quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Obama, reprovado em teoria política - Por Atilio Borón



Obama, reprovado em teoria política

Obama fez alguns cursos de teoria política em Harvard. Mas seu discurso ao receber o Prêmio Nobel da Paz - distinção imerecida que até hoje motiva reações que vão do ridículo à indignação - revela que ele não aprendeu bem a lição e que sua interpretação viciada da doutrina da "guerra justa" justifica sua reprovação.

Como afirma a cientista política Ellen Meiksins Wood, uma das mais rigorosas especialistas no tema, essa doutrina sempre se caracterizou pela enorme elasticidade para ajustar-se às necessidades das classes dominantes em suas diversas empreitadas de conquista. Embora sua formulação original remonte a Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, foi a pena do dominicano espanhol Francisco de Victoria que produziu uma oportuna justificativa para a conquista da América e a submissão dos povos nativos, enquanto o jurista holandês Hugo Grotius fez o mesmo com os saques praticados pelas companhias comerciais dedicadas à partilha do Novo Mundo.

Buscando apoio nessa tradição, Obama sentenciou que uma guerra é justa "se é lançada como último recurso ou em defesa própria; se a força utilizada é proporcional; e, quando é possível, se os civis são mantidos à margem da violência". Deste modo, a versão original da doutrina experimenta uma nova redefinição para melhor responder às necessidades do império e acaba por se mesclar com a teoria da "guerra infinita" defendida pelos teóricos reacionários do "Novo Século Americano" e adotada com fervor por George W. Bush para justificar suas travessuras mundo afora. O problema é que, mesmo depois de suas sucessivas derrotas, os imperialistas desconfiavam da doutrina da "guerra justa" por não acreditar que fosse flexível o bastante para fornecer uma justificativa ética à sua pilhagem. Era preciso ir além, e a teoria da "guerra infinita" foi a resposta.

Apesar das modificações que foram enfraquecendo sua argumentação, a doutrina da "guerra justa" defendia a necessidade de atender a certos requisitos antes de ir à luta: a) era preciso haver uma causa justa; b) a guerra devia ser declarada por uma autoridade competente, com o propósito correto e só depois de esgotados todos os outros meios; c) a probabilidade de se atingirem os fins almejados devia ser elevada; e d) os meios deviam ser proporcionais a estes fins.

Ao longo dos séculos, os periódicos aggiornamenti introduzidos pelos teóricos da "guerra justa" foram relaxando estas condições, a ponto de perderem toda a importância prática.

Em seu discurso, Obama fez uma inflamada defesa da guerra no Afeganistão - apoiada, disse ele, por outras 42 nações, entre elas a Noruega - e declarou, alardeando otimismo, que a guerra no Iraque estava próxima do fim. Pelo visto, para o ocupante da Casa Branca, a interminável sucessão de mortes que ocorrem diariamente neste país graças à presença norte-americana, sobretudo de civis, é uma insignificância que não pode ofuscar o diagnóstico triunfalista difundido nos Estados Unidos pelo establishment e pela imprensa a fim de manipular a opinião pública da nação.

No entanto, mesmo deixando de lado estas considerações, é evidente que nem sequer os critérios extremamente amplos esboçados por Obama em seu discurso são respeitados por Washington no caso das guerras do Iraque e do Afeganistão: a ocupação militar não foi um último recurso, pois a quase totalidade da comunidade internacional insistia (e continua insistindo hoje) na possibilidade de uma saída diplomática para o conflito; não se pode falar em defesa própria quando o inimigo do qual é preciso se defender - o terrorismo internacional - está definido de modo tão difuso que torna impossível sua exata identificação e a da natureza de sua ameaça; a desproporção entre os agredidos e o agressor adquire dimensões astronômicas sempre que a maior potência militar da história da humanidade lança sua fúria contra populações indefesas, empobrecidas e dotadas de equipamentos bélicos rudimentares; e, finalmente, se existe alguém que não tem sido mantido à margem da fúria destruidora das Forças Armadas dos EUA, são as populações civis do Iraque e do Afeganistão.

Mentira perversa
Em resumo, não havia e não há uma causa justa para desencadear estes massacres, algo crucial para a teoria tradicional. A não ser que Obama ainda acredite que houvesse "armas de destruição em massa no Iraque" (uma mentira perversa urdida por Bush Jr., Cheney, Rumsfeld e companhia, com a cumplicidade da classe política e da "imprensa livre" dos EA); ou que Osama bin Laden e Saddam Hussein - inimigos mortais entre si - compartilhassem um projeto político antiimperialista; ou que a população afegã tivesse encomendado ao primeiro os atentados do 11 de Setembro e por isso merecesse ser castigada. Não há causa justa para nenhuma destas aventuras militares dos EUA - como não havia antes no Vietnã, ou na Coreia, ou em Granada, ou no Panamá, ou na República Dominicana - e não é mera coincidência que Obama tenha evitado qualquer menção a esta tradicional cláusula em seu discurso. Em sua visão peculiar - que é a visão dos círculos dominantes do império -, a "guerra justa" transforma-se na "guerra infinita".

