quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A retomada corporativa da democracia dos EUA – Por Noam Chomsky


A retomada corporativa da democracia dos EUA
Por Noam Chomsky - Do The New York Times

21 de janeiro de 2010 entrará para a história como um dia sombrio na democracia dos EUA, assim como de seu declínio.

Nesse dia, a Suprema Corte dos EUA decidiu que o governo não pode banir corporações das despesas políticas em eleições - uma decisão que afeta profundamente a política governamental, tanto doméstica quanto internacional.

A decisão anuncia uma retomada corporativa ainda maior do sistema político dos EUA.

Para os editores do New York Times, a decisão "atinge o coração da democracia", tendo "pavimentado o caminho para que as corporações usem seus gordos cofres para derrotar e intimidar autoridades eleitas para que votem de acordo com seus interesses".

A corte estava dividida, 5-4, os quatro juízes reacionários (erroneamente chamados de "conservadores") uniram-se ao Juiz Anthony M. Kennedy. O Chefe de Justiça John G. Roberts Jr. selecionou um caso que poderia ser facilmente estabelecido sobre estreitas bases e manobrou a corte para a aprovação de uma decisão de longo alcance, subvertendo um século de precedentes que restringem as contribuições corporativas a campanhas federais.

Agora, os gerentes corporativos podem, de fato, comprar eleições diretamente, contornando meios indiretos mais complexos. Sabe-se bem que as contribuições corporativas, algumas vezes disfarçadas em formas complexas, podem derrubar o equilíbrio nas eleições, orientando, assim, a política. A corte acabou de dar muito mais poder ao pequeno setor da população que domina a economia.

A teoria da política como investimento, do economista político Thomas Ferguson, é um indicador muito bem-sucedido da política do governo por um longo período. A teoria interpreta as eleições como ocasiões nas quais os segmentos do poder do setor privado se aglutinam para investir e controlar o estado.

A decisão de 21 de janeiro apenas reforça os meios para minar a democracia funcional.

O contexto é esclarecedor. Em sua discordância, o Juiz John Paul Stevens reconheceu que "temos afirmado que as corporações estão protegidas pela Primeira Emenda" - a garantia constitucional do livre discurso, que incluiria apoio a candidatos políticos.

No início do século 20, as cortes e os teóricos jurídicos implementaram a decisão judicial de 1886, de que as corporações - essas "entidades jurídicas coletivistas" - têm os mesmos direitos que as pessoas de carne e osso.

Este ataque ao liberalismo clássico foi duramente condenado pela raça em extinção dos conservadores. Christopher G. Tiedeman descreveu o princípio como "uma ameaça à liberdade do indivíduo e à estabilidade dos estados americanos como governos populares".

Morton Horwitz escreve em sua história jurídica padrão, que o conceito de pessoa corporativa se desenvolveu junto à mudança de poder dos acionistas para os gerentes, e finalmente a doutrina de que "os poderes da diretoria são idênticos aos poderes da corporação." Nos últimos anos, os direitos corporativos foram expandidos para muito além de tais pessoas, notavelmente pelos erroneamente rotulados como "acordos de livre comércio". Sob tais acordos, por exemplo, se a General Motors montar uma fábrica no México, ela pode solicitar ser tratada como uma empresa mexicana ("tratamento nacional") - bem diferente de um mexicano de carne e osso que busca o "tratamento nacional" em Nova York, ou mesmo mínimos direitos humanos.

Há um século, Woodrow Wilson, então um acadêmico, descreveu uma América na qual "grupos comparativamente pequenos de homens", gerentes corporativos, "exercem um poder e um controle sobre a riqueza e as operações empresariais do país", tornando-se "rivais do próprio governo".

Na realidade, esses "pequenos grupos" cada vez mais se tornaram os mestres do governo. A corte de Roberts dá a eles um escopo ainda maior.
A decisão de 21 de janeiro veio três dias após outra vitória da riqueza e do poder: a eleição do candidato Republicano Scott Brown para substituir o falecido Sen. Edward M. Kennedy, o "leão liberal" de Massachusetts. A eleição de Brown foi descrita como uma "onda populista" contra os elitistas liberais que concorrem ao governo.

Os dados da votação revelam uma história bem diferente.
Altos índices de presença de eleitores em ricos subúrbios, em contraposição aos baixos índices em áreas urbanas de maioria Democrática, ajudaram a eleger Brown. "Cinquenta e cinco por cento dos eleitores Republicanos afirmaram que estavam "muito interessados" na eleição," revelou a pesquisa do Wall St. Journal/NBC, "em comparação com 38 por cento dos Democratas".

Assim, os resultados foram, na verdade, uma insurreição contra as políticas do Presidente Obama: para os ricos, ele não estava fazendo o suficiente para enriquecê-los ainda mais, enquanto que para os setores mais pobres, ele estava fazendo muito para atingir tal objetivo.

A raiva popular é muito compreensível, dado que os bancos estão crescendo, graças aos pacotes, enquanto o desemprego já chegou a 10 por cento.

Na produção, um em cada seis está sem trabalho - o mesmo nível de desemprego que ocorreu durante a Grande Depressão. Com a crescente financialização da economia e com o esvaziamento da indústria produtiva, as perspectivas são desanimadoras em relação à recuperação dos tipos de empregos que foram perdidos.

Brown se apresentou como o 41° voto contra o plano de assistência à saúde - ou seja, o voto que poderia solapar a regra da maioria no Senado dos EUA.

É verdade que o programa de assistência à saúde de Obama foi um fator decisivo na eleição de Massachusetts. As manchetes estão corretas quando relatam que o público está se voltando contra o programa.

Os números da pesquisa explicam o motivo: a lei não vai muito longe. A pesquisa realizada pelo Wall St. Journal/NBC descobriu que a maioria dos eleitores desaprova a gestão da assistência à saúde, tanto dos Republicanos quanto de Obama.

Esses números alinham-se com as recentes pesquisas nacionais. A opção pública foi favorecida por 56 por cento dos entrevistados, e a compra da Medicare por pessoas na faixa 55 anos de idade, por 64 por cento; ambos os programas foram abandonados.

Oitenta e cinco por centro acreditam que o governo deve ter o direito de negociar preços de medicamentos, assim como ocorre em outros países; Obama garantiu à Big Pharma que ele não buscaria tal opção.

As grandes maiorias favorecem o corte de custos, o que faz sentido: os custos per capita dos EUA para assistência à saúde são cerca do dobro daqueles de outros países industriais, e os resultados na saúde são fracos.

Contudo, o corte de custos não pode ser seriamente realizado quando contribuiçoes são fartamente distribuídas a empresas do ramo farmacêutico, e quando a assistência à saúde está nas mãos de seguradoras privadas não-reguladas - um sistema oneroso, peculiar aos EUA.

A decisão de 21 de janeiro faz surgir novas e significativas barreiras à tentativa de superar a séria crise na saúde, ou à abordagem de questões cruciais, como as crises ambiental e energética. A lacuna entre a opinião pública e a política pública ameaça ficar maior. E o dano à democracia dos EUA não pode ser subestimado.

Noam Chomsky é professor emérito de lingüística e filosofia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts em Cambridge, Massachusetts. Artigo distribuído pelo The New York Times Syndicate.

Fonte: http://terramagazine.terra.com.br/

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