sábado, 18 de janeiro de 2014

Dois homens negros em busca de esquecimento...


Dois homens negros em busca de esquecimento...
Agora, como sair de casa, pegar os ônibus? Como livrar-me desses fantasmas, da cabeça virada, bochechas derretidas no chão quente?

Conto de Paula Francisquetti | Imagem: Käthe Kollwitz

Deus está morto; a sua piedade pelos homens matou-o.
Nietzsche

Boca a boca

Volta:
o sangue na calçada, J. estendido, inerte, cabeça virada para o lado. Inclino-me para o boca a boca, arrancam-me dali. Anuncio: tenho conhecimento de primeiros socorros. Seguram-me pelos braços. O rapaz está morto não adianta, dizem. Não acredito, não pode ser, mais um não. Brigo ao lado do corpo do meu amigo. O sol forte esconde a pipa no céu, trombo com J., caímos no chão de tanto rir, um faz cócegas no outro, nos matamos de rir. Sou desastrado, ele sabe disso. A sirene da polícia irrompe, a mãe dele chega. Não, não pode ser. J. reparte comigo metade do chocolate antes do começo do jogo, final de campeonato. Nesse ano o Coríntians foi campeão. Eh! Timão! A insônia me encalça, não dá descanso. Uma, duas, três estrelas riscam o céu. A noite, afoga-me. Ele chutou minha bunda, devolvi um soco, nos atracamos, segura meus punhos com as mãos, xingo o mais que posso, filho da puta, cu, gargalhamos, vai buscar as bolas de gude, faz os buracos no chão de terra, jogamos a tarde inteira, horas seguidas. Nos escondemos na árvore, comemos mangas vermelhas, os insetos proliferam, o verão avança. Uma maritaca pousa no galho da árvore em frente a janela do meu quarto. Corro, corro e nada. A mãe dele grita. Sento na calçada, não consigo manter-me de pé. Minha cabeça gira. Maremoto. A vizinhança aproxima-se, quero sair dali, quero voltar no tempo, quero a manga vermelha, quero dar um soco em J.. Como ele partiu? Cuzão. Como foi embora assim? Quem lhe tirou a vida? Quem é esse filho da puta? Arqueado, zonzo, inconformado, levanto. Busco a verticalidade. Alguém acendeu uma vela. Cadê Yayá, cadê você num momento desses? Todos abandonaram-me. É carnaval, vamos puxar o carro alegórico, cuidar da organização do desfile. O enorme boneco do Lima Barreto ameaça cair, seguramos as cordas com força, ele fica de pé. Nada de desastre, não brinquem. A bateria irrompe, meu coração dispara. Literatura negra em desfile. Desabamos de alegria polvilhados de confete. J., meu companheiro inseparável, meu irmão, para onde você foi tem samba? Flutuo, quero J., quero agora, não posso mais esperar. Vou buscá-lo. Espere. Como nossa escola vai ficar sem você, nosso trovador? O sangue na calçada, a sirene, as pessoas curiosas em volta. Não consigo sair de casa. Tenho medo, não suporto mais as visões. Sinuca de bico. Peito entumescido. Voltam-me as mortes recentes: J. e I., o amigo morto na faculdade, estatelado. Com ele o problema foi infarto, daqueles fulminantes. Sobrevivo: quieto, encolhido, encharcado. Cascalhos nos pés. Dobrado, não tenho para onde ir. Não, a culpa não é minha, fiz o que pude, faço o que posso, tento o máximo, mas não é suficiente, nunca é suficiente. Não posso ficar ereto, não posso voltar ao samba. O chão abriu-se. Ando sem juízo. Cabeça na maldita calçada. Vida fendida. Trabalhava como bedel numa universidade privada, daquelas feito um shopping center. Minhas tarefas: fazer os alunos entrarem em