sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O Movimento de Ação Direta Britânico dos anos 1990 (I) - Passa Palavra



O Movimento de Ação Direta Britânico dos anos 1990 (I) 27.08.2009

Este ano, em 30 de novembro, se completa 10 anos dos protestos durante a reunião da OMC em Seattle. O autodenominado movimento de ação direta britânico teve importância destacada no ciclo de protestos, que teve em Seattle seu momento mais marcante. Contaremos aqui uma breve história dele. Por Leo Vinicius

No final da década de 1990 grandes manifestações de rua e tentativas de bloqueio durante encontros da Organização Mundial do Comércio, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, do G8, entre outros organismos gestores do capitalismo global, ganharam os noticiários de TV e fizeram com que essas cúpulas passassem a ser protegidas por grades, por enormes contingentes policiais e deslocadas para locais remotos. De forma geral viu-se os contornos de um (novo) movimento, que se opunha aos organismos gestores da chamada “globalização”. O bloqueio do primeiro dia da reunião ministerial da OMC no dia 30 de novembro de 1999, em Seattle (EUA), foi o momento em que de fato esse movimento ganhou visibilidade mundial, através da grande mídia, principalmente a TV, e passou a ser denominado, inicialmente por essa mesma mídia, de “antiglobalização”. Na verdade, trata-se de um “movimento de movimentos”, ou ainda uma confluência de movimentos. Sendo que o ponto de identificação que os unia era o reconhecimento comum dos gestores (dirigentes, organismos) da situação sistêmica que eles se contrapunham (embora para uns essa situação sistêmica apareça como capitalismo, para outros como neoliberalismo, e assim por diante).

Mas se os protestos em Seattle completam dez anos, dez anos completaram no último dia 18 de junho protestos que renderam por meses notícia nos jornais britânicos. Era o J18, Dia de Ação Global contra o Capitalismo como foi o dia 30 de novembro, que ocorreu durante encontro do G8 em Colônia. Em Londres, as manifestações, em certo sentido, foram uma expressão do desenvolvimento do autodenominado movimento de ação direta britânico. Esse movimento de ação direta, cuja luta antiestradas nos anos 1990 foi um foco de energias e vitórias, foi um exemplo dos mais significativos de movimento social recente, com intenções finais anticapitalistas, num país dos mais ricos e numa sociedade das mais controladas, com grupos sociais envolvidos, base material, e dilemas postos, ligados a essa especificidade.

O movimento de resistência global, antiglobalização, foi uma invenção dos ativistas ingleses. A afirmação é categórica e, como aponta um ativista (do blog http://diasdedissenso.blogspot.com/), tirando a romantização, tem sua quantidade de verdade. O Reclaim The Streets de Londres foi o maior impulsionador dos Dias de Ação Global na Europa, em 1998 e 1999, e também provavelmente no mundo. Como explica o ativista anônimo a que nos referimos, os ingleses foram os primeiros a se apropriar dessa sensibilidade que crescia em toda parte e a se referirem a um movimento global. No encontro anual do Earth First! britânico em 1997 já era nítido que a maioria dos participantes via o movimento ecológico radical britânico (e o EF! em particular) como uma “rede de revolucionários, parte de um movimento ecológico libertário global de movimentos” (http://www.eco-action.org/dod/no10/empire-history.htm).

Tal sensibilidade, para o ativista anônimo brasileiro residente na Inglaterra, do blog que nos referimos, viria da dificuldade dos ingleses em enxergar possibilidade de mudanças na sua sociedade abundante, com situação de pobreza em nível reduzido; e também da consciência de que seu estilo de vida seria sustentado pela exploração de povos além mar. Os olhos dos ativistas ingleses sempre estiveram voltados, por isso, para os movimentos do Sul, do chamado terceiro mundo, o que lhes daria uma sensibilidade para ver e ajudar a ligar as diversas lutas e movimentos geograficamente distantes em um movimento global. Ao mesmo tempo em que isso se expressava em uma sensibilidade para captar o global dos movimentos locais, trazia consigo uma tendência terceiro-mundista, a partir da qual a luta importante seria sempre a dos outros. A ênfase na solidariedade aos movimentos do Sul seria uma expressão ao mesmo tempo desse entendimento de fazer parte de um movimento global e de que a verdadeira luta seria sempre a levada pelos outros.

Antes de prosseguirmos cabe uma breve explicação do que é Reclaim The Streets (RTS) e Earth First! (EF!). Pelo que os próprios nomes denotam (Reclame as Ruas, e A Terra Primeiro!), mais do que grupos, coletivos ou movimentos, trata-se de bandeiras. Assim como o Proletários Armados pelo Comunismo do qual fez parte Cesare Battisti – o único refugiado político do mundo que é mantido preso no próprio país que lhe concedeu refúgio [para saber mais sobre o caso de Cesare Battisti, clique aqui] – o RTS e o EF! são nomes que servem à ação de diversos coletivos ou células independentes, e que podem ser formadas por qualquer um que se identifique com a bandeira, com seus princípios e formas de ação. O EF!, como dizem seus participantes, é mais “uma bandeira conveniente” do que uma organização propriamente dita. No caso do RTS, mais do que isso, ele pode ser entendido também como uma forma de ação, na qual se retoma as ruas, geralmente ações que quebram com a distinção entre festa e protesto.
O Earth First! portanto não é de fato nem um grupo, movimento ou entidade. Trata-se de um nome que congrega pessoas com objetivos, princípios e táticas comuns, no caso, para defender a natureza e o meio ambiente. Em 2001 o RTS, a partir de Londres, se definia como “uma rede de ação direta que surgiu inicialmente em Londres no início dos anos 1990 e que agora inclui grupos autônomos pelo mundo. O RTS faz uso da ação criativa na luta em direção a alternativas positivas, ecológicas e socialmente justas ao capitalismo e à ordem social hierárquica corrente”.

Voltando ao início da década de 1990, com o surgimento do Earth First! na Inglaterra, podemos começar a traçar um caminho que nos permite chegar ao J18 – Dia de Ação Global em 18 de junho de 1999 que teve grande impacto na Inglaterra, e que estimulou e antecipou os eventos em Seattle meses depois. O Earth First! surgiu nos EUA em 1980, criado por cinco amigos, ecologistas de longa data e descontentes com a institucionalização e ineficiência das organizações ecologistas existentes e suas práticas. Ele tinha como prática a ação direta, e como filosofia um biocentrismo. Grupos EF! se espalharam pelos EUA, formando uma rede informal de grupos autônomos que agiam diretamente, ocupando, sabotando, quebrando máquinas, subvertendo anúncios etc. etc.

O EF! aparece na Inglaterra em 1991, em um contexto parecido com o que havia surgido nos EUA, ou seja, como alternativa à institucionalização e à burocratização das organizações ecologistas. Mas no caso europeu ele seria iniciado por uma nova geração de ativistas. O primeiro grupo britânico EF! foi formado por dois estudantes, Jake Bowers e Jason Torrance, em East Sussex. Eles haviam participado de outros grupos ambientalistas e estavam desiludidos com os mesmos. A primeira ação do grupo foi o bloqueio da usina nuclear de Dungeness em Kent, contando com cerca de 50 participantes de redes pacifistas e antinucleares locais.

A versão britânica se diferenciaria do EF! norte-americano por uma combinação maior da preocupação ambiental com a preocupação social. Segundo seus fundadores britânicos, isso era até mesmo uma necessidade para o EF! deslanchar na Grã Bretanha. Sustentado por uma geração de ativistas constituída majoritariamente por estudantes e beneficiários do dole (uma espécie de salário social garantido aos desempregados) desiludidos com as práticas e eficácia das organizações ambientalistas existentes, grupos EF! logo surgiram em cidades como Londres, Liverpool, Brighton, Oxford, Manchester, Norwich e Glastonbury.

