de barro fumegantes. Saudades do Jequitinhonha, de
você, das noites iluminadas pela lua grande, azul, esburacada. Lugar diferente
de São Miguel, bairro de São Paulo, onde cresci. Uma vez, J. viajou comigo. Ele
nunca havia saído da cidade. Ficou em êxtase com os banhos de rio, o canto das
cigarras, as nuvens de vagalumes, a relva beijada pelo vento. Passado. Agora,
carrego um monstro, não há mais cura. Que destino! Diante de mim: apenas o
leito interrompido, arrebentado. A navegação impedida. Meu coração aos
solavancos anunciando: sou eu o monstro. Perigo, perigo. O sangue imunda minhas
mãos. Uma nuvem branca paira. Seguram-me pelos braços. Não há salvação. Cavalos
alados? Aproximem-se! Aqui, aqui, neste tufo da mata!
Oriente: Tiradentes
Crescemos lado a lado, Nininha e eu, num predinho de três
andares da Cidade Tiradentes. Pouca diferença de idade, cumplicidade extrema.
Pai morto cedo demais. Quarenta e poucos anos. Rins extirpados. Anos de
diálise. Transplante. Corpo magricela coberto de manchas roxas. Nossa mãe
longe, na Mooca, em casa de família. Os passeios restringiam-se às
proximidades: mercado, açougue, elevador, esconde-esconde nas escadas. Aos
sábados: lanchávamos diante do balcão de fórmica vermelha da padaria. Misto
quente com guaraná. Canudinho colorido. Não tínhamos licença de sair do
apartamento, brincar na rua, só para escola. Nada de campinho, futebol, amigos.
Pipa, só na presença da mãe, aos domingos. Grande dia. A violência do bairro e
o medo de nossa mãe enclausurou-nos em cômodos estreitos, iluminados apenas
pela televisão. Rainha maior da casa. Anestesia na veia. Dez da noite ninguém
mais arriscava o nariz para fora. Na vizinhança, as histórias de estupro
proliferavam: um dia um rapaz, no outro uma velha, num outro foi a vez de uma
menina de oito anos. Essa nossa vizinha foi atacada por mais de um. Ficou toda
machucada. Uma multidão enfurecida seguiu na direção da família de um dos
estupradores. Tocaram fogo na casa, mas a policia conseguiu detê-los e proteger
os moradores. Tudo por um triz. Não seria justo a família pagar com morte por
um dos seus. Mas, nem sempre a vida é justa, aprendemos desde cedo.
*
Numa quarta, dia de feira, vi um homem matar o outro com
revólver no maior descaramento. Depois, ainda comprou uma maçã vermelha e saiu
com ela nos dentes. Ninguém ousou interferir. Com esses tipos não se mexe. Ele
passou do meu lado arrotando a casca. Beliscou meu boné do Coríntians. Tremi.
Amarelei de susto. Será que ele também torcia para o Timão? E se fosse de outro
time? Paralisado de terror, esperei-o dobrar a rua. Não foi dessa vez,
suspirei. Quem cresce num bairro assim sabe: um dia você pode ser o sorteado
pela bala perdida ou mesmo, pela intencional. O ódio de alguns é desmesurado.
Cidade Tiradentes, nessa época, era terra esquecida. O pior por lá vicejava.
Uma aridez entranhava a alma. Meu maior encanto: o balcão de fórmica vermelha
da padaria. Estrela do Oriente. Nossa mãe arrumava-nos em gomos para o lanche
semanal. Eu e minha irmã guardávamos a mesada para a ocasião. Nosso ritual
valia nosso ouro feito de níquel barato. A rotina, os pequenos prazeres,
encobriam as ameaças, as atrocidades. Eu sonhava em ter um balcão desses na
minha casa, onde teria lanche todos os dias, misto quente, pizza e brigadeiro e
doce de leite. Com o salário de advogado clamaria por justiça e compraria
lanches para toda vizinhança. Distribuiria as gostosuras detrás do balcão.
Design moderno, superfície lisa, brilhante: um espelho. Espelho do futuro.
Futuro das maravilhas.
**
Em Itaquera, vivia minha avó paterna, Dora. Ela, como minha
mãe, trabalhou como doméstica anos a fio. Durante um período frequentou o
candomblé e chegou a fazer cabeça e quitanda. Aprendeu sobre as festas, as
ervas e jogava búzios para toda vizinhança. Dançava para os orixás e ajoelhava
para as santas católicas: Nossa Senhora Aparecida, Santa Rita de Cássia (das
causas impossíveis). Meu pai guardava uma imagem de Iemanjá na cômoda ao lado
da cama. Perfumado, foi jogar ramalhetes de rosas brancas para ela no mar de
Santos e pedir por sua recuperação. Não teve escuta. Rezou para Santa Rita. Não
deu mais tempo. Seu destino foi minguar. Não voltou a contemplar o mar, nem a
rezar. Vi-o pela última vez na varanda do hospital. Acenou por meia hora e
entrou. Foi nossa despedida. Nada serena. Sua doença afastou-nos. Brutal.
Sorrateira.
Na família da minha mãe muitos frequentam os evangélicos.
Nininha passou anos de cabelo comprimido e botão fechado no pescoço até
desistir dos cultos, sufocada por tantos ditames e proibições. Fascinada com os
acontecimentos de maio de 68, foi repreendida por ter assistido “Os
sonhadores”, do Bertolucci; e também por lido Lima Barreto, “Diário de um
hospício”. Começou, como estagiária da faculdade de história, a trabalhar com
políticos na assembleia legislativa. Confessou-me como ficava embrulhada ao
adivinhar as negociações espúrias, os conchavos indecorosos. Nem todo mundo tem
estômago de avestruz. Agora, vive numa montanha russa entre a desilusão e a
esperança, pura teimosia. Teimosia das boas.
***
Eu luto com vultos. Eles visitam-me dia após dia, noite após
noite. Acordo assustado: eles atrás de mim. Querem pegar-me. Não oferecem
trégua. Imagens do momento da facada visitam-me, caleidoscópicas, insistentes.
Atingiram meu fígado! O sangue jorra. Não entendo. E meu filho e minha esposa?
Discussão por trocados, conta de mesa errada. O dono da pizzaria disse que não
ia levar desaforo de um negro como eu. Atrocidade. E ainda propagam não existir
preconceito no Brasil. Quem fala isso? Branco ignorante, desatento, cego. Fui
atacado pelas costas. Covardia. Ódio cego. Tinha acabado de mudar para Ermelino
Matarazzo com minha família, depois de ter sido roubado no apartamento onde
morava, em Guaianazes. Minha blusa amarela avermelhou. Hoje mata-se por 30
reais, ou porque alguém pisou no pé ou por qualquer outra bobagem. A vida não
vale quase nada. Uma tristeza.
****
Antes do furo na barriga, tentei tirar minha vida duas
vezes. Já seguia no perigo mortal. Na primeira vez, joguei-me diante dos carros
numa avenida perto do hospital onde trabalhava. Na segunda, tentei a linha do
trem. Nas duas vezes, os incidentes aconteceram no meu trajeto de volta para
casa. Safei-me. Quantas vidas tem um homem? Trabalhava desgostoso por não ver
meu filho crescer, exausto de tanto trabalho, horas de condução, pouco sono,
dinheiro minguado. Mais de uma vez, quebrei a casa de tanto nervoso, irritação,
tensão. Não conseguia fazer o cálculo das medicações acumuladas na fila das
minhas tarefas na enfermaria. Tive de parar a faculdade de direito. Muitas
barreiras ergueram-se ao mesmo tempo, e tudo isso culminou no roubo de meu
apartamento. Levaram tudo: televisão, ventilador, aparelho de som, computador,
micro-ondas e até meu colchão, uma ousadia. Foi a gota d’água. Explodi. Fui
homem bomba de mim mesmo. Não tinha com quem conversar, não queria levar mais
problemas para minha esposa, não tinha amigos, não tinha ninguém, apenas medo
de deboche, muito medo. O balcão de fórmica vermelho desaparecido. Nininha sem
saber como ajudar, exasperada. E a Estrela do Oriente? E nosso espelho de
fórmica? As gostosuras? As maravilhas? Espera-se muito de um homem. Acuado, não
tive para onde correr, tentei fugir do meu jeito.
Dos vultos não tenho como fugir. Sobra-me encontrar uma
lança. Fazer guerra. Caçá-los.
Fonte: http://outraspalavras.net/
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