Teoria e realidade em tempos de desilusões: Sobre escritos de Negri & Hardt [*]
A grande transformação que a humanidade vivencia, a consolidação do modelo neoliberal de sociedade, não significa para Negri outra coisa a não ser a vitória da multidão. A transformação que nos interessa não é a que está em curso. Por Fernando Paz
“Aquela pureza da louça, a sua fragilidade, a ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar, diziam-me a mim que aquele objeto tinha sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos…”
(Lima Barreto, O homem que sabia javanês)
No livro O trabalho de Dioniso Antonio Negri e Michael Hardt afirmam que toda a gigantesca transformação que o mundo vive, principalmente desde 1970, é a expressão da vitória do trabalho imaterial sobre o capital numa nova sociedade − a sociedade-fábrica. Alguns escritos de Sergio Lessa nos ajudam a compreender que o conceito de trabalho imaterial no pensamento de Negri e Hardt significa, a um só tempo, a explicação sobre o fim da diferença entre trabalho, circulação e consumo, e também o fim da diferença entre trabalho e capital, entre valor de uso e de troca. Assim, a mercadoria torna-se um produto ideológico.
Simplesmente por ser parte de um mercado, o consumidor em potencial – levado à aquisição de mercadorias pelo encontro das necessidades do estômago ou do espírito com as condições objetivas – torna-se elemento constitutivo desse novo tipo de produto ideológico.
Mais do que isso, os sujeitos sociais estariam assumindo uma função produtiva no ato do recebimento das mercadorias adquiridas. Essa ação é vista por Negri e Hardt como ato criativo e parte constituinte do próprio produto ideológico. É o fim dos indivíduos alienados: a multidão se comunica e produz, faz circular, vende, compra, muda o estilo de vida, põe fim à luta de classes, passa a viver como comunista, a trabalhar como comunista, a pensar como comunista… Tudo isso apenas através de uma comunicação que privilegiaria o amor para um novo tempo de moral e de costumes comunistas que estariam sendo constituídos desde o Renascimento. [1]
Lessa critica a empregabilidade acrítica do conceito de trabalho imaterial. Segundo ele, esse conceito corresponde à tese sobre algo que é “muito mais que uma interpretação das novas formas de produção e de gerência” do capital, pois “inclui uma concepção política cujo cerne é a proposição de um ‘comunismo’ compatível com o mercado, com o dinheiro, com a propriedade privada e o Estado.” [2]
Essa concepção política do conceito, cujo cerne seria a proposta de um “comunismo burguês”, traz à tona um problema. Afinal, por que não podemos concordar que produção, consumo e distribuição são as mesmas coisas? Produzir, vender, comprar e andar em uma Ferrari não são as mesmas coisas? O problema é que na verdade, por mais que nos esforcemos, só conseguimos constatar que freqüentemente há uma interligação entre as relações sociais de produção, na atualidade em níveis internacionais (divisão internacional do trabalho e trabalho socialmente combinado) e que as mesmas são imprescindíveis à materialidade desses três conceitos (produção, distribuição e consumo); mas tão somente isso. As coisas estão interligadas, mas não são as mesmas.
Ainda sobre a concepção política do conceito de trabalho imaterial, a proposta de um “comunismo burguês” traz em si o projeto político da não-superação das classes sociais e do Estado, e a continuação do controle do processo produtivo nas mãos do capital. Assim esse conceito, quando trazido à realidade, mostra-se carregando o antagonismo que o jogará ao chão, isto é, escancarando sua falta de utilidade prática para transformar o mundo.
Não seria o erro dos erros acreditarmos que produção, consumo e distribuição são as mesmas coisas? E que o que eles chamam de trabalho imaterial constitui também o fundamento da sociedade atual, que já é a nova sociedade, a sociedade-fábrica?
Outro desdobramento problemático que nos chama a atenção nesse conceito está ligado ao projeto de um “comunismo burguês” para a sociedade atual. Como é possível compreendermos um conceito que não se sustenta na realidade, deriva de uma leitura errônea acerca dos diferentes estágios de desenvolvimento das sociedades capitalistas, no centro e na periferia, e ainda supostamente concentraria sua análise na conjuntura global, propondo uma estratégia política? Percebo que Negri sustenta parte de suas posições na seguinte afirmação:
“El siglo XX ha aumentado enormemente el umbral de posibilidades de la acción revolucionaria comunista ya que, frente a la profundización de la generalización de la explotación capitalista del trabajo, ha ofrecido al proletariado los medios adecuados (trabajo inmaterial-intelectual, cooperación social ampliada, posibilidades de movilidad internacional, etcétera) para militar en esta dirección”. [3]
No livro mais famoso produzido pela dupla – Império –, consta a afirmação acerca da inutilidade da diferenciação entre países do centro e da periferia. Atílio Boron lembra bem que é nessa periferia do globo que ainda reside 4/5 da humanidade como também indica-nos a necessidade de uma ruptura crítica em relação a um dos axiomas de Negri e Hardt – o fim da divisão centro/periferia. Com isso busco apontar que, para a dupla, é possível a afirmação de uma única leitura de conjuntura global, de um mundo homogeneizado que sabemos não existir.
Ricardo Antunes nos ajuda a entender o que de fato essa sociedade não homogeneizada e determinada pelo capital tem a nos oferecer em meio a tantas transformações. “A partir do início da década de 70, como resposta do capital à sua própria crise, iniciou-se um processo de reorganização produtiva em escala global, ainda que de modo bastante diferenciado, bem como de seu sistema ideológico e político de dominação, cujos contornos mais evidentes foram o advento do neoliberalismo, a privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal, da qual a era Thatcher-Reagan foi expressão mais forte. A isso se seguiu também um intenso processo de reestruturação da produção e de trabalho, com vistas a dotar o capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de expansão anteriores”. [4]
Assim, compreendo que Negri só vê na reestruturação produtiva e na nova configuração da classe trabalhadora a nível mundial o espaço fecundo e oportuno para o acirramento da luta daqueles que militam pelo comunismo, sem perceber a dialética do processo, ou seja, não vê que a reestruturação e a re-configuração que aprofunda a extração de mais-valia é a mesma que distancia os trabalhadores das organizações classistas – alvos constantes das contra-reformas neoliberais. Aqui a questão se complica um pouco mais, já que esse distanciamento entre trabalhadores e organizações classistas se dá pela destruição estatal dessas organizações, pela ação de muitos de seus diretores que, aproveitando-se das estruturas altamente hierarquizadas, do poder de decisão que não se encontra nas mãos dos trabalhadores e de inúmeros privilégios conseguidos por fora do trabalho, atrelam-nas aos Estados.
Tamanha nova formatação de classe e do processo produtivo, que temos vivido com a reestruturação produtiva, tem empurrado números alarmantes da força de trabalho ao mercado informal, que é via de regra altamente precarizado. Somam-se a isso, outros resultados de políticas neoliberais, como a flexibilização de direitos, desregulamentação da jornada de trabalho, redução da renda de todos os tipos e crescente piora nas condições de vida e trabalho.
Do ponto de vista econômico estas mudanças forçam, muitas vezes, a luta política pela manutenção dos velhos direitos e não pela conquista do novo. Além disso, na atualidade, os movimentos sociais têm a difícil tarefa de organizar para a luta esse mar de novos excluídos. Esses são alguns fatores que dificultam o fluxo das lutas, e não facilitam ações revolucionárias como acredita Negri.
Nas palavras de Antunes, também podemos perceber o que o capital fez e continua fazendo, do ponto de vista ideológico. “Opondo-se ao contra-poder que emergia das lutas sociais, o capital iniciou um processo de reorganização das suas formas de dominação societal, não só procurando reorganizar em termos capitalistas o processo produtivo, mas procurando gestar um projeto de recuperação de hegemonia nas mais diversas esferas da sociabilidade. O fez, por exemplo, no plano ideológico, através do culto de um subjetivismo e de um ideário fragmentador que faz apologia ao individualismo exacerbado contra as formas de solidariedade e de atuação coletiva e social”. [5]
A grande transformação que a humanidade vivencia, a consolidação do modelo neoliberal de sociedade, não significa para Negri outra coisa a não ser a vitória da multidão. A transformação que nos interessa não é a que está em curso. Negri não aposta suas fichas na propaganda teórica do socialismo libertário, nem na difusão de práticas revolucionárias e ações diretas de resistência e exigências contra o capital, como as melhores táticas para alcançarmos a estratégia final do projeto político contra-hegemônico. Ainda continua sendo uma incógnita a resposta para esta pergunta: quais são as táticas a serem usadas? Para Negri essa pode até ser uma questão ilícita, mas para inúmeros companheiros e companheiras de esquerda, encontrar essa resposta continua sendo uma necessidade tão em pé quanto as determinações do capital. Perguntada de outra forma: como levar às ruas milhões de trabalhadores que já não fazem outra coisa de suas vidas a não ser trabalhar, em jornadas extenuantes, nas condições mais precárias e, em meio ao mercado extremamente competitivo e excludente?
No século 20 diversos teóricos de esquerda se distanciaram, mais física do que intelectualmente, da classe trabalhadora, por força da perseguição política e ascensão do stalin-nazi-fascismo. Essa não é a razão, nem os motivos são parecidos, mas Antonio Negri, Maurizio Lazzarato e Michael Hardt – para ficarmos com poucos exemplos – hoje também se distanciam dos explorados, mesmo quando afirmam estar ao lado deles, já que formatam teses que pouco agregam aos nossos esforços pela mudança radical da sociedade.
Notas
[*] Meus agradecimentos ao companheiro Nills Skare pela revisão.
[1] Cf. Lessa, Sergio. “Trabalho imaterial, classe expandida e revolução passiva: uma crítica a Negri e outros.” Revista Crítica Marxista. n. 15. São Paulo: Ed. Boitempo, 2002.
[2] Lessa, Sergio. “A materialidade do trabalho e o trabalho imaterial”. Revista Outubro. n. 8. São Paulo: Revista do Instituto de Estudos Socialistas, 2003.
[3] Toni Negri entrevistado por Herramienta. Revista Herramienta. n.15. Buenos Aires: Ed. Antídoto, 2001.
[4] Antunes, Ricardo. Revista Crítica Social. n. 1. Rio de Janeiro: Ed. ADIA, 2003.
[5] Idem.
Bibliografia
Antunes, Ricardo. Revista Crítica Social. n. 1. Rio de Janeiro: Ed. ADIA, 2003.
Boron, Atílio. “O Império e a teoria marxista do imperialismo”. Revista Crítica Social, n.5. out-dez. Rio de Janeiro: Ed. ADIA, 2004.
Lazzarato, Maurizio. “Trabalho autônomo, produção por meio de linguagem e General Intellect”. In: trabalho imaterial. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001.
Lessa, Sergio. “A materialidade do trabalho e o trabalho imaterial”. Revista Outubro. n. 8. São Paulo: Revista do Instituto de Estudos Socialistas, 2003.
Id. “Trabalho imaterial, classe expandida e revolução passiva: uma crítica a Negri e outros”. Revista Crítica Marxista. n. 15. São Paulo: Ed. Boitempo, 2002.
Negri, Antonio & Hardt, Michel. O Trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado pós-moderno. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2004.
Id. et al. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
Toni Negri entrevistado por Herramienta. Revista Herramienta. n.15. Buenos Aires: Ed. Antídoto, 2001.
Fonte: http://passapalavra.info/
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