No segundo semestre de 1991 foi formado em Londres o Reclaim The Streets, no alvorecer de um movimento antiestradas que iria se opor ao programa Roads do Prosperity, conhecido como o maior programa de construção de estradas desde o Império Romano, lançado pelo governo britânico. Tratava-se de um pequeno grupo de pessoas ligadas à rede EF! que decidira agir diretamente contra o automóvel. Nas suas próprias palavras, agiam “pelo caminhar, pedalar e pelo transporte público gratuito ou barato, e contra carros, estradas e o sistema que os impulsiona”. As ações do RTS nessa primeira fase, que iria até 1993, já carregavam o humor e a surpresa que o caracterizariam na segunda metade da década. Pequenos bloqueios de estrada, subversão de anúncios de automóveis, ciclovias pintadas nas ruas de Londres e aparições em exposições de automóveis eram algumas das ações levadas a cabo pelo RTS nesse período.

O primeiro encontro britânico do EF! ocorreu em Brighton, em abril de 1992 e contou com a participação de 60 ativistas. Havia então 7 grupos EF! listados no boletim EF! Action Update. Os primeiros meses de 1992 definiram as atividades que prevaleceriam ao longo da década: um ciclo nacional de ações, campanhas antiestradas, ocupações de escritórios, sabotagens e bloqueios de ruas.

O EF! encontraria seu nicho na campanha de Twyford Down, região em Hampshire conhecida pela sua beleza natural e por guardar resquícios de épocas pré-históricas e civilizações antigas, como as trilhas antigas, formadas ao longo de milhares de anos, conhecidas como Dongas. A resistência em Twyford Down marcaria o início do movimento antiestradas no Reino Unido, sendo iniciada por um grupo de pessoas que se autodenominou Tribo de Dongas. Esse grupo era formado por pessoas de contraculturas pré-existentes, como os travellers. Os travellers tiveram origem nos festivais livres de música dos anos 1970. Ganharam esse nome pelo estilo de vida nômade que levam, viajando, muitas vezes em comboio, em vans, caminhonetes ou trailers, indo de um a outro festival ou evento, e montando acampamentos. O movimento começou a ser reprimido pelo governo britânico nos anos 1980, na tentativa de impedir acampamentos. Famoso episódio repressivo foi a Batalha de Beanfield em 1985, a maior prisão em massa da história da Inglaterra. Nos anos 1990 muitos travellers migraram para outros países da Europa, e apesar de reduzidos numericamente em relação a décadas anteriores, essa contracultura ou estilo de vida ainda persiste na Inglaterra.
Bem, como descrito por ativistas do EF!, em Twyford Down tratava-se de uma luta pela terra, para proteger um local ameaçado, onde se poderia sentir e se conectar com aquilo pelo que se estava lutando, tornando-se parte do local. Lá o movimento pôde se engajar em uma resistência física prolongada, que duraria meses. Foram construídas casas nas árvores, adotou-se um estilo de vida ligado ao local, o qual virou um foco acessível e permanente para ativistas e ecologistas de todas as partes do país.

Em Twyford Down se iniciaria também uma mistura que, para ativistas do EF!, levaria a ação direta ecológica no Reino Unido a um potente ciclo de lutas, com grandes números e sucessos. Tratava-se da mistura e da troca de habilidades entre os travellers (predominantemente rurais), e indivíduos do EF! e de grupos de libertação animal predominantemente urbanos. Os primeiros traziam conhecimento de como viver nos campos e locais a serem protegidos contra a construção de estradas; os últimos traziam técnicas de ação (sabotagem de máquinas etc.).

À medida que a resistência em Twyford Down decrescia, as ações antiestradas se espalhavam pelo Reino Unido. E apesar da estrada ter sido construída em Twyford Down, após essa resistência os relatórios do governo passaram a apontar o nível de oposição de comunidades e ecologistas aos projetos de construção de estradas. No segundo semestre de 1993 já existiam 45 grupos EF! no Reino Unido, e outros tantos catalisados pela ação direta do EF! mas que não agiam sob esse nome.

Nesse período algumas redes se solidificaram, como a Alarm UK, formada pelas campanhas antiestradas e o próprio EF!, além dos ativistas nômades que viajavam para os campos de resistência contra a construção de estradas ao longo do país.

Referências usadas
Revista Do or Die, publicada pelo próprio movimento de ação direta: http://www.eco-action.org/dod ;
O blog Dias de Dissenso, escrito por um ativista brasileiro radicado na Inglaterra: http://diasdedissenso.blogspot.com ;
O artigo de Grey Green, de Jake Bowers e Jason Torrance, publicado no jornal The Guardian, em 2 de maio de 2001;
Um panfleto do Reclaim The Streets produzido em 1991;
ADAMS, D.; ROOTES, C.; SEEL, B. The Old, the New and the Old New: British environmental organizations from conservationism to radical ecologism. Artigo apresentado no Workshop “Environmental Organisations in Comparative Perspective”, ECPR Joint Sessions, Copenhagen, 14–19 de abril, 2000.

O Movimento de Ação Direta Britânico dos anos 1990 (II) 09/09/2009

A luta da M11, em 1993 e 1994, foi um marco para o movimento de ação direta britânico. Entre outras coisas, pela questão social ter aparecido de forma mais clara ao movimento, para além da questão ambiental. Por Leo Vinicius

Em 1993 se iniciaria a resistência mais marcante do movimento antiestradas, de fundamental importância na evolução do movimento de ação direta britânico. A resistência à construção de uma estrada pela região leste de Londres que ligaria à rodovia M11, diferentemente de outras campanhas antiestradas, envolvia diretamente questões sociais, e não apenas ambientais, uma vez que a estrada atravessaria uma comunidade e destruiria centenas de casas. Não se tratava de preservar uma natureza selvagem e intocada, mas de defender lares e uma comunidade urbana. A luta contra a M11 foi importante também por ter reunido diferentes grupos – ecologistas de ação direta, anarquistas urbanos, punks, grupos de esquerda como Class War e grupos locais mais focados em campanhas específicas – ajudando a alargar a base do movimento de ação direta.

A resistência ativa à construção da estrada que ligaria à M11 começou em setembro de 1993, quando as escavadeiras e tratores chegaram. Nos dois primeiros meses a maioria das pessoas que sentava em frente aos tratores, que ocupava locais e árvores e que se acorrentava às máquinas era de eco-ativistas experientes que haviam se mudado para lá semanas antes – muitos deles participantes da resistência de Twyford Down e de outras. Composição que pareceria paradoxal na medida que a construção dessa estrada envolvia a destruição de casas (cerca de 350) muito mais do que de “árvores” e da “natureza”.

As casas evacuadas, embora sendo logo parcialmente destruídas para evitar a reocupação por squatters (pessoas que ocupam edificações abandonadas), eram recuperadas tanto como algo a ser defendido em si mesmo quanto para servir de ponto de resistência, de reunião, de base de comunicação e de habitação para aqueles que chegavam para se opor à construção da estrada.

