terça-feira, 13 de outubro de 2009

Doze teses sobre o antipoder - John Holloway



Doze teses sobre o antipoder - John Holloway

1. O ponto de partida é a negatividade
Começamos com o grito, não com o verbo. Diante da mutilação das vidas humanas pelo capitalismo, um grito de tristeza, um grito de horror, um grito de raiva, um grito de negação: NÃO!

O pensar, para dizer a verdade do grito, tem que ser negativo. Não queremos entender o mundo sem negá-lo. A meta da teoria é conceitualizar o mundo negativamente, não como algo separado da prática, mas como um momento da prática, como parte da luta para mudar o mundo, para fazer dele um lugar digno da humanidade.

Mas, depois de tudo o que passou, como podemos inclusive começar a pensar em mudar o mundo?

2. Não se pode criar um mundo digno por meio do Estado
Durante a maior parte do século passado, os esforços para criar um mundo digno da humanidade se enfocaram no Estado e na idéia de conquistar o poder estatal. As polêmicas principais (entre “reformistas” e “revolucionários”) eram acerca de como conquistar o poder estatal, seja pela via parlamentar ou pela via extra-parlamentar. A história do século XX sugere que a questão de como ganhar o poder não era tão importante. Em nenhum dos casos a conquista do poder estatal logrou realizar as mudanças que os militantes esperavam. Nem os governos reformistas nem os governos revolucionários lograram mudar o mundo de forma radical.

É fácil acusar todas as lideranças destes movimentos de trair os movimentos que encabeçavam. O fato de que tenha havido tantas traições sugere, entretanto, que o fracasso dos governos radicais, socialistas ou comunistas tem raízes muito mais profundas. A razão pela qual o Estado não pode ser usado para levar a cabo uma mudança radical na sociedade é que o próprio Estado é uma forma de relações sociais capitalistas. A existência mesma do Estado como uma instância separada da sociedade significa que, seja qual for o conteúdo de suas políticas, ele participa ativamente no processo de separar as pessoas do controle de sua própria vida. O capitalismo é simplesmente isso: a separação das pessoas de seu próprio fazer. Uma política que está orientada em direção ao Estado reproduz inevitavelmente dentro de si mesma o mesmo processo de separação, separando os dirigentes dos dirigidos, separando a atividade política séria da atividade pessoal frívola. Uma política orientada em direção ao Estado, longe de conseguir uma mudança radical da sociedade, conduz à subordinação progressiva da oposição à lógica do capitalismo.

Agora podemos ver que a idéia de que o mundo poderia ser mudado por meio do Estado era uma ilusão. Temos a boa sorte de estar vivendo o fim dessa ilusão.

3. A única forma de conceber uma mudança radical hoje não é como conquista do poder, mas como dissolução do poder
A revolução é mais urgente do que nunca. Os horrores que surgem da organização capitalista da sociedade se tornam cada vez mais intensos. Se a revolução através da conquista do poder estatal se revelou como ilusão, isso não quer dizer que devemos abandonar a idéia de revolução. Mas é necessário concebê-la em outros termos: não como a tomada do poder, mas como a dissolução do poder.

II

4. A luta pela dissolução do poder é a luta pela emancipação do poder-fazer (potentia) do poder-sobre (potestas)
Para começar a pensar em mudar o mundo sem tomar o poder, deve-se fazer uma distinção entre o poder-fazer (potentia) e o poder-sobre (potestas).

Qualquer tentativa de mudar a sociedade envolve o fazer, a atividade. O fazer, por sua vez, envolve a capacidade de fazer, o poder-fazer. Muitas vezes usamos a palavra “poder” nesse sentido, como algo bom, como quando uma ação junto com outros (uma manifestação ou inclusive um bom seminário) nos dá uma sensação de poder. O poder neste sentido tem seu fundamento no fazer: é o poder-fazer.

