terça-feira, 6 de outubro de 2009

Ghandi e os Israelenses

Ghandi e os Israelenses

Ramachandra Guha (The Hindu, 3/10/2009) e 5/10/2009, Al-Manar, Líbano pelo Viomundo

O grande líder nacionalista do Vietnã, Ho Chi Minh, comentou certa vez, em tom de brincadeira, que se Gandhi tivesse de combater os franceses, numa semana desistiria da não-violência. Lembrei a frase de Ho Chi Minh ao ler matéria sobre discurso sobre o oeste da Ásia, feito pelo subsecretário de Defesa dos EUA, Paul Wolfowitz. Wolfowitz, um dos principais estrategistas ativos em Washington, é considerado homem culto e de boas leituras, muito mais que seus ex-chefes Donald Rumsfeld e George W. Bush. Falando aos estudantes da Universidade de Georgetown, Wolfowitz disse que o terrorismo é o principal obstáculo para um acordo de paz na Palestina. E acrescentou: “Se os palestinos adotassem a via pacifista de Gandhi, conseguiriam importantes mudanças, em pouco tempo. As manifestações pacíf icas têm enorme poder.”

É argumento esperto; para muitos, diabólico. Esse argumento visa a afastar os holofotes da violência dos israelenses, de quem e da qual Wolfowitz não disse palavra; é como se a violência dos israelenses não existisse. Não há como defender os homens-bomba, mas os palestinos poderiam argumentar que a intifada original, no final dos anos 80s, foi, na maior parte, movimento de indivíduos em manifestação conjunta. Claro que nada havia ali de Ghandiano, mas a violência avançou, no máximo, até pedras jogadas contra blindados. E a intifada levou às conversações de paz de Oslo, mas não pôs fim à ocupação e com certeza não impediu que se construíssem novas colônias israelenses nos territóri os ocupados. Sempre há grupos fundamentalistas palestinos que advogam o emprego da violência – e afinal ganharam uma credibilidade que não tinham, depois das ações de Israel, do massacre de Gaza e do apoio dos EUA àquelas práticas, elas sim, violentíssimas.

Wolfowitz espertamente referiu-se a Gandhi – mas acabou devorado pela própria esperteza. De fato, faltou esperteza a Wolfowitz. Duvido que ele saiba, por exemplo, que Gandhi falou duramente contra as terríveis consequências do terrorismo judeu (não árabe) na Palestina.

Foi no verão de 1947, quando sionistas armados vagavam pelo interior, aterrorizando os camponeses palestinos. Quando um repórter da Agência Reuters perguntou-lhe “Qual a solução para o problema palestino?”, Gandhi respondeu: “O problema é quase insolúvel. Se eu fosse judeu, diria aos judeus: não cometam a loucura de recorrer ao terrorismo, porque assim vocês destroem a própria causa de vocês, que, de outro modo, seria causa limpa e defensável.” Gandhi aconselhou os judeus a “reunir-se com os árabes, associá-los à causa dos judeus europeus perseguidos na Europa, em vez de confiar em britânicos ou em norte-americanos ou, de fato, em vez de contar com qualquer tipo de ajuda de outros povos que não os descendentes de Jeová.”

Agora, Wolfowitz aconselha não-violência aos palestinos. Talvez não saiba, tampouco, que Gandhi, um dia, aconselhou não-violência aos judeus.

Foi em 1938, quando começou a emigração em massa de judeus europeus para a Terra Santa, movimento por trás do qual Gandhi percebeu “a sombra das armas inglesas”. A emigração em massa disseminou conflitos por toda a Região.

Comentando esse processo, Gandhi repetiu que os judeus só conseguiriam fixar-se na Palestina “se conquistassem a boa-vontade dos árabes”. E acrescentou: “Há centenas de modos pelos quais se pode argumentar com os árabes. Condição indispensável para qualquer desses argumentos, é que os judeus dispensem a ajuda das baionetas inglesas.” Bom meio para que os judeus consigam parlamentar com os árabes é “prometer-lhes satyagraha [prometer lutar contra todas as injustiças, mantendo-se fiel ao direito natural]; prometer-lhes que os judeus se atirarão ao Mar Morto, antes de um judeu levantar um dedo para ferir um árabe”.

Gandhi explicou, naquela ocasião, que “não estou defendendo os excessos dos árabes. Preferiria que os árabes tivessem optado pela via da não-violência, também na resistência contra o que consideram ser – e é – ocupação inadmissível das terras dos árabes. Mas segundo os cânones aceitos por todos sobre o certo e o errado, nada se pode dizer contra a resistência árabe face a inimigo tão imensamente mais poderoso.”

A “ocupação inadmissível” continua. E continua a resistência árabe, sempre contra o mesmo inimigo “tão imensamente mais poderoso”. Quase 55 anos são passados de conflito praticamente ininterrupto, com horrendo custo em vidas humanas. O conflito já degradou e desmoralizou todos os combatentes. Onde buscar alguma solução para o conflito palestino? É praticamente impossível não ver que não haveria problema hoje, se os judeus tivessem ouvido as palavras de Mahatma Gandhi, pessoalmente, nos anos 30 e 40.

De qualquer modo, tudo isso é passado. Como se pode encarar o presente e andar adiante? Caberia aos palestinos seguir o conselho de Wolfowitz e oferecer satyagraha aos israelenses? Mas uma nova intifada, mais firmemente comprometida com os princípios da não-violência, conseguirá persuadir os israelenses a pôr fim à ocupação?

Não conheço o Oeste da Ásia, nunca estive lá. Como a vasta maioria dos leitores do jornal The Hindu, só sei, daquela região, o que vemos nas imagens sangrentas que a televisão divulga. Não sei se os israelenses parecem-se mais com os britânicos na Índia, ou com os franceses na Indochina. Não sei se responderiam à via que Gandhi sugere ou se, afinal, enfrentarão resposta como a que Ho Chi Minh deu aos franceses.

De uma coisa, contudo, tenho certeza: os sofrimentos pelos quais passam hoje os palestinos não seriam tantos nem tão prolongados, não fosse o massivo apoio que o ocidente dá ao Estado de Israel.

Os judeus chegaram à Palestina à sombra das baionetas britânicas. Lá se estabeleceram e firmemente consolidaram sua posição, em parte pelo próprio esforço, trabalho, determinação; e em parte, também, graças à ajuda dos tanques e dos teleguiados norte-americanos. O que quer que tenham recebido de Jeová foi fortemente suplementado pelo que recebem dos EUA.

Ninguém, em sã consciência deixará de condenar os homens-bomba ou deixará de lutar para impedir que prossigam nesse tipo de luta. Gandhi também, como todos; e nenhuma diferença faz que se imolem em nome da fé. (”Nenhum movimento de fé jamais exigirá a contribuição de baionetas e explosivos” – disse Gandhi aos primeiros colonos judeus, em 1938.) Um Gandhi dos nossos dias também diria aos palestinos que abandonem as armas, em favor de atos de desobediência civil. Nisso, Wolfowitz tem razão.

Mas Wolfowitz erra, porque não diz que, para que alguma paz justa seja possível na Palestina, é indispensável que os israelenses também abandonem as táticas de guerra e violência; que se reúnam com os palestinos para parlamentar; que se apresentem desarmados e de mãos limpas; só assim poderão conquistar a boa vontade dos palestinos. E, sempre, antes de tudo: que os israelenses suspendam a construção de novas colônias e façam reverter à situação inicial as já existentes; nada justifica que Israel construa em terra palestina.

Mas o governo de Israel só dá ouvidos ao governo dos EUA –, e tantas vezes, nem a ele. Difícil imaginar que o governo israelense seja receptivo à mensagem de Gandhi.

Por isso, provavelmente, o subsecretário de Defesa dos EUA tanto se esforça em sermões pregados aos palestinos. Com certeza Wolfowitz já sabe que será tempo perdido pregar sermões pacifistas aos israelenses.

Fonte: www.estadoanarquista.org/blog/

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