A comunidade local, embora em geral não quisesse a estrada, não se envolvia diretamente nas ações de resistência, achando que já não havia o que fazer para a deter, uma vez que todos os recursos jurídicos e políticos haviam falhado. Isso começaria a mudar quando uma cerca de mais de dois metros de altura foi posta em volta de uma castanheira de quase 300 anos em uma localidade chamada George Green. Apesar da construção dessa estrada levar à demolição de várias casas, foi somente ao perceber que a castanheira de 300 anos seria derrubada que a comunidade realmente se mobilizou contra a construção e partiu para a ação direta, dando um grande impulso à luta da M11. Isso porque a árvore, ao contrário das casas, era percebida como algo comum, e tinha um valor simbólico e histórico principalmente para as crianças. No dia 6 de novembro foi organizada por eco-ativistas e militantes locais uma cerimônia com crianças vestidas de árvore em torno da castanheira. Muitas famílias da comunidade assistiram à cerimônia. Alguns ativistas tentaram escalar a cerca, mas foram contidos por seguranças que guardavam o local. As crianças começaram então a escalá-la, e a partir de então os seguranças e polícias não sabiam o que fazer. Uma escavadeira foi ocupada e expulsa do local. A enorme pilha de terra foi posta de volta pelos moradores, usando sacos, cobrindo novamente a raiz da castanheira. A cerca foi posta abaixo rapidamente. Durante o final de semana foram plantadas flores no local e quase toda a terra havia sido posta de volta no lugar. Uma casa foi construída na árvore. O local se tornou ponto de encontro da comunidade e de todos que resistiam à construção da estrada, criando um contato antes inexistente entre os próprios residentes locais e entre estes e os eco-ativistas. Mais de quatrocentas cartas de apoio à árvore foram enviadas (para a casa construída na árvore), e a luta contra a ligação à M11 começou a ser noticiada pela imprensa.

Em janeiro de 1994 as casas ocupadas pelos ativistas no bairro de Wanstead foram declaradas como “Área Autônoma Livre de Wanstonia”, numa forma de trazer atenção e publicidade à resistência. A “queda” de Wanstonia, em 16 de fevereiro de 1994, se deu com a presença de 700 policiais, que retiraram as centenas de ativistas dos telhados das casas, onde resistiam de forma não-violenta à desocupação. Após a queda de Wanstonia as energias foram jogadas em uma operação de interrupção de todo e qualquer local onde a estrada estivesse em construção. Pulava-se as cercas dos canteiros de obras, subia-se nas máquinas, acorrentava-se a elas, sabotava-se a obra. O custo da obra crescia tanto pelo seu retardo quanto pela quantidade de seguranças e policiais que tinham que ser alocados.

A resistência continuaria, com ocupação das casas que seriam demolidas, sabotagens, interrupções das obras, invasão dos canteiros de obra até o segundo semestre de 1994, quando ocorreria a batalha final, em Claremont Road, uma rua que havia sido ocupada totalmente e transformada em um cenário surreal. A rua fora transformada em uma sala-de-estar, com carros transformados em vasos de flor, com sofás, obras de arte plástica – muitas das quais eram preenchidas com concreto, servindo ao mesmo tempo e principalmente de barricada. Uma multiplicidade de táticas foi utilizada para resistir ao despejo, a partir da criatividade das cerca de 500 pessoas que permaneciam no local. Foi o mais longo e mais caro despejo da história da Inglaterra, durando cinco dias e custando 2 milhões de libras, com o efetivo de mais de 700 policiais e 400 seguranças, ao som da música eletrônica do grupo Prodigy, posta pelos ativistas.
Para as pessoas engajadas na ação direta antiestradas, e especialmente em Claremont Road, não se tratava de simples reação à destruição, mas de afirmação da vida, da autonomia. Claremont Road, e a luta contra a M11, seria uma experiência fundamental para centenas de pessoas envolvidas. John Jordan, professor universitário de arte, uma das pessoas chave e mais ativas do Reclaim The Streets de 1995 ao final de 2000, descreve a sua experiência de ação direta contra a M11 como algo que ocasionou uma influência política e pessoal profunda:

Para Jordan “ação direta é ação não-mediada e imediata para mudar algo”.
“Ação direta diz respeito a tomarmos controle direto sobre nossas vidas, recusando aceitar a autoridade de burocratas ou de políticos, ‘líderes’ ou ‘especialistas’, para agir em nosso favor. Ela se distancia dos perigos e traições da representação (…). Não é uma última opção, algo que usamos quando todas as outras formas de campanha – como escrever cartas ou fazer lobby – se esgotam. Ela é o oposto disso: é a forma preferencial de fazer as coisas e é ao mesmo tempo uma maneira de atuar e um modelo de como vemos uma sociedade futura funcionar.”

O Reclaim The Streets seria re-formado em fevereiro de 1995, com o término e como um dos resultados da experiência de resistência à M11. Mais especificamente, pode-se perceber o RTS como uma continuidade da experiência de Claremont Road. Uma rua retomada e transformada em um espaço lúdico. Com som e muita criatividade a rua era retomada dos carros, com uma crítica ecológica e social implícita. Esse espectro rebelde e criativo de Claremont Road se espalharia pelo Reino Unido nos anos seguintes através do RTS.
A luta da M11 teve a participação da comunidade local, mas em geral as atividades desempenhadas pelos locais se diferenciavam da dos eco-ativistas. O nível de engajamento em ações diretas que poderiam causar ferimentos ou detenção era substancialmente menor entre os locais, em parte por medo de que isso comprometesse seus empregos. Acabavam predominantemente fornecendo apoio logístico e material aos ativistas e “eco-guerreiros” – expressão forjada pela mídia britânica durante a resistência em Twyford Down. Vários trabalhadores da construção civil, que tinham empregos relativamente bem pagos, se somaram à resistência, preferindo trabalhar gratuitamente pela causa que por um salário, como foi o caso especialmente em Claremont Road. Ou seja, em alguma medida um leque social maior foi envolvido na luta, embora predominante e hegemonicamente, mas não estritamente, a resistência tenha sido levada por uma juventude ativista. Como salientou o coletivo comunista britânico Aufheben, o capital requer que aqueles que se conformam percebam os estilos de vida daqueles que não se conformam como não-atrativos e precários. E o modo de vida adotado por muitos ativistas na luta da M11 teria sido o oposto disso, ou seja, teria se mostrado atraente, apontando ainda para o modo que a sociedade como um todo poderia viver. Além disso, para Aufheben essa forma de existência alternativa e subversiva durante a luta da M11 teria nascido de necessidades práticas imediatas de resistência, e não de idealismo.

Pela lei britânica até então em vigor a invasão de propriedade não era considerada crime: a ocupação de canteiros de obras, assim como outras formas de ação direta, eram da esfera do direito civil e não do direito penal. Durante a luta da M11, no entanto, o governo do Reino Unido prepararia uma arma legal como resposta à ação direta do movimento antiestradas, mas que visaria também a repressão a contraculturas e atividades autônomas, de travellers ao squating, passando pelas raves – festas livres – e pelos ativistas de libertação animal. Mas a nova carta legal, chamada Criminal Justice Bill, ao invés de conseguir deter as práticas e contraculturas que ela pretendia criminalizar, acabou unindo e criando laços entre diferentes contraculturas e grupos, com o objetivo inicial de combater a nova lei. Ela foi recebida como um ataque aos vários estilos de vida e formas políticas “alternativas”, unindo todos eles em torno de uma defesa comum, dando visibilidade ao que ficaria conhecido na Inglaterra nos anos 1990 como cultura do faça-você-mesmo (do-it-yourself culture). Especialmente a cena rave se politizou, e se tornou um foco de comunidade para muitos nesse período. Na leitura feita por Aufheben, o que unia esses grupos de tal modo a se tornarem um alvo tão visado pelo governo seria que, embora pudessem estar longe de conscientemente declarar guerra ao capital, eles compartilhavam uma recusa à ética do trabalho, a uma vida subordinada ao trabalho assalariado.