classe, ajudar os professores com os equipamentos (projetores, computadores…) e iniciar os primeiros socorros! Não sei como entrei nessa. Recebíamos um treinamento por ano. Procedimento surreal para um sujeito como eu. Num dia, sobrou para mim acudir um amigo, I., 65 anos. Conversávamos com frequência na lanchonete. Foi péssimo, não tive o que fazer, quando cheguei perto o corpo já estava imóvel, sem pulsação, zerado. Tentei massagem cardíaca, mas nada, nenhum resultado e o pessoal da ambulância longe. Sou um fracasso em reanimação, nota zero. Ele, o meu amigo, queria ser advogado. Faleceu no terceiro ano, sem completar os estudos. Não teve tempo. O tempo foge-nos, isso sim. Culpado, confuso, pesado, aniquilado, sobrevivo às bofetadas. Sei, a culpa não é minha, rumino isso há meses, minuto a minuto, inúmeras vezes, cada história, pedacinho por pedacinho, mas de nada adianta, nada. Horrível. As cenas de morte dos meus amigos misturam-se. As opacidades sondam-me. Transformei-me no réu de um julgamento sem fim. Sangue coagulado. Pedra. O que poderia ter feito, pergunto-me inutilmente. Vem a tortura: se tivesse feito tal coisa tudo poderia ser diferente, se tivesse chegado antes no bar, se tivesse, meu amigo da faculdade poderia formar, mas a vida não volta atrás, não tem jeito, só no cinema. Quero estar num filme, quero a manga vermelha, quero metade da barra de chocolate, quero ver o Timão em final de campeonato. Bis, bis. Não quero mais ser bedel, não dou para esse trabalho, essa vigilância burra. Não aguento essas situações limite, de fim da vida, de sofrimento ao quadrado. Desisto, chega. Não sei como vim parar aqui. Engano. Trabalho infame. Agora, como sair de casa, pegar os ônibus? Como livrar-me desses fantasmas, da cabeça virada, das bochechas derretidas no chão quente? Lima Barreto caindo e nós na corda, força total. As serpentinas voando em várias direções. Ufa! Ouço o grito da mãe de J. Daria tudo para não ter mais essas visões, daria tudo para relaxar, respirar, dormir, namorar, andar a esmo, esperar a felicidade chegar de mansinho. Mas não, não acho saída desse inferno. Será que J. vem? Vai atrasar? Comprei duas entradas do cambista. O dia amanheceu azul. Adoro futebol, gritar no meio da turba com J. ao meu lado. Ao Coríntians, o céu, o céu anil e nossa alegria mais pura. Gol! Gol! Gol! Nesse dia, o Timão ganhou de goleada, beleza! Se tivesse chegado a tempo! Ah, meu deus! Yayá, onde está você? Sacanagem você esconder-se assim numa hora dessas. Sonho com Felisburgo, aquelas árvores todas, o cheiro de terra molhada, o fogão a lenha aceso, as panelas de barro fumegantes. Saudades do Jequitinhonha, de você, das noites iluminadas pela lua grande, azul, esburacada. Lugar diferente de São Miguel, bairro de São Paulo, onde cresci. Uma vez, J. viajou comigo. Ele nunca havia saído da cidade. Ficou em êxtase com os banhos de rio, o canto das cigarras, as nuvens de vagalumes, a relva beijada pelo vento. Passado. Agora, carrego um monstro, não há mais cura. Que destino! Diante de mim: apenas o leito interrompido, arrebentado. A navegação impedida. Meu coração aos solavancos anunciando: sou eu o monstro. Perigo, perigo. O sangue imunda minhas mãos. Uma nuvem branca paira. Seguram-me pelos braços. Não há salvação. Cavalos alados? Aproximem-se! Aqui, aqui, neste tufo da mata!

Oriente: Tiradentes
Crescemos lado a lado, Nininha e eu, num predinho de três andares da Cidade Tiradentes. Pouca diferença de idade, cumplicidade extrema. Pai morto cedo demais. Quarenta e poucos anos. Rins extirpados. Anos de diálise. Transplante. Corpo magricela coberto de manchas roxas. Nossa mãe longe, na Mooca, em casa de família. Os passeios restringiam-se às proximidades: mercado, açougue, elevador, esconde-esconde nas escadas. Aos sábados: lanchávamos diante do balcão de fórmica vermelha da padaria. Misto quente com guaraná. Canudinho colorido. Não tínhamos licença de sair do apartamento, brincar na rua, só para escola. Nada de campinho, futebol, amigos. Pipa, só na presença da mãe, aos domingos. Grande dia. A violência do bairro e o medo de nossa mãe enclausurou-nos em cômodos estreitos, iluminados apenas pela televisão. Rainha maior da casa. Anestesia na veia. Dez da noite ninguém mais arriscava o nariz para fora. Na vizinhança, as histórias de estupro proliferavam: um dia um rapaz, no outro uma velha, num outro foi a vez de uma menina de oito anos. Essa nossa vizinha foi atacada por mais de um. Ficou toda machucada. Uma multidão enfurecida seguiu na direção da família de um dos estupradores. Tocaram fogo na casa, mas a policia conseguiu detê-los e proteger os moradores. Tudo por um triz. Não seria justo a família pagar com morte por um dos seus. Mas, nem sempre a vida é justa, aprendemos desde cedo.
*
Numa quarta, dia de feira, vi um homem matar o outro com revólver no maior descaramento. Depois, ainda comprou uma maçã vermelha e saiu com ela nos dentes. Ninguém ousou interferir. Com esses tipos não se mexe. Ele passou do meu lado arrotando a casca. Beliscou meu boné do Coríntians. Tremi. Amarelei de susto. Será que ele também torcia para o Timão? E se fosse de outro time? Paralisado de terror, esperei-o dobrar a rua. Não foi dessa vez, suspirei. Quem cresce num bairro assim sabe: um dia você pode ser o sorteado pela bala perdida ou mesmo, pela intencional. O ódio de alguns é desmesurado. Cidade Tiradentes, nessa época, era terra esquecida. O pior por lá vicejava. Uma aridez entranhava a alma. Meu maior encanto: o balcão de fórmica vermelha da padaria. Estrela do Oriente. Nossa mãe arrumava-nos em gomos para o lanche semanal. Eu e minha irmã guardávamos a mesada para a ocasião. Nosso ritual valia nosso ouro feito de níquel barato. A rotina, os pequenos prazeres, encobriam as ameaças, as atrocidades. Eu sonhava em ter um balcão desses na minha casa, onde teria lanche todos os dias, misto quente, pizza e brigadeiro e doce de leite. Com o salário de advogado clamaria por justiça e compraria lanches para toda vizinhança. Distribuiria as gostosuras detrás do balcão. Design moderno, superfície lisa, brilhante: um espelho. Espelho do futuro. Futuro das maravilhas.
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Em Itaquera, vivia minha avó paterna, Dora. Ela, como minha mãe, trabalhou como doméstica anos a fio. Durante um período frequentou o candomblé e chegou a fazer cabeça e quitanda. Aprendeu sobre as festas, as ervas e jogava búzios para toda vizinhança. Dançava para os orixás e ajoelhava para as santas católicas: Nossa Senhora Aparecida, Santa Rita de Cássia (das causas impossíveis). Meu pai guardava uma imagem de Iemanjá na cômoda ao lado da cama. Perfumado, foi jogar ramalhetes de rosas brancas para ela no mar de Santos e pedir por sua recuperação. Não teve escuta. Rezou para Santa Rita. Não deu mais tempo. Seu destino foi minguar. Não voltou a contemplar o mar, nem a rezar. Vi-o pela última vez na varanda do hospital. Acenou por meia hora e entrou. Foi nossa despedida. Nada serena. Sua doença afastou-nos. Brutal. Sorrateira.
Na família da minha mãe muitos frequentam os evangélicos. Nininha passou anos de cabelo comprimido e botão fechado no pescoço até desistir dos cultos, sufocada por tantos ditames e proibições. Fascinada com os acontecimentos de maio de 68, foi repreendida por ter assistido “Os sonhadores”, do Bertolucci; e também por lido Lima Barreto, “Diário de um hospício”. Começou, como estagiária da faculdade de história, a trabalhar com políticos na assembleia legislativa. Confessou-me como ficava embrulhada ao adivinhar as negociações espúrias, os conchavos indecorosos. Nem todo mundo tem estômago de avestruz. Agora, vive numa montanha russa entre a desilusão e a esperança, pura teimosia. Teimosia das boas.
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Eu luto com vultos. Eles visitam-me dia após dia, noite após noite. Acordo assustado: eles atrás de mim. Querem pegar-me. Não oferecem trégua. Imagens do momento da facada visitam-me, caleidoscópicas, insistentes. Atingiram meu fígado! O sangue jorra. Não entendo. E meu filho e minha esposa? Discussão por trocados, conta de mesa errada. O dono da pizzaria disse que não ia levar desaforo de um negro como eu. Atrocidade. E ainda propagam não existir preconceito no Brasil. Quem fala isso? Branco ignorante, desatento, cego. Fui atacado pelas costas. Covardia. Ódio cego. Tinha acabado de mudar para Ermelino Matarazzo com minha família, depois de ter sido roubado no apartamento onde morava, em Guaianazes. Minha blusa amarela avermelhou. Hoje mata-se por 30 reais, ou porque alguém pisou no pé ou por qualquer outra bobagem. A vida não vale quase nada. Uma tristeza.
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Antes do furo na barriga, tentei tirar minha vida duas vezes. Já seguia no perigo mortal. Na primeira vez, joguei-me diante dos carros numa avenida perto do hospital onde trabalhava. Na segunda, tentei a linha do trem. Nas duas vezes, os incidentes aconteceram no meu trajeto de volta para casa. Safei-me. Quantas vidas tem um homem? Trabalhava desgostoso por não ver meu filho crescer, exausto de tanto trabalho, horas de condução, pouco sono, dinheiro minguado. Mais de uma vez, quebrei a casa de tanto nervoso, irritação, tensão. Não conseguia fazer o cálculo das medicações acumuladas na fila das minhas tarefas na enfermaria. Tive de parar a faculdade de direito. Muitas barreiras ergueram-se ao mesmo tempo, e tudo isso culminou no roubo de meu apartamento. Levaram tudo: televisão, ventilador, aparelho de som, computador, micro-ondas e até meu colchão, uma ousadia. Foi a gota d’água. Explodi. Fui homem bomba de mim mesmo. Não tinha com quem conversar, não queria levar mais problemas para minha esposa, não tinha amigos, não tinha ninguém, apenas medo de deboche, muito medo. O balcão de fórmica vermelho desaparecido. Nininha sem saber como ajudar, exasperada. E a Estrela do Oriente? E nosso espelho de fórmica? As gostosuras? As maravilhas? Espera-se muito de um homem. Acuado, não tive para onde correr, tentei fugir do meu jeito.

Dos vultos não tenho como fugir. Sobra-me encontrar uma lança. Fazer guerra. Caçá-los.

Fonte: http://outraspalavras.net/

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