quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

EUA: Presidência e conversa mole - Por Tariq Ali


EUA: Presidência e conversa mole

Um ano depois de a presidência dos Estados Unidos ter mudado de mãos, o que mudou no império norte-americano? Durante o governo Bush, a "grande" imprensa e boa parte da seção amnésica da esquerda repetia que os EUA estariam sob o poder de um regime aberrante, produto de praticamente um golpe de Estado aplicado por um pequeno grupo de direitistas fanáticos – combinado à corporações ultrarreacionárias – que teria sequestrado a democracia, pondo-a a serviço de agressões jamais vistas contra o Oriente Médio.

Em resposta a isso, os EUA teriam eleito um mestiço filiado ao Partido Democrata que prometia curar todas as feridas "domésticas" e restaurar a boa reputação dos EUA no mundo. Esse presidente foi recebido com uma onda de euforia ideológica jamais vista desde os dias de Kennedy. Outra vez, os EUA mostrariam sua verdadeira face – decididos, mas pacíficos; firmes, mas generosos; humanos, respeitosos, multiculturalistas – ao mundo.

Naturalmente, como um Lincoln ou um Roosevelt de nossos tempos, o novo jovem presidente dos EUA teria de fazer concessões, como qualquer estadista. Mas, pelo menos, estaria acabado o vergonhoso interlúdio de bandidagem e criminalidade dos republicanos. Bush e Cheney haviam interrompido a continuidade de uma liderança norte-americana multilateral que tanto bem fizera ao país durante a Guerra Fria e depois dela. Obama recuperaria esse fio da meada.

Em raras vezes a mitologia da autopromoção – ou ingenuidade bem-intencionada – foi tão rapidamente desmascarada. Não houve qualquer rompimento fundamental na política externa, como oposta às cantilenas diplomáticas, entre os governos Bush 1, Clinton e Bush 2; tampouco houve qualquer mudança importante entre os governos Bush e Obama. Os objetivos estratégicos e imperativos dos EUA continuam os mesmos; tampouco mudaram os principais teatros e os meios de operação.

Desde o colapso da União Soviética, a Doutrina Carter (a construção de um novo pilar democrático de direitos humanos) definiu o Oriente Médio estendido como campo de batalha central para a imposição do poder norte-americano em todo o mundo. Basta olhar para cada setor para ver que Obama é produto de Bush, como Bush, de Clinton; e Clinton, de Bush-pai, em ritmo de filiação bíblica.

Ignorando Gaza
A posição de Obama a favor de Israel já estava manifesta antes da posse. No dia 27/12/2008, o Exército de Israel lançou um ataque mortífero, por terra e ar, contra a população de Gaza. Os bombardeios, incêndios provocados e a matança generalizada continuaram sem interrupção por 22 dias, tempo durante o qual o presidente-eleito não enunciou uma sílaba sequer de reprovação.

Conforme planos já existentes, Tel-Aviv suspendeu os ataques algumas horas antes da posse de Obama, dia 20/1/2009, para não estragar a festa. Àquela altura, Obama já nomeara um doberman ultra-sionista de Chicago, Rahm Emanuel, ex-voluntário do Exército de Israel, para trabalhar em seu gabinete como principal assessor da presidência.

Imediatamente depois da posse, Obama – como todos os presidentes dos EUA – falou a favor da paz entre os dois povos sofredores da Terra Santa e, outra vez como todos os que o antecederam, pediu que os palestinos reconhecessem Israel e que Israel suspendesse as construções nos territórios que invadiu e ocupou em 1967. Uma semana depois do discurso de Obama no Cairo, em que se manifestou contra a criação de novas colônias israelenses na Palestina, a coalizão de Netanyahu já ampliava impunemente o roubo de terra árabe em Jerusalém Oriental.

No segundo trimestre, a secretária de Estado, Hillary Clinton, deu parabéns a Netanyahu por ter feito “concessões sem precedentes”. Numa entrevista coletiva em Jerusalém, o correspondente Mark Landler, do New York Times, perguntou à secretária: “Quando a senhora esteve aqui na primeira visita, falou duramente contra a demolição de casas de árabes em Jerusalém Oriental. Mesmo assim, as demolições prosseguiram e, de fato, há alguns dias, o prefeito de Jerusalém assinou nova ordem para demolir mais casas de árabes. O que a senhora teria a comentar hoje sobre a mesma política?”.

Hillary ignorou a pergunta.
Um mês antes, uma comissão de investigação da ONU nomeada para examinar denúncias sobre a invasão de Gaza relatara que o Exército de Israel praticara atos criminosos que não deixavam de ser criminosos por terem sido ou provocados ou respondidos com foguetes caseiros disparados pelo Hamas.

Comandada por um dos mais aplicados e reconhecidos juízes especialistas em "direito internacional", o juiz sul-africano Richard Goldstone, que já trabalhara em sessão pré-orquestrada do Tribunal de Haia sobre a Iugoslávia e é um conhecido e professo sionista, as acusações contra Israel foram reduzidas ao mínimo necessário para garantir alguma credibilidade ao relatório. Há impressionantes diferenças entre os testemunhos que a Comissão da ONU realmente ouviu e o que se lê no relatório.

Mas, não habituada a receber críticas de qualquer tipo, Tel-Aviv reagiu com fúria e Washington ordenou a seu cliente e chefe do complô, Mahmoud Abbas, que se opusesse ao relatório na ONU.

Pareceu demais até para os seguidores de Abbas, e Abbas desobedeceu. Mas houve reações violentas e Abbas teve de se retratar, o que o desacreditou ainda mais. O episódio confirmou que o controle do AIPAC sobre Washington continua tão forte como sempre – ao contrário do que supõem alguns iludidos da esquerda dos EUA, para os quais o lobby israelense estaria envelhecido e sem força, e estaria sendo substituído por algum ramo mais "ilustrado" do sionismo norte-americano.

Guerra civil
No teatro palestino do sistema norte-americano, a ausência de novidade significativa não implica ausência de movimento. Considerada de um ponto de vista mais amplo, a política dos EUA tem sido, há algum tempo, estimular a ação de Israel na direção de criar um ou mais bantustões, o que atende perfeitamente bem seus interesses.

Para tanto, é claro, é indispensável eliminar qualquer possível liderança palestina legítima, ou Estado palestino real. Os acordos de Oslo foram um primeiro passo desse processo, destruindo a credibilidade da OLP e instaurando uma "Autoridade Palestina" que não passe de fachada para a única real autoridade nos territórios ocupados: o Exército de Israel.

Incapaz de obter qualquer respeitabilidade ou autoridade, por mais cerimonial que fosse, a liderança da OLP na Cisjordânia passou a dedicar-se a fazer fortuna, abandonando definitivamente a luta pelos interesses do povo palestino, entregue à pobreza mais absoluta e regularmente exposto à violência dos colonos judeus.

Trabalhando na direção oposta, e criando um sistema primitivo mais eficaz de bem-estar social, capaz de distribuir assistência médica, remédios e alimentos nas áreas mais miseravelmente pobres, e com creches e asilos para velhos e doentes, o Hamas conseguiu ganhar apoio popular e venceu as eleições palestinas de 2006. Europa e EUA reagiram imediatamente com o boicote político-econômico e apoiaram a volta do partido Fatah ao poder na Cisjordânia.

Em Gaza, onde o Hamas era mais forte, Israel tentou durante algum tempo inflar Mohammed Dahlan para que liderasse um golpe – Dahlan é o chefe-de-quadrilha favorito de Washington, dentro do aparelho de segurança da OLP. Em depoimento à Comissão de Negócios Estrangeiros e Defesa da Knesset (parlamento de Israel), ministro da Defesa, Ben-Eliezer, contou que, em 2002, quando o Exército de Israel retirou-se de Gaza, ofereceu a Faixa a Dahlan, que desejava provocar a guerra civil na Palestina que tanto perturbava a vida dos colonos judeus.

Convergência
Quatro anos antes, Dahlan recebera ajuda de Washington para promover um golpe militar na Faixa de Gaza, mas foi vencido pelo Hamas, que assumiu o controle do território em meados de 2007. Depois do bloqueio como punição política e econômica pelo fato de os eleitores palestinos terem resistido aos desejos expressos euro-norte-americanos, veio o ataque israelense do final de 2008 –, em relação ao qual Obama "piscou".

Mas o resultado, agora, não é o impasse sempre regular e pontualmente lamentado pelos sonhadores que ainda esperam “acordos de paz”. Depois de repetidos golpes, e cada vez mais isolada, a resistência palestina está sendo paulatinamente minada e enfraquecida, a ponto de o próprio Hamas – sem conseguir desenvolver qualquer estratégia coerente, nem de romper o compromisso dos acordos de Oslo, dos quais também o Hamas tornou-se prisioneiro – começar a considerar a possibilidade de aceitar o nada que Israel oferece, paramentado com outros "nadas" que o ocidente oferece.

Não há nenhum tipo significativo de Autoridade Palestina. Deputados eleitos pela Cisjordânia ou Gaza são tratados como enviados de ONGs de mendigos: recebem migalhas se permanecem ajoelhados e seguem o que o ocidente ordena; e castigos, se saem da linha.

Racionalmente, os palestinos fariam melhor se dissolvessem a Autoridade e exigissem direitos iguais de cidadania num único Estado, apoiados em campanha internacional a favor do boicote a Israel, desinvestimento e sanções, até que se desmantelem todas as estruturas de apartheid vigentes em Israel.

Na prática, há pouca ou nenhuma probabilidade de isso acontecer em futuro próximo. O que se deve prever, muito mais provavelmente, é a convergência – já promovida e elogiada no jornal israelense Haaretz como mais brilhantemente iluminada que a de Rabin – de Obama e Netanyahu, na direção de uma solução final, com várias entidades ‘palestinas’ com as quais Israel poderá conviver e nas quais morrerá a Palestina.

*Tariq Ali é historiador, autor de Choque de Fundamentalismos, entre outros livros. Artigo publicado na revista New Left Review.

Fonte: http://www.operamundi.com.br/

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