O Movimento de Ação Direta Britânico dos anos 1990 (III) 09.09.2009

De 1996 ao final da década, o movimento de ação direta britânico começa a criar laços com lutas trabalhistas e a identificar de forma mais clara o capitalismo como a fonte dos problemas, num caminho trilhado do particular ao geral. Por Leo Vinicius

Em janeiro de 1996 se inicia um período de intensa luta em Newbury, no maior protesto antiestradas: foram 29 acampamentos de resistência montados ao longo dos 13 km em que passaria a estrada; centenas de casas construídas em árvores para proteger cerca de 10 mil delas, 12 sítios arqueológicos, habitats de animais, espécies em extinção, etc. Uma batalha de 85 dias, e cerca de 700 prisões foram necessárias para evacuar o local que ficou ocupado por ativistas por aproximadamente dois anos.

Quanto ao Reclaim The Streets, ele seria formado de novo no início de 1995. Não se tratava de um grupo ou de uma organização propriamente dita, em termos formais. O RTS consistia mais em um nome em torno do qual pessoas se organizavam, se encontravam e agiam com objetivos comuns. Suas reuniões semanais eram abertas a qualquer um que aparecesse.

A ação característica do RTS seria a realização de festas de rua, que refletiam e davam continuidade ao espírito da rebeldia de Claremont Road. As festas de rua do RTS refletiam também a influência situacionista de algumas das principais cabeças pensantes por trás dele. Resgatando a idéia de que os momentos revolucionários eram momentos festivos, e de que os carnavais e revoluções não seriam espetáculos vistos por pessoas, mas antes envolveriam a participação ativa da multidão, as festas de rua Reclaim The Streets expressariam também a idéia de que a expansão e libertação do desejo são em si revolucionárias. Carregam também a idéia de détournement tão presente nos situacionistas, transformando, subvertendo e retomando um ambiente, um espaço, um local. A festa de rua do RTS seria assim vista também como uma topia, algo que existe aqui e agora, em oposição à utopia definida como o não-lugar. Elas eram vistas e entendidas como uma primeira tentativa de reconstruir a geografia da vida cotidiana, reapropriando a esfera pública, redescobrindo as ruas e tentando liberá-las.

Para Chris Knight, professora universitária envolvida com o RTS desde 1995, o RTS não tem a ver com manifestações e protesto. Os participantes do RTS pensariam mais em termos de “faça-você-mesmo” – se se quer algo, faça-você-mesmo. A ação viria antes de tudo.

As festas eram realizadas em um ou mais pontos da cidade, em ruas ou cruzamentos guardados em segredo até o seu momento, pegando as autoridades de surpresa. Um método que se tornou usual para fechar as ruas e começar a festa era o uso de um enorme tripé, sobre o qual uma pessoa se instalava. O tripé interrompia a rua aos carros e não poderia ser retirado do local por alguma autoridade sem que a pessoa sobre ele caísse de vários metros de altura, o que inibia tentativas repressivas. Embora as pessoas mais envolvidas com o RTS não viessem da cena rave e nem tivessem como preferência musical a música eletrônica, o fato é que as festas de rua se alimentaram da florescente cena rave inglesa dos anos 1990. Segundo John Jordan, a cena rave teria se sintonizado ao que o RTS estava fazendo – festas de rua – ao mesmo tempo em que o RTS teria visto a cena rave como uma poderosa força dinâmica. Em 1995 ocorreria as duas primeiras festas de rua (Street Parties I e II); a primeira dia 14 de maio, na Camdem High Street, com três pessoas sendo presas; a segunda em 23 de julho, com maior repressão policial. Somente a partir da segunda a música rave teria aparecido, segundo Jordan.

Essas festas de rua que caracterizaram o RTS remontam também às festas e raves realizadas entre 1992 e 1993 na Inglaterra, com um caráter de desobediência civil e resultando em repressão policial. Em 1º de maio de 1992 uma operação policial conseguiu impedir a realização do Festival Livre de Avon, que seria um ponto de encontro de travellers. Os comboios de travellers foram forçados assim a se dirigir a uma mesma localidade, chamada Worcestershire, onde acabaria sendo realizada uma festa improvisada de quatro dias de duração em um lugar chamado Castlemorton Commom. Entre os coletivos que sonorizaram a festa se destacava um recém-formado, bastante politizado, chamado Spiral Tribe, que se recusou a parar no final do quarto dia de festa, sendo seus integrantes presos por isso e tendo seus equipamentos apreendidos. Outras raves livres foram realizadas nesse período, atraindo milhares de pessoas. Um aspecto destacável desses eventos era a mistura e fusão de ravers e travellers, os últimos acrescentando uma crítica do comercialismo das raves, e os primeiros uma crítica do isolamento e guetização dos travellers.

Uma festa de rua realizada pelo Spiral Tribe, dia 4 de junho de 1992, na área portuária de Londres, atraiu mil pessoas, e apesar da repressão policial ela teria sido vista por muitos como um sucesso e uma prova de que áreas urbanas poderiam ser retomadas ao menos temporariamente. Com a Criminal Justice Bill o Spiral Tribe migraria para outros países da Europa, mas a experiência que ele ajudara a concretizar não seria apagada.

Em 1995 e nos anos seguintes o RTS realizaria também outras ações além das festas de rua, como sabotagens de mostras de automóveis e ações contra companhias petrolíferas. Dia 13 de julho de 1996 ocorreria o terceiro grande evento do RTS de Londres (a essa altura a idéia dessas festas/carnavais de rua já havia se espalhado por outras cidades britânicas e logo se espalharia para outros países). Era a terceira festa de rua, que atraiu cerca de 8 mil pessoas à rodovia M41, na região oeste de Londres. Uma árvore foi plantada no meio do asfalto. Uma faixa desejando vitória aos metroviários, que estavam em luta, já era uma amostra da ligação que o RTS estava criando com algumas categorias de trabalhadores. A ligação dos problemas ecológicos com os problemas sociais, e do caráter anticapitalista e socialista libertário do RTS ficava progressivamente mais claro e explícito – algo que o verde, vermelho e preto da sua bandeira indicaria. Algumas ações de apoio aos metroviários seriam realizadas nos meses seguintes. Segundo a visão de alguns participantes do movimento, em 95/96 o RTS conseguiu mobilizar o gueto cultural alternativo, e em 96/97 começaria a organizar uma saída desse gueto, criando laços de solidariedade com metroviários e portuários, por exemplo.

No dia 28 de setembro de 1996 a luta dos portuários contra a precarização e terceirização completaria um ano. O RTS iria criar um vínculo com os portuários, passando a apoiar ativamente e a participar da luta. Inicialmente, como aponta Chris Knight, havia pessoas no RTS que achavam que ele deveria permanecer fundamentalmente uma campanha anticarro e ambientalista. Mas a consciência da relação da luta ecológica e social e a evolução no sentido de uma crítica abrangente ao capitalismo prevaleceria. Para Knight teria sido a partir da ligação com os portuários que o RTS se tornara explicitamente anticapitalista. No dia 28 de setembro, sob o nome Reclaim The Future – que se tornaria também o nome de um jornal produzido pelos portuários – o RTS e os portuários realizariam uma manifestação em Liverpool, seguida de um festival cultural.

As ações em conjunto com os portuários incluiriam posteriormente bloqueios e ocupação de escritórios e dos telhados dos escritórios, fazendo com que um campo novo de formas de ação se tornasse uma realidade para esses trabalhadores. No dia 12 de abril de 1997, como parte da “Marcha pela Justiça Social” chamada pelos portuários, o RTS adicionou sua própria cara e dimensão ao evento realizando uma festa de rua e convocando a todos a Retomarem as Ruas, à ação direta, sem depositar fé nas eleições que ocorreriam dali a algumas semanas. Como deixava claro um panfleto distribuído, o RTS acreditava que a mudança não viria “através da mediação de políticos profissionais, mas da participação individual e coletiva nas questões sociais. Em suma – pela ação direta. (…) ação direta nas ruas, no campo e nos locais de trabalho, para parar a destruição e criar uma democracia direta em uma sociedade ecológica e livre”.

Em 1997 o governo britânico suspenderia o programa nacional de estradas. Desde a resistência em Twyford Down, como deixava claro as revistas do setor de construção civil, o orçamento do governo para a construção de estradas ia diminuindo. A resistência contínua e por anos seguidos embora não conseguisse evitar a construção das estradas em iminente início de construção, fez com que o governo abortasse o programa nacional de estradas como um todo (com o cancelamento de cerca de 500 novas estradas), devido à própria oposição e principalmente aos crescentes custos decorrentes dela. Para alguns ativistas do EF! esse era o resultado da maior onda de luta por terra (land struggle) da era industrial da Grã Bretanha, “forjada por uma impressionante reunião de subculturas rebeldes” – travellers, animal-liberacionistas, squatter urbanos, ravers, ativistas do EF! etc.. Segundo esses mesmos ativistas, também um período de lutas que viu ações conjuntas com comunidades e trabalhadores em um nível muito além do que poderiam sonhar os anarquistas com discursos e práticas supostamente mais classistas e tradicionais.

Em 1998 o movimento de ação direta britânico entraria na sua era de “resistência global”, tendo proeminência em forjar o que ficaria conhecido mundialmente como movimento antiglobalização, entrando em uma fase explicitamente anticapitalista. Esse período ao mesmo tempo em que pode ser visto em continuidade com as ligações feitas entre o RTS e categorias de trabalhadores em luta, e dentro de uma evolução que se dava progressivamente em proveito de um enfoque que englobava lutas sociais e uma crítica anticapitalista, emergia também como foco que substituía a luta antiestradas uma vez que o programa de construção havia sido suspenso pelo governo. No entanto, campos de resistência e ação direta contra outros projetos e construções consideradas destrutivas continuaram a existir depois de 1997.

Referências usadas
A revista Do or Die: http://www.eco-action.org/dod ;
Boletim eletrônico SchNEWS nº 526, 06/01/2006: http://www.schnews.co.uk/archive/news526.htm ;
Entrevista com John Jordan feita por Naomi Klein em 1997: http://www.ainfos.ca/A-Infos97/4/0552.html ;
Entrevista com Chris Knight e Pauline Bradley, The Liverpool Dockers and Reclaim The Streets, 9 de março de 2002;

O Movimento de Ação Direta Britânico dos anos 1990 (IV) 17.09.2009

Os dias de ação global contra o capitalismo e o fim do Reclaim The Streets londrino, em parte vítima de seu próprio “sucesso”. Por Leo Vinicius

No encontro do Earth First! em 1997, em Glasgow, era consensual aos ativistas que a construção de estradas não forneceria mais tantos pontos de resistência pelo Reino Unido. Sendo assim, a luta contra campos de teste de Organismos Geneticamente Modificados foi abraçada como um novo terreno de ação. Sentia-se contudo que, embora os anos 1990 tivessem visto um rápido crescimento do movimento de ação direta, com milhares se engajando, o movimento não havia tido a infra-estrutura para sustentar uma participação continuada, ao longo do tempo. Aqueles que haviam participado das lutas antiestradas, mas que não integraram nenhuma rede específica, acabariam se afastando de alguma forma com o fim dessas lutas – seja para irem para uma política tradicional, se envolverem com drogas, irem trabalhar ou acabarem em casas psiquiátricas. (A ausência de um suporte psicológico e o fato de não poucos ativistas acabarem se envolvendo com drogas ou terem problemas psíquicos era uma preocupação que aparecia com alguma freqüência em publicações e textos produzidos por ativistas britânicos envolvidos com ação direta, como no número 10 da revista Do or Die. Os problemas existenciais apareciam assim como algo que o movimento ainda não estaria preparado para lidar, embora fossem bastante presentes entre esses ativistas).

O ano de 1998 viu uma proliferação de squats na Inglaterra, que serviriam como espaços onde pessoas envolvidas com ação direta poderiam se encontrar, discutir e se organizar. Mas aquele ano seria também o do primeiro Dia de Ação Global, que na Inglaterra seria convocado como Carnaval contra o Capitalismo.
Com o envolvimento do Reclaim The Streets de Londres na formação e articulação da rede Ação Global dos Povos, e na convocação mundial dos Dias de Ação Global – que se tornariam uma espécie de “marca registrada” do movimento antiglobalização –, em 16 de maio de 1998 ocorreria durante o encontro do G8 em Birmingham as primeiras ações de rua dos ativistas britânicos que fariam parte do que posteriormente ficaria conhecido como movimento antiglobalização.

Nos 20 meses seguintes a maio de 1998 houve 34 acampamentos de resistência a diversos projetos e construções. Mas após o primeiro Dia de Ação Global, e após 65 festas de rua registradas no país, o RTS colocaria praticamente todas as suas energias no J18, como ficou conhecido o Dia de Ação Global de 18 de junho de 1999, simultâneo ao encontro do G8 que se realizava em Colônia, Alemanha. Mas antes, no 1º de maio de 1999 o RTS ainda organizou uma festa em que cerca de mil pessoas ocuparam um trem do metrô em apoio aos metroviários e contra a privatização do setor.

O J18 marcaria a convergência de várias campanhas específicas e grupos libertários e de ação direta em um evento com uma crítica explicitamente anticapitalista. Durante um ano foram preparados um carnaval no centro financeiro de Londres e ações descentralizadas pela cidade. O J18 em Londres foi considerado um sucesso, em linhas gerais, e inspirou os eventos que aconteceriam naquele mesmo ano em Seattle. Mais de 10 mil pessoas participaram do J18 em Londres. As autoridades foram pegas de surpresa. Uma manifestação onde não eram identificadas lideranças, que fugia aos padrões tradicionais de eventos em que se identificava uma estrutura hierárquica ou organização formal por trás – e portanto controláveis de alguma forma –, que era ao mesmo tempo inesperada e que teve um impacto que nenhuma outra manifestação teve na Inglaterra desde 1990. Houve distúrbios e destruição de propriedade, principalmente no centro financeiro. Os prejuízos foram avaliados em mais de 1 milhão de libras. Reclaim The Streets e a palavra “anarquista” iriam povoar os jornais ingleses nos meses e anos seguintes ao J18 – o jornal The Guardian publicaria 126 artigos envolvendo o Reclaim The Streets entre 1999 e 2003.

Muitos ativistas que trabalharam incessantemente durante um ano inteiro para que o J18 acontecesse – um único dia de manifestação – se viram exaustos depois desse dia. Mas o principal saldo negativo teria sido a repressão e perseguição política que foi desencadeada. Quanto a isso também é interessante mencionar que na seqüência do J18 foi lançada uma lei que ficou conhecida como Terror Bill, enquadrando como terrorismo práticas usadas por grupos de ação direta contra empresas, e criminalizando a dissidência social e política de variadas formas. Seria mais uma lei, a qual se seguiriam outras nos anos seguintes, como o Public Order Act, na tentativa de criminalizar essa dissidência política e social, além de formas de protesto e de ação direta.

O J18 foi ao mesmo tempo o auge de impacto e o início do fim do RTS londrino. O RTS viraria a partir de então quase um sinônimo de enorme policiamento e de distúrbio de rua. Uma escalada que tornaria inviável a continuação do RTS como nome e para seus membros nos anos seguintes. Segundo John Jordan, o RTS não conseguiria se recuperar da campanha de criminalização lançada contra ele pela mídia e pelo Estado. Ele próprio passara a ser seguido por policiais quando levava seu filho à escola e teve seu apartamento vasculhado pela polícia. Outras pessoas envolvidas com o RTS receberiam telefonemas e intimidações do tipo.

Para o N30, o Dia de Ação Global seguinte, no dia 30 de novembro de 1999, o RTS organizaria uma manifestação com o nome Reclaim The Railways (Retome as Estradas de Ferro), numa estação de metrô central de Londres. Pretendia-se que fosse apenas um protesto contra a privatização do metrô, com discursos e palco, mas a manifestação, que atraiu alguns milhares de pessoas, acabou em confronto com a polícia, um carro de polícia virado e incendiado, e manifestantes presos. O N30 em Londres confirmara a impressão de alguns ativistas de que após o J18 o nome Reclaim The Streets ao mesmo tempo em que atraía uma multidão, atraía distúrbios de rua que levariam a uma relativamente fácil criminalização e isolamento do movimento.

Mais um exemplo da enorme sombra criada em torno do RTS ocorreu em abril de 2000. Uma manifestação em frente à multinacional Fidelity Investments, contra o investimento da companhia na petrolífera Oxy (que disputa terras com os povos originários Uwa na Colômbia), teve grande presença policial. Mas havia apenas 25 manifestantes, do RTS e de uma ONG, que estavam protestando calmamente diante da empresa. O conhecimento de que o RTS faria um protesto na Fidelity Investments trouxe não só um grande aparato policial – uma vez que o RTS ficara associado às manifestações do J18, com tudo que ela teve de quantidade de pessoas, de imprevisível e de distúrbio –, mas também um certo desespero por parte da empresa.
Os funcionários da Fidelity Investments foram dispensados de ir ao trabalho naquele dia. O nome da empresa foi apagado da frente da sede e o departamento de relações públicas se apressou em negar qualquer envolvimento da empresa com a disputa por terra na Colômbia e que nenhum dinheiro de investidores britânicos havia ido para a Oxy, e que mesmo assim reveriam cuidadosamente seus investimentos!

No mês seguinte ocorreria o próximo Dia de Ação Global chamado pela AGP: o 1º de maio de 2000. Há muito algumas pessoas envolvidas com o RTS queriam se afastar da fórmula das festas de rua, que pelo seu sucesso acabavam prendendo o RTS a essa forma de ação. Ao lado disso havia a preocupação de que o dia 1º de maio não se tornasse em um confronto entre polícia e manifestantes. Uma espécie de temor das próprias forças que o RTS teria despertado, e o sentimento de estar num círculo vicioso em que qualquer coisa que fosse programada se tornava um distúrbio de rua com destruição de vidros e confronto com polícia. Por esses e outros motivos o RTS resolveu convocar uma “guerrilha de jardineiros” para o dia. A ação consistia em plantar, principalmente alimentos, em espaços públicos. Aquele 1º de maio foi palco da maior operação policial em 30 anos na Inglaterra. Os distúrbios aconteceram de qualquer modo. A idéia de guerrilha de jardineiros nunca mais seria repetida, sinal de que foi frustrante para boa parte dos participantes.

Para ativistas do movimento de ação direta o 1º de maio de 2000 foi ao mesmo tempo uma expressão de um processo vivido e um ponto ao qual esse processo os teria levado. Na relativa curta história do movimento de ação direta teria havido um aumento de militância (em termos de táticas em que estavam preparados para usar) e de radicalidade (em termos de idéias) do movimento. Teria havido um afastamento de temas e campanhas restritas a temas específicos e de posições reformistas e liberais em benefício de uma política mais radical e revolucionária. Essa mudança era vista também como parte da trajetória geral que os movimentos de contracultura juvenil politicamente orientados pareceriam seguir. Tal mudança se expressava na própria definição que o RTS de Londres dava a si próprio. Por volta dessa época o RTS já se definia essencialmente como um grupo ou projeto anticapitalista: “uma rede de ação direta pela(s) revolução(ões) social-ecológica global e local para transcender a sociedade hierárquica e autoritária, (capitalismo incluído), e ainda estar em casa para o chá”. E o Earth First! britânico, que havia nascido como um movimento de defesa da natureza virgem num lugar sem natureza virgem, evoluíra se tornando uma rede de revolucionários em tempos não-revolucionários, como diriam alguns de seus integrantes.

Entre 1999 e 2002 houve uma sensível redução do número de acampamentos ecológicos de ação direta na Inglaterra. Mas eles voltaram a crescer em 2003 com o retorno de projetos de construção de estradas. E embora em 2002/2003 houvesse muito menos grupos EF! do que em meados dos anos 1990 e a contracultura traveller tivesse sido em parte destruída, o movimento de ação direta continuava com vigor. Essa generalização ou aumento da ação direta foi assim vista pelos ativistas como uma das importantes vitórias do movimento.

Em setembro de 2001 o RTS organizaria uma manifestação que visava obstruir uma feira de produtos bélicos (Arm Fair). Tentando conseguir com que a mensagem dos manifestantes não fosse ocultada por distúrbios e confrontos com a polícia, os panfletos e convocações para a manifestação não usaram o nome Reclaim The Streets. Uma banda de samba animava a carnavalesca e pacífica manifestação, que atraiu cerca de mil pessoas – número considerado bastante aquém do que se conseguiria caso a identidade Reclaim The Streets tivesse sido utilizada. O RTS de Londres, como resultado de um processo de criminalização e em parte como resultado do seu próprio sucesso, fazendo sair os eventos do seu próprio controle e, em parte, do seu objetivo, foi aos poucos deixando de existir. Seus principais ativistas foram abraçar outros projetos, sem se desconectarem da Ação Global dos Povos em nível global.

O Centro de Mídia Independente do Reino Unido (Indymedia UK) foi formado a partir do grupo de mídia do RTS. John Jordan formou o Exército Clandestino Insurgente de Palhaços Rebeldes. Mark Brown, um dos mais envolvidos com o RTS, participaria do Rising Tide – um coletivo focado nas mudanças climáticas – e do London Action Resource Center – um centro social criado em um imóvel alugado. Outras pessoas bastante envolvidas com o RTS abraçariam outros projetos. Em 2004 alguns criariam a rede Dissent!, que organizaria ações diretas durante a cúpula do G8 em Gleneagles em 2005, na Escócia.

Referências usadas
Revista Do or Die: http://www.eco-action.org/dod;
JORDAN, John. The Art of Desertion. Apresentado em Live Culture - Live Art at the Tate Modern, Londres, 2003. Disponível em http://amsterdam.nettime.org/Lists-Archives/nettime-l-0304/msg00016.html

O Movimento de Ação Direta Britânico dos anos 1990 (V) 24.09.2009

Um perfil dos ativistas, sua base material e subjetiva, e os dilemas enfrentados são o tema deste artigo final sobre o movimento de ação direta britânico. Por Leo Vinicius

Entre os próprios ativistas britânicos do autodenominado movimento de ação direta é reconhecido que, como um todo, ele era (ou ainda é) formado por estudantes, desempregados (beneficiários do dole), e pessoas que arrumam empregos temporários ou transitórios. O trabalho, ou o trabalho subordinado, era algo marginal na vida dessas pessoas. As suas existências estariam ligadas muito mais à esfera do “consumo” do que à esfera da “produção”, do emprego.

Na pesquisa feita por Derek Wall, muitos dos entrevistados participantes do Earth First! britânico e do movimento antiestradas haviam feito parte anteriormente de outros grupos ecologistas (Friends of Earth, Partido Verde, Greenpeace) ou de outras organizações políticas (grupos marxistas, por exemplo), mas se sentiram frustrados em determinado ponto e foram atraídos pela organização mais informal do EF! e sua ênfase na ação direta. Wall também salienta a “disponibilidade biográfica” como importante fator para o “envolvimento ativista”. Isto é, normalmente os envolvidos possuíam bastante disponibilidade de tempo e poucos compromissos (não possuíam filhos e sobreviviam com o dole ou eram estudantes). A ausência dessa disponibilidade de tempo chega a ser um fator que obstruiria a participação e integração efetiva no movimento, e na “comunidade ativista”. Relatando sua experiência de aproximação e participação no movimento, uma ativista aponta que a combinação da sensação de se sentir julgada, falta de autoconfiança e a falta de tempo livre a fez dar muito poucos passos na direção de se envolver em qualquer tipo de ação direta.

