A liberdade de informação e a descontextualização da história.Não vale a pena discorrer sobre as boas ou más intenções daqueles que nos trazem um pedaço da verdade. Agradecer e ponto. A verdade é sempre revolucionária.
Não vale a pena discorrer sobre as boas ou más intenções daqueles que nos trazem um pedaço da verdade. Agradecer e ponto. A verdade é sempre revolucionária. Nos últimos meses, o imperialismo tem sido exposto, em milhares de documentos secretos ou confidenciais que o WikiLeaks revelou. O que todos nós sabíamos, e eles - em uma combinