Rosa Parks em Itaquera
No dia 1º de dezembro de 1955, no centro da cidade de
Montgomery, estado do Alabama, Rosa Parks, uma costureira de 42 anos, subiu em
um ônibus a fim de voltar pra casa após mais um dia de trabalho. Ela
acomodou-se em um assento para pessoas “de cor” e após três paradas, as quatro
primeiras fileiras reservadas aos brancos já estavam lotadas. O motorista James
Blake mandou que ela e os outros três passageiros negros que estavam ao seu
lado se levantassem para dar lugar aos brancos que entravam.
Nada de mais, se tivermos em conta que no Alabama, assim
como os outros estados do sul dos Estados Unidos, vigiam as leis segregacionistas
de Jim Crow que exigiam que escolas e locais públicos, incluindo trens e
ônibus, tivessem instalações separadas para brancos e negros. Na prática, os
negros, mesmo que pudessem pagar, simplesmente não podiam frequentar os mesmos
restaurantes ou lojas, usar os mesmos banheiros ou beber água nos mesmos
bebedouros que os brancos.
Contraditoriamente, os Estados Unidos viviam o auge do
chamado fordismo, modelo de desenvolvimento que integrou produção e consumo de
massa, elevou o padrão material da classe trabalhadora estadunidense e absorveu
parte dos conflitos classistas por meio de políticas sociais. Em cidades
industriais como Chicago ou Detroit, por exemplo, os trabalhadores negros
recém-chegados do sul formavam a espinha dorsal do orgulhoso operariado fordista.
Apesar da persistente discriminação no acesso às qualificações industriais mais
complexas, eles eram sindicalizados, recebiam altos salários e começavam a
enviar seus filhos para as universidades.
Seguindo os avanços econômicos, uma onda politicamente
progressista insinuava-se nos Estados Unidos. Em 1954, a segregação escolar
promovida pelo Estado havia sido declarada inconstitucional pela Suprema Corte
americana. O espírito do tempo favorecia atitudes ousadas e Rosa Parks
recusou-se a ceder seu lugar no ônibus. O motorista chamou a polícia que a
prendeu, deflagrando, assim, o mais importante movimento social da história
recente dos Estados Unidos.[1]
O movimento dos direitos civis dos negros, uma campanha
nacional em defesa da igualdade racial que contou com a participação
entusiasmada de milhares de ativistas, negros e brancos, notabilizou-se por
seus métodos não-violentos. A mecânica era simples: um jovem negro entrava, por
exemplo, em uma lanchonete e pedia algo. O proprietário branco recusava-se a
atendê-lo. Após uma sessão de gritos, insultos e humilhações, alguém tentava o
retirar à força. O jovem, então, sentava-se no chão. Ao chegar, a polícia
prendia-o por distúrbio da ordem pública. Em seguida, os demais ativistas
iniciavam uma campanha para libertá-lo da prisão. Isto não apenas fortalecia a
repercussão da propaganda igualitarista pelas cidades como atraía novos
militantes.
A eficiência deste método revela o nível da opressão que
vitimava os negros nos Estados Unidos. Desde que não estivesse lá a trabalho, a
simples presença de um negro em uma lanchonete para brancos já era considerada
uma ofensa suficientemente grave para justificar a violência policial. O
curioso é que, a rigor, um jovem negro que entrasse em uma loja em Montgomery e
pedisse para ser atendido, não cometia crime algum. Afinal, as leis
segregacionistas referiam-se às escolas e ao sistema de transporte. Daí a
necessidade de prendê-los por “perturbação da ordem”. Ou seja, o fundamento da
prisão era simplesmente o racismo.
Toda vez que leio ou assisto alguma notícia a respeito dos
atuais “rolezinhos” em shoppings paulistanos, lembro-me imediatemente da luta
dos negros nos Estados Unidos. De fato, há algo da altivez e da bravura de Rosa
Parks na atitude irreverente e desafiadora destes jovens das periferias. A
“primeira dama dos direitos civis”, como ficou conhecida, parece ter se mudado
pra Itaquera. Da mesma maneira, sinto o cheiro fétido das leis de Jim Crow na
repressão dos empresários e da PM aos encontros organizados pelo Facebook.
Ao fim e ao cabo, que crime estes jovens cometeram? O que
pode justificar que eles sejam barrados nas portas dos centros comerciais,
revistados, imobilizados, ameaçados, agredidos e, finalmente, presos pela PM?
As razões só podem ser o racismo e o ódio de classe que transformam a vida dos
moradores das periferias em um verdadeiro calvário.
Na realidade, estes encontros condensam aspectos
conflitantes do modelo de (sub)desenvolvimento pilotado pela burocracia
lulista. Por um lado, temos a desconcentração da renda entre os que vivem dos
rendimentos do trabalho cujo resultado foi a ampliação do acesso dos
trabalhadores pobres e precarizados, especialmente, os mais jovens, ao
crédito.
Apesar da deterioração das condições de trabalho e da dura
realidade dos baixos salários, a base da pirâmide da renda composta
majoritariamente por negros e não-brancos progrediu mais rapidamente que os
estratos médios, alterando a norma social de consumo. Atualmente, jovens pobres
conseguem comprar um “Mizunão” de mil reais em várias parcelas: “Por enquanto a
ostentação está só na imaginação. Só tenho um Mizuno, que custou R$ 1000. Eu
paguei em prestação, porque na lata (à vista) não é fácil não” (Anderson da
Silva, 18 anos, ‘Rolezinho’ nas palavras de quem vai, 15/01/2014, G1). O tênis é um signo distintivo de
trabalho duro e de progresso material calçado por uma moçada com um pouco mais
de dinheiro no bolso e querendo se divertir. Aliás, estes jovens cresceram
enquanto os centros comerciais das periferias eram construídos, daí sua
intimidade com este ambiente.
Por outro, o atual modelo baseia-se em um tipo de acumulação
por desapossamento que privatizou o solo urbano ao transformá-lo em uma
inesgotável fonte de superlucros capitalizados pelos bancos e pelas
construtoras.[2] Além disso, esta verdadeira financeirização da terra está
gentrificando bairros populares ao deslocar estes mesmos grupos
recém-promovidos ao consumo para regiões mais distantes.[3]
Do movimento destas placas tectônicas surgiu o recente
terremoto que assusta empresários e autoridades governamentais. Os desejos de
lazer e de consumo de milhões de jovens recém-chegados ao mercado de trabalho
choca-se com a inexistência de espaços públicos nas periferias e com
instituições plasmadas por uma soma de racismo e ódio de classe. A acumulação
por desapossamento aprofunda a segregação espacial, exacerbando a discriminação
racial:
“Aqui na nossa quebrada (em Guaianazes) não tem muita opção
de lazer para os jovens. Não tem uma quadra da hora, uma praça pra gente se
reunir, não tem nada” (Daniel de Souza, 18 anos).
“O maior defeito do Jardim Nazaré é não ter espaço para o
lazer. Falta lugar pra gente se encostar e ninguém discriminar. Se a gente fica
na praça à noite, eles vão achar que a gente está usando drogas” (Caique Vinicius, 19 anos).
Assim, importa menos a aparente despolitização dos encontros
do que a revelação da face racista do atual modelo de (sub)desenvolvimento:
“A gente foi pra se divertir, ficar com as meninas e
conhecer outras pessoas. Mas a polícia chegou com cassetete. (…). Chegou com
agressão pra gente tudo ir embora, bala de borracha, gás. Eu achei errado. Se
fosse numa conversa como gente grande, agente poderia chegar num acordo,
colocar um lugar pra fazer esses ‘rolês’” (Lucas Lima, 17 anos).
Diante deste tipo de experiência, a politização dos
rolezinhos não deve tardar. A propósito, o simples fato de ir ao shopping em
grupo já é um ato inadvertidamente político. Afinal, esses jovens estão se
reapropriando de espaços que lhes foram espoliados pela privatização da cidade.
Na realidade, observamos um desdobramento previsível do processo aberto em
junho passado e enraizado no atual esgotamento do ciclo de crescimento com
certa redistribuição de renda. A desaceleração econômica tem ajudado a
precipitar a transformação da inquietação social das periferias em indignação
com a maneira deplorável como os jovens negros são tratados no país.
No final do ano, esta juventude decidiu testar os limites do
atual modelo, esbarrando acidentalmente na tática da não-violência que os
negros estadunidenses empregaram nos anos 1950 e 1960. Sabemos como a
resiliência do racismo na América – expressa, por exemplo, no assassinato de
Martin Luther King – ajudou a radicalizar parte do movimento dos direitos civis
e a criar o partido Black Panther.[4] Hoje, ainda é possível identificar a serenidade de Rosa Parks
nos semblantes dos presos em Itaquera. Enfim, eles desejam apenas ser encarados
com dignidade, nem que para isso ostentem roupas de marca e acessórios caros.
Amanhã, contudo, pode ser que o fantasma de Huey P. Newton seja visto dando um
rolezinho pela Faria Lima.
[1] Em sua autobiografia, Rosa Parks diz curiosamente que,
mesmo décadas após o boicote aos ônibus de Montgomery, movimento que surgiu por
conta de seu ato de insubmissão, ainda muitos americanos acreditavam que ela
não se levantara, pois estava muito cansada após um dia extenuante de trabalho.
No entanto, a atitude de Rosa Parks foi planejada minuciosamente pela
Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), uma
organização criada em 1909 pelo sociólogo negro W.E.B. Du Bois, autor de
clássicos das ciências sociais estadunidenses, tais como The Study of the Negro
Problems (1898), The Philadelphia Negro (1899), The Souls of Black Folk (1903)
e Black Reconstruction in America (1935). Para mais detalhes, ver Rosa Parks
(com Jim Haskins), My Story (Nova Iorque, Puffin, 1999).
[2] Para mais detalhes sobre o conceito de “acumulação por
desapossamento”, ver David Harvey, O novo imperialismo (São Paulo, Loyola,
2004).
[3] Veja o caso de Itaquera, por exemplo, onde a construção do
estádio do Corinthians e os investimentos em mobilidade urbana decorrentes da
copa do mundo inflacionaram os aluguéis e os valores dos serviços na região.
Para mais detalhes, ver Luiz Henrique de Toledo, “Quase lá: a copa do mundo no
Itaquerão e os impactos de um megaevento na sociabilidade torcedora”. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano 19, n. 40, p. 149-184, jul./dez. 2013.
[4] Posso apostar que outro “black” deverá aparecer nos
shoppings da cidade caso a repressão aos rolezinhos insista em perdurar.
***
Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e
ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br
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