É reconhecido por eles que a idade dos ativistas se encontra, com poucas exceções, na faixa dos 18 aos 35 anos. Mark Weinstein, ao pesquisar no início desta década participantes do movimento de ação direta britânico com idades abaixo de 30 anos – entre os quais membros do RTS, do EF! e de outros grupos anticapitalistas –, conseguiu chegar a algumas conclusões que nos são pertinentes. A grande maioria vinha de famílias de classe média com uma confortável situação financeira. Com ocasionais exceções, chegaram ao menos a cursar o ensino superior, geralmente em ciências humanas e artes. A mesma ativista a qual nos reportamos na nota acima, descreve o perfil dos ativistas como: estando entre 18 e 35 anos (majoritariamente na faixa dos 20 anos), esmagadoramente brancos e bem escolarizados, que se vestem de maneira parecida e que costumam usar cabelos engraçados. Em muitos casos os pais tinham algum envolvimento político e ajudaram a fomentar uma visão crítica nos filhos sobre questões sociais e ecológicas, segundo a pesquisa feita por Weinstein. Bastante normal era a busca pela compreensão dessas questões através de livros. A leitura em geral impulsionava-os mais ainda a se tornarem ativos politicamente. Quase sem exceção manifestações e ações de resistência como em Twyford Down, a luta contra a M11, o J18, entre outras, tiveram um importante papel inspirador. O contato com algum desses eventos muitas vezes teve um importante papel ao engajamento político.

Para a grande maioria dos ativistas de ação direta entrevistados por Weinstein, havia uma obrigação de tentar mudar o mundo, que por sua vez estaria enraizada em um forte sentimento de culpa por sua situação de classe média em um país de primeiro mundo. Essa constatação confirma a proposição do ativista brasileiro residente na Inglaterra que vimos na primeira parte desta série de artigos, de que a sensibilidade “global” dos ativistas ingleses viria em grande parte da consciência de que seu estilo de vida seria sustentado pela exploração de outros povos. Mas apesar de expressarem objetivos políticos de longo prazo – como fundar uma democracia real, com participação direta – os ativistas claramente teriam seu foco voltado para questões mais imediatas, com objetivos de curto prazo ganhando grande importância, como o sucesso de alguma ocupação ou bloqueio programado, que teria algum impacto imediato nos lucros de alguma empresa ou no retardamento de algum projeto. Essas vitórias pontuais teriam o poder de revigorar o grupo de ativistas, e seriam sentidas como grandes conquistas. Ao mesmo tempo, outro objetivo era manter o nível de ativismo de tal modo que não comprometesse a saúde psíquica e física. O burn out (esgotamento, estresse) aparecia como tema recorrente entre os ativistas.

Nas entrevistas feitas por Mark Weinstein o projeto pessoal de futuro dos ativistas aparece como o de simplesmente manter o que eles fariam no presente, conservando sua situação atual, uma vez que eles sentiriam ter controle sobre suas vidas. Nenhum plano de carreira é mencionado. A vida é vivida no presente mais imediato. No entanto, apresentariam uma lista de coisas que gostariam de evitar.
E trabalhar em empregos convencionais – mesmo como voluntário ou como caridade – sempre estava no topo dessa lista. Evitar cair na armadilha do emprego convencional, com tudo que ele teria de alienação e perda de possibilidades, seria algo altamente almejado pela maioria dos ativistas.

Essa fuga da subordinação do trabalho e mudança de subjetividade – alguns diriam perda da ética do trabalho – e a conseqüente criação de novos estilos de vida, apareceu principalmente na forma e categoria social juventude, e nos países capitalistas dominantes – como a Inglaterra – onde a margem de liberdade obtida pelos trabalhadores era maior, tornando-se factível a recusa da disciplina do trabalho. Faz-se presente no próprio meio ativista britânico a compreensão de que desde os anos 1960 as várias contraculturas anarquistas/ecológicas que surgiram foram todas predominantemente movimentos de juventude operando no espaço da autonomia cuja base material era o dole – autonomia chamada pelos próprios ativistas muitas vezes de dole autonomy. O dole seria um elemento fundamental dessa margem de liberdade.

Se nos anos 1980 o anarcopunk foi a contracultura rebelde mais notável no Reino Unido, nos anos 1990 foram, para Aufheben (1998), o movimento antiestradas e a campanha contra a Criminal Justice Bill, que reuniu diversos estilos de vida e contraculturas e criou laços que deram impulso ao RTS. E foi no contexto da luta contra a Criminal Justice Bill – que buscava criminalizar as formas de ação dos diversos grupos de ação direta e seus estilos de vida – que em 1996 o governo britânico criou o Job Seeker’s Allowance (JSA), impondo um novo conjunto de regras que dificultavam o direito ao dole, reimpondo o trabalho como imperativo econômico, significando assim um sensível ataque aos estilos de vida, contraculturas e ativismo político que tinham no dole uma importante base material.

Em geral essas contraculturas que floresceram no espaço de autonomia do dole possuem uma vida temporal restrita. Seus limites são dados por serem em grande parte contraculturas geracionais. Na apreensão de ativistas, elas falharam tanto em acolher as necessidades de seus membros mais velhos quanto em envolver novas gerações (uma exceção teria sido a contracultura traveller, na qual se poderia encontrar três diferentes gerações simultaneamente). Conseqüentemente, com vistas a objetivos de transformação social mais amplos e profundos, uma conclusão tirada por eles seria a da necessidade de algum tipo de estrutura sustentável, uma contracultura que pudesse ser mantida ao longo dos anos, evitando que acabasse quando seus membros alcançassem os 30 anos ou que os mesmos erros fossem repetidos a cada 15 anos por falta de contato e herança entre gerações, como por exemplo o aprendizado de que problemas específicos como a construção de estradas e a exploração animal estariam ligados a uma totalidade chamada capitalismo. Em suma, construir uma cultura multigeracional que pudesse manter seus partícipes por longo tempo, para que a ação direta fosse bem além de um período de “feriado de autonomia excitante” entre o fim do colegial e a entrada no mundo do trabalho e no mundo dos cuidados maternais e paternais.

Ao lado desse limite geracional, aparece ainda com mais ênfase e mais freqüência nas reflexões autocríticas de integrantes do movimento de ação direta o limite subcultural do movimento.

Mais especificamente quanto ao movimento antiestradas, ao lado do entendimento de que apesar das suas incoerências e inadequações internas o movimento expressava um lado da luta de classes – resistindo ao desenvolvimento capitalista e às necessidades do capital –, havia também o entendimento de que embora as comunidades de luta do movimento antiestradas pudessem ser muito criativas e inspiradoras, elas eram problematicamente baseadas nos limites de um movimento subcultural e de estilo de vida. Numa forte autocrítica, um ativista que assina como Paulp, em um livro publicado pelo Reclaim The Streets com reflexões e autocríticas sobre o dia de ação global J18, afirma que se trata de uma cena fashion de protesto assentada no estilo, formada majoritariamente por brancos vindos da classe média. Nesse mesmo caminho de reflexão o desafio ao movimento de ação direta é também posto nos termos de se construir e sustentar uma cultura de resistência – como oposto a uma subcultura de estilo de vida – que consiga ser tão inclusiva quanto possível.

O fato, como observa um ativista que assina como Andrew X, de forma autocrítica, é que a unidade que possuiria o movimento de ação direta não viria por terem um mesmo trabalho ou viverem numa mesma região, mas do compromisso intelectual com um conjunto de idéias. A fonte de unidade e identidade viria dos projetos autônomos (e autonomistas) desenvolvidos pelos grupos e indivíduos, formando uma “cultura do-it-yourself”. Em vários textos reflexivos de grupos e integrantes do movimento de ação direta a ação política ligada ao “ativismo” e ao estilo de vida aparece como algo altamente pessoal/personalizado, uma espécie de escolha feita num supermercado de causas, das quais as mais “sexys e inspiradoras” levariam vantagem na escolha.
Para o coletivo Aufheben, o que uniria o “outro” a esse “personal” individualizado do estilo de vida e da subcultura não seria a solidariedade, mas o sentido de liberdade de escolha moral. Dessa forma a política não estaria nascendo mais da necessidade. O mesmo aponta Andrew X ao afirmar que as lutas do movimento não se baseiam nas necessidades diretas de seus participantes, parecendo desconectadas e arbitrárias. O movimento de ação direta seria desta forma “incapaz de desenvolver um senso de prioridade coletiva ou de importância histórica”. Essa última observação, presente também em outras publicações e coletivos, é desenvolvida no sentido de apontar ao movimento a necessidade de ter uma orientação estratégica, que até então se faria ausente.

Havia também uma expectativa de que as restrições ao direito do dole, forçando conseqüentemente a que os ativistas que vivem do dole buscassem trabalho, forjasse uma base de convergência dos interesses e perspectivas de trabalhadores e ativistas, fazendo convergir assim as necessidades e perspectivas dos ativistas com as de um espectro social maior. Outra expectativa era a de que o trabalho em call centers e no telemarketing, onde normalmente iam parar muitos dos participantes do movimento de ação direta forçados a sair do dole, criasse as condições para a política do movimento de ação direta emergir da necessidade direta de seus participantes, em sua relação supostamente mais direta com o capital.

Uma questão nesse sentido foi levantada e discutida no movimento de ação direta: por que os ativistas desse movimento não voltaram seu ativismo político contra as políticas que estavam cortando e restringindo o dole, a própria base material dos seus estilos de vida e ativismo? Algo que pareceria inicialmente paradoxal, e que foi matéria de uma elaborada crítica, feita inicialmente pelo coletivo Aufheben. Enquanto protestos vigorosos e a resistência dos ativistas de ação direta – protagonizados por “desempregados” – se direcionavam à construção de estradas e davam forma às festas de retomada das ruas do RTS, o governo cortava os benefícios dos desempregados sem que esses mesmos ativistas-desempregados se levantassem contra. O fato era que uma forte cultura política sustentada na sua própria existência pelo dole escolhia, na visão de Aufheben, não defender seus interesses imediatos mas sim se concentrar em causas altruísticas como impedir a construção de estradas e salvar florestas. A conclusão de Aufheben era de que a escolha seria entre a mundana mas necessária luta contra as restrições ao dole, e a excitante e glamurosa ação eco-ativista.

Uma elucidativa resposta aos questionamentos e críticas levantadas por Aufheben, vinda também de dentro do movimento de ação direta, apareceu na oitava edição da revista Do or Die. O anônimo interlocutor – praticamente todos os textos publicados em Do or Die não são assinados – apontava que os temas e as bandeiras de luta dos acampamentos de resistência ou das festas Reclaim The Streets não eram a principal motivação por trás dos que se envolviam neles. Seria menos ainda os temas ou bandeiras de luta – retomar as ruas, impedir estradas, salvar florestas – o que faria essas atividades terem sucesso e serem largamente abraçadas. Casas em árvores e festas de rua expressariam, muito mais do que as campanhas contra a restrição do dole, a necessidade das pessoas envolvidas de transformar suas relações e vidas cotidianas e lutar por si próprias. Aí estaria a chave para se entender a escolha das bandeiras e temas de luta por parte dessa juventude ativista britânica. Quando esta dizia que as campanhas contra a JSA eram chatas, ela expressaria uma necessidade real, e não apenas uma crítica arbitrária. Expressariam exatamente que, embora podendo ser mais radical em conteúdo do que os eco-protestos, a campanha anti-JSA era muito menos radical na sua forma – tinha a forma de uma atividade política tradicional, como a levada a cabo por partidos e sindicatos.

O ponto principal, apresentado em Do or Die, seria retomar o controle sobre nossas vidas, e se isso fosse feito a partir de uma bandeira de luta pelas “árvores”, pouco importaria. Viver em um local de resistência e protesto, como os acampamentos contra construção de estradas ou os squats contra a M11, permitiria essa transformação na vida cotidiana, sendo o que atrairia tantas pessoas a esses locais de ativismo. A estrada, ou qual fosse o conteúdo do protesto em si, seria muitas vezes secundária para a criação de comunidade e para a descoberta do poder coletivo que envolveria a vivência nos locais de protesto. E isso seria expressão de uma necessidade e interesse imediato dessas pessoas. Seriam os próprios locais de protesto e a forma de ação – a ação direta que traz um sentido de aumento de poder – que teriam tornado as lutas antiestradas naquilo que se tornaram, em termos de sucesso e adesão. Podemos perceber então que a mudança de vida se dá no momento e pela própria ação (direta), o que diferencia também a relação do movimento britânico com a ação direta encontrada em outros movimentos sociais nos quais a mudança de vida almejada por seus integrantes se dá primordialmente através de uma conquista material – terra para produzir, trabalho/renda etc.
O privilégio da forma de ação sobre o conteúdo da mesma corrobora o que Chris Knight dissera sobre o RTS: a ação vem antes de tudo, e o RTS seria encarado por vários de seus mais ativos participantes mais como um movimento de faça-você-mesmo, de ação direta, do que de protesto ou festa.

À sua maneira, e com invejável autocrítica, o movimento de ação direta britânico, que foi parte importante do ciclo de lutas contra os gestores da globalização capitalista, enfrentou contradições ou tensões que movimentos sociais em geral têm que enfrentar, mas dentro das suas especificidades: tensões entre forma e conteúdo, entre resultado imediato e visão de longo prazo. Além da dificuldade de manter um movimento através dos anos, principalmente quando sua base é a juventude.

Referências usadas
Revista Do or Die: http://www.eco-action.org/dod ;
As publicações do coletivo inglês Aufheben: http://www.geocities.com/aufheben2/ ;
Entrevista com Chris Knight e Pauline Bradley, The Liverpool Dockers and Reclaim The Streets, 9 de março de 2002;
O artigo Mustn’t Grumble, assinado por Paulp, publicado no livro Reflections on J18 pelo Reclaim The Streets de Londres em 1999.
O artigo War is the Health of the State, do Brighton and Hove Stop the War Committee, publicado em Do or Die nº 8, 2000. Disponível em http://www.eco-action.org/dod/no8/
O artigo de Andrew X, Postscript of Give up Activism, em Do or Die nº 9, 2001. Disponível em http://www.eco-action.org/dod/no9/activism_postscript.htm
WALL, Derek. Earth First! and the Anti-Roads Movement: Radical environmentalism and comparative social movements. Londres: Routledge, 1999.
WEINSTEIN, Mark, Political Activity and Youth in Britain. In: TAYLOR, G.; TODD, M (eds.). Democracy and Participation: Popular Protest and New Social Movements. Londres: Merlin Press, 2004.
Practice and Ideology in the Direct Action Movement. In: Undercurrent nº 8, 2000. Disponível em http://www.geocities.com/kk_abacus/ioaa/pracideo.html

Fonte: http://passapalavra.info/

Nenhum comentário: