David Harvey: ser zapatista não é endeusar Marcos
Vinte anos
depois do levante no México, geógrafo avalia: movimento pode transformar
esquerda, desde que não o mistifiquemos…
Pesquisador
de revoltas recentes ao redor do mundo, o geógrafo britânico David Harvey
reconhece a influência dos zapatistas nos novos levantes que têm surgido. Mas
ele pondera que algumas das suas características são ignoradas pela esquerda em
diversos países.
O geógrafo
concedeu uma entrevista à reportagem de CartaCapital, na qual fala sobre o
legado do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que há vinte anos
tomou o controle de parte da pobre província mexicana de Chiapas.
Harvey
destaca as novidades trazidas pelo levante, como a ênfase no direito das
mulheres. Ele, porém, se diz “cansado” das pessoas acharem que a revolução
“sairá de Chiapas”. Para o geógrafo, a esquerda deve achar uma forma própria de
se organizar na cidade. Leia abaixo as falas do geógrafo sobre o levante:
Movimento indígena com
características ocidentais
O zapatismo
é retratado às vezes como somente um movimento indígena. Mas ele não é isso. É
um movimento indígena com caraterísticas ocidentais. Um movimento horizontal,
mas com formas militares hierarquizadas. Ou seja, é uma forma híbrida.
Obviamente
o zapatismo teve um impacto muito grande na esquerda. A esquerda mundial ficou
muito impressionada com suas formas horizontais de governança, mas falhou em
reconhecer que a parte militar dessa organização a modificou muito.
Direitos das mulheres
Os
zapatistas abordaram muitas questões importantes para essas sociedades
(indígenas), como os direitos das mulheres, de uma maneira muito importante.
Foi muito excitante ver a questão de gênero, em toda sua dimensão, ser
propriamente abordada e articulada pelos zapatistas. [Diversas das figuras mais
proeminentes do movimento eram mulheres e, logo após o levante, os zapatistas
fizeram uma serie de reivindicações específicas em relação a elas].
Os direitos
das mulheres estavam arraigados muito neste movimento, o que não é
necessariamente verdade em outras populações indígenas e na esquerda. Mais uma
vez, nessa questão, eles tinham características especiais.
Teologia da libertação
O movimento
era uma combinação brilhante de pensamento indígena com perspectivas do
iluminismo ocidental. Particularmente, havia uma influência de doutrinas do
catolicismo, como dos franciscanos [conjunto de ordens católicas com forte
presença na América Latina]. Eu acho que foi a expressão de ideias como
respeito e dignidade, vindas de Chiapas, que agarraram a imaginação do mundo.
Foi uma
combinação peculiar, onde a posição do subcomandante Marcos foi extremamente
crucial. Não só em termos de organizar a parte militar, mas também de apresentar
suas ideias ao mundo, que muito dificilmente poderiam ser entendidas. Então,
quando ele falava de respeito e dignidade, ele estava em uma longa história da
teologia da libertação, por exemplo. E as pessoas responderam a isso.
Ação fora do Estado
Havia
também a característica de que aquele não era um partido político, não queria
tomar o poder do Estado. Os zapatistas só queriam autonomia, e isso foi
atraente para muitas pessoas ao redor do mundo. Eles estavam, desta forma, se
protegendo da exploração. Quando se faz isso, você mantém-se fora dos limites,
mas isso também gera muitos problemas. Eles precisam de recursos, eles precisam
de armas, é uma história muito complicada.
A revolução não sairá de Chiapas
As vezes eu
fico um pouco cansado porque em partes da Europa e da América do Norte as
pessoas acham que a revolução vai sair de Chiapas e salvar a nós todos. Meu
argumento é que a gente não pode simplesmente tirar aquilo do México e trazer
para cá, nós temos de inventar nossas próprias maneiras de fazer política, de
acordo com as nossas próprias circunstâncias.
Nós não
estamos vivendo em Chiapas, nós estamos vivendo em Pittsburgh, em Detroit, em
São Paulo. E a gente precisa pensar nas nossas próprias formas de se organizar
em grandes cidades como essas.
Fonte: http://outraspalavras.net/
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