Na linha desta doutrina, Obama também viola a cláusula tradicional segundo a qual, ao entrar em guerra, uma nação deve ter uma chance razoável de alcançar o objetivo combinado. E, se existe algo que a história recente demonstrou à exaustão, é que o terrorismo não desaparecerá da face da Terra por meio da guerra. Obama citou em seu discurso uma frase de Martin Luther King: "A violência nunca irá trazer a paz permanente. Ela não resolve nenhum problema social; só cria outros, mais complexos." Mas logo em seguida argumentou que, como chefe de Estado, juramentado para proteger e defender seu país, não pode se guiar apenas pelos ensinakmentos de King ou de Mahatma Gandhi diante das ameaças que afligem os norte-americanos.

O discurso paranóico, patológico até a medula, dos ideólogos neoconservadores reaparece nos lábios de paladino do progressismo norte-americano: sempre a ameaça, seja dos comunistas, do populismo, do narcotráfico, do fundamentalismo islâmico ou do terrorismo internacional. Mas estas ameaças, mais imaginadas do que reais, são um ingrediente necessário para justificar a expansão ilimitada do gasto militar e a enorme rentabilidade que isto representa para os gigantescos oligopólios em torno do grande negócio da guerra. Sem elas, seria impossível justificar o predomínio do complexo militar-industrial e os subsídios fabulosos que ele recebe, ano após ano, com o dinheiro aportado pelos contribuintes norte-americanos. Tampouco teria sido possível a exorbitante militarização da sociedade norte-americana, que se projeta para fora com sua agressiva política externa e para dentro com a presença esmagadora das forças repressoras de inteligência, facilitada pela legislação "antiterrorista" de Bush Jr., que suprimiu boa parte das liberdades civis e políticas existentes nos Estados Unidos.

O resultado desta indiferença ante a cláusula tradicional que exigia uma alta probabilidade de a ação bélica atingir os fins declarados não é outro além da total autonomização da iniciativa militar. Como Meiksins Wood mostrou com perspicácia em Empire of Capital, nesta nova versão da teoria, a resposta militar se justifica mesmo que não exista nenhuma possibilidade de êxito. Ou, pior ainda, sob estas novas condições, a agressão militar do imperialismo já não precisa de nenhuma meta específica nem de nenhum inimigo claramente definido e identificado. A guerra não precisa de objetivos claramente delimitados e torna-se um fim em si mesma; um fim inalcançável e, portanto, infinito. Longe de ser uma situação excepcional, a guerra se transforma em uma atividade perpétua: uma guerra infinita contra um inimigo não identificável cujos contornos mutantes - hoje um comunista, amanhã o populista, depois o "terrorismo internacional" e assim por diante - são desenhados, com absoluta arbitrariedade, pelo Ministério da Verdade do império, cuja missão não é outra além de falsificar a realidade e fabricar o consenso de que necessitam os dominantes. Não seria exagero afirmar que as piores previsões de George Orwell sobre a produção de desinformação não só se confirmaram, mas foram superadas pelo aparato cultural norte-americano. Graças a este dispositivo de manipulação e controle ideológico, o grande negócio da produção e venda de armamentos se imuniza contra as vicissitudes do ciclo econômico. Guerra infinita é outra maneira de dizer ganhos infinitos e permanentes.

Discurso decepcionante
O ácido comentário da ex-secretária de Estado de Bill Clinton, Madeleine Albright, resume muito bem o espírito e as premissas subjacentes a esta derradeira degradação da doutrina tradicional: "Para que serve um Exército tão formidável, se não podemos usá-lo?" Este é o ponto, pois o uso e a periódica destruição deste impressionante maquinário militar são necessários para a prosperidade dos negócios do complexo militar-industrial. Com sua impressionante desenvoltura, Albright revelou o que muitos ideólogos do império tratam de silenciar a todo custo.

O discurso de Obama foi decepcionante. Por mais que o Prêmio Nobel da Paz tenha se desvalorizado - cabe lembrar que ele foi outorgado a um criminoso de guerra como Henry Kissinger -, o presidente dos Estados Unidos deveria ter sido capaz de elaborar um argumento que, sem cair num pacifismo inverossímil, pelo menos se distanciasse um pouco da tônica ideológica imposta por Bush Jr. e seus comparsas. Não foi. E mais: há fortes suspeitas de que alguns de seus speechwriters também tenham trabalhado para seu nefasto antecessor.

Esta continuidade não causaria surpresa. Obama manteve no cargo o secretário da Defesa nomeado por Bush Jr., Robert Gates, e, recentemente, propôs para a secretaria de Estado ajdunta de Investigação e Inteligência o nome de Philip Goldberg, expulso da Bolívia pelo presidente Evo Morales em 10 de setembro de 2008 por sua descarada participação nas intentonas separatistas do prefeito do Departamento de Santa Cruz, Rubén Costas. Diante desse quadro, as esperanças alimentadas pela irracional "obamamania" cultivada pelas boas almas progressistas parecem hoje mais ilusórias e absurdas que nunca.

* Atilio Borón é sociólogo e professor da Universidade de Buenos Aires.

Fonte: http://www.operamundi.com.br/

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