O poder-fazer é sempre social, sempre parte do fluxo social do fazer. Nossa capacidade de fazer é produto do fazer de outros e cria as condições para o fazer futuro de outros. É impossível imaginar um fazer que não esteja integrado de uma forma ou outra ao fazer de outros, no passado, no presente ou no futuro.

5. O poder-fazer se transforma no poder-sobre quando se rompe o fazer
A transformação do poder-fazer em poder-sobre implica a ruptura do fluxo social do fazer. Os que exercem o poder-sobre separam o feito do fazer de outros e o declaram seu. A apropriação do feito é ao mesmo tempo a apropriação dos meios de fazer, e isso permite aos poderosos controlar o fazer dos fazedores. Os fazedores (os humanos, entendidos como ativos) estão separados assim de seu feito, dos meios de fazer e do próprio fazer.

Como fazedores, estão separados de si mesmos. Esta separação, que é a base de qualquer sociedade na qual alguns exercem poder sobre outros, chega ao seu ponto mais alto no capitalismo.

Rompe-se o fluxo social do fazer. O poder-fazer se transforma em poder-sobre. Os que controlam o fazer de outros aparecem agora como os Fazedores da sociedade, e aqueles cujo fazer está controlado por outros se tornam invisíveis, sem vez, sem rosto. O poder-fazer não aparece como parte de um fluxo social, mas existe na forma de um poder individual. Para a maioria das pessoas o poder-fazer está transformado em seu contrário, a impotência, ou poder de fazer o que está determinado por outros. Para os poderosos, o poder-fazer se transforma em poder-sobre, o poder de dizer ao outro o que eles têm que fazer, e, portanto, em uma dependência com respeito ao fazer de outros.

Na sociedade atual, o poder-fazer existe na forma de sua própria negação, como poder-sobre. O poder-fazer existe no modo de ser negado. Isto não quer dizer que deixe de existir. Existe, mas existe como negado, em uma tensão antagônica com sua própria forma de existência como poder-sobre.

6. A ruptura do fazer é a ruptura de cada aspecto da sociedade, cada aspecto de nós mesmos
A separação do feito e dos fazedores significa que as pessoas já não se relacionam entre si como fazedores, mas como proprietários (ou não proprietários) do feito (visto já como uma coisa divorciada do fazer). As relações entre as pessoas existem como relações entre coisas, e as pessoas existem não como fazedoras, mas como portadoras passivas das coisas.

Esta separação dos fazedores do fazer e, portanto, deles mesmos, está discutida na literatura em termos estreitamente relacionados entre si: alienação (o jovem Marx), fetichismo (o velho Marx), reificação (Lukács), disciplina (Foucault) ou identificação (Adorno). Todos esses termos estabelecem claramente que o poder-sobre não pode ser entendido como algo externo a nós mesmos, mas que ele permeia cada aspecto de nossa existência. Todos esses termos se referem a um enrijecimento da vida, uma contenção do fluxo social do fazer, um obscurecimento das possibilidades.

O fazer está convertido em ser: isto é o núcleo do poder-sobre. Enquanto o fazer significa que somos e não somos, a ruptura do fazer arranca o “e não somos”. O que nos resta é simplesmente “somos”: identificação. O “e não somos” é esquecido ou se trata como puro sonho. A possibilidade nos é arrancada. O tempo se homogeneíza. O futuro é agora a extensão do presente, o passado o antecedente do presente. Todo fazer, todo movimento, está contido dentro da extensão do que é. Pode ser lindo sonhar com um mundo digno da humanidade, mas isto é nada mais que um sonho. O regime do poder-sobre é o regime do “assim são as coisas”, o regime da identidade.

7. Participamos na ruptura de nosso próprio fazer, na construção de nossa própria subordinação
Como fazedores separados de nosso próprio fazer, recriamos nossa própria subordinação. Como trabalhadores, produzimos o capital que nos subordina. Como docentes universitários, jogamos um papel ativo na identificação da sociedade, na transformação do fazer em ser. Quando definimos, classificamos ou quantificamos, ou quando sustentamos que a meta da ciência social é entender a sociedade tal como ela é, ou quando pretendemos estudar a sociedade objetivamente, como se fosse um objeto separado de nós mesmos, participamos ativamente na negação do fazer, na separação de sujeito e objeto, no divórcio entre fazedor e feito.

8. Não há nenhuma simetria entre o poder-fazer e o poder-sobre
O poder-sobre é a ruptura e negação do fazer. É a negação ativa e repetida do fluxo social do fazer, do nós que nos constituímos através do fazer social. Pensar que a conquista do poder-sobre pode levar à emancipação do que nega é absurdo.

O poder-fazer é social. É a constituição do nós, a prática do reconhecimento mútuo da dignidade.

O movimento do poder-fazer contra o poder-sobre não deve ser concebido como “contra-poder” (termo que sugere uma simetria entre poder e contra-poder), mas como anti-poder (termo que, para mim, sugere uma assimetria total entre o poder e nossa luta).

III

9. Parece que o poder-sobre nos penetra tão profundamente que a única solução possível é através da intervenção de uma força externa. Esta não é nenhuma solução
Não é difícil chegar a conclusões muito pessimistas sobre a sociedade atual. As injustiças e a violência e a exploração nos gritam, mas entretanto parece que não há saída possível. O poder-sobre parece penetrar tão fundo em cada aspecto de nossas vidas que é difícil imaginar a existência de “massas revolucionárias”. No passado, a penetração profunda da dominação capitalista levou muitos a ver a solução em termos de liderança de um partido de vanguarda, mas resultou que isto não foi nenhuma solução, já que simplesmente substituiu-se uma forma de poder-sobre por outra.

A resposta fácil é a desilusão pessimista. O grito inicial de raiva ante os horrores do capitalismo não está abandonado, mas aprendemos a viver com ele. Não nos tornamos aficionados pelo capitalismo, mas aceitamos que não há nada a fazer. A desilusão implica cair na identificação, aceitar que o que é, é. Implica participar, pois, na separação do fazer do feito.

10. A única forma de romper o círculo aparentemente fechado do poder é vendo que a transformação do poder-fazer em poder-sobre é um processo que implica necessariamente a existência de seu contrário: a fetichização implica a anti-fetichização
Na maioria das vezes, discute-se a alienação (fetichismo, reificação, disciplina, identificação, etc.) como se fosse um fato consumado. Fala-se das formas capitalistas de relações sociais como se tivessem sido estabelecidas na aurora do capitalismo para seguir existindo até que o capitalismo seja substituído por outro modo de produção. Em outras palavras, faz-se uma separação entre constituição e existência: localiza-se a constituição do capitalismo no passado histórico, e assume-se que a sua existência atual é estável. Este enfoque conduz necessariamente ao pessimismo.

Se, ao contrário, vemos a separação do fazer e do feito não como algo terminado, mas como um processo, o mundo começa a se abrir. O próprio fato de que falamos em alienação significa que a alienação não pode ser total. Se a separação, alienação (etc.) é entendida como processo, isto implica que o seu curso não está predeterminado, que a transformação do poder-fazer em poder-sobre sempre está aberta, sempre está em questão. Um processo implica um movimento de devir, implica que o que está em processo (a alienação) é e não é. A alienação, então, é um movimento contra sua própria negação, contra a anti-alienação. A existência da alienação implica a existência da anti-alienação. A existência do poder-sobre implica a existência do anti-poder-sobre, ou, em outras palavras, o movimento de emancipação do poder-fazer.

O que existe na forma de sua negação, o que existe no modo de ser negado, existe realmente, apesar de sua negação, como negação do processo de negação. O capitalismo está baseado na negação do poder-fazer da humanidade, da criatividade, da dignidade: mas isso não quer dizer que isto deixa de existir. Como mostraram os zapatistas, a dignidade existe apesar de sua negação. O poder-fazer existe também: não como ilha em um mar de poder-sobre, mas na única forma em que pode existir, como luta contra sua própria negação. A liberdade também existe, não como a apresentam os liberais, como algo independente dos antagonismos sociais, mas na única forma em que pode existir em uma sociedade caracterizada por relações de dominação, como luta contra essa dominação.

A existência real e material do que existe na forma de sua própria negação é a base da esperança.

11. A possibilidade de mudar a sociedade radicalmente depende da força material do que existe no modo de ser negado
A força material do negado pode ser vista de diferentes maneiras.

Em primeiro lugar, pode-se ver na infinidade de lutas que não têm como meta ganhar o poder sobre outros, mas simplesmente a afirmação de nosso poder-fazer, nossa resistência contra a dominação por outros. Estas lutas tomam muitas formas diferentes, desde a rebelião aberta até lutas para ganhar ou defender o controle sobre o processo de trabalho ou o acesso ou adequação a serviços de saúde, ou a afirmação de dignidade mais fragmentadas e muitas vezes silenciosas dentro do lar. A luta pela dignidade, pelo que está negado pela sociedade atual, pode ser vista também em muitas formas que não são abertamente políticas, na literatura, na música, nos contos de fadas. A luta contra a inumanidade é onipresente, já que é inerente a nossa existência como humanos.

Em segundo lugar, a força do negado pode ser vista na dependência do poder-sobre com respeito àquilo que nega. A existência de pessoas cujo poder-fazer existe como capacidade de dizer a outros o que estes têm que fazer sempre depende do fazer de outros. Toda a história da dominação pode ser vista como a luta por parte dos poderosos para libertar-se de sua dependência dos impotentes. A transição do feudalismo ao capitalismo pode ser vista desta maneira, não apenas como a luta dos servos para libertar-se dos senhores, mas como a luta dos senhores para libertar-se dos servos, através da conversão de seu poder em dinheiro e assim em capital. A mesma busca de liberdade com respeito aos trabalhadores pode ser vista na introdução da maquinaria, ou na conversão massiva de capital produtivo em capital dinheiro, que joga um papel tão importante no capitalismo contemporâneo. Em cada caso, a fuga dos poderosos com respeito aos fazedores é em vão. Não há forma como o poder-sobre possa ser outra coisa senão a metamorfose do poder-fazer. Não há como os poderosos escaparem de sua dependência em relação aos impotentes.

Esta dependência se manifesta, em terceiro lugar, na instabilidade dos poderosos, na tendência do capital à crise. A fuga do capital com relação ao trabalho, através da substituição de trabalhadores por máquinas ou por sua conversão em capital dinheiro, defronta o capital, com sua dependência final em relação ao trabalho (isto é, sua capacidade de converter o fazer humano em trabalho abstrato produtor de valor), na forma de queda das taxas de lucro. O que se manifesta na crise é a força do que o capital nega, quer dizer, o poder-fazer não subordinado.

12. A revolução é urgente, mas incerta, uma pergunta e não uma resposta
As teorias marxistas ortodoxas buscaram capturar a certeza para o lado da revolução, com o argumento de que o desenvolvimento histórico conduziria inevitavelmente à criação de uma sociedade comunista. Esta tentativa é fundamentalmente errônea, já que não pode haver nenhuma certeza na criação de uma sociedade auto-determinante. A certeza só pode estar do lado da dominação. A certeza pode ser encontrada na homogeneização do tempo, no congelamento do fazer em ser. A auto-determinação é inerentemente incerta. A morte das velhas certezas é uma libertação.

Pelas mesmas razões, a revolução não pode ser entendida como uma resposta, mas como uma pergunta, como uma exploração da realização da dignidade. Perguntando caminhamos.

Traduzido por Daniel Cunha de Contrapoder: una introducción, Colectivo Situaciones

NOTA DO GRUPO FIM DA LINHA: Este texto pode ser considerado uma versão resumida do livro Mudar o mundo sem tomar o poder. Para maior desenvolvimento dos argumentos, ver o livro citado (ed. Boitempo)

Fonte: http://deriva.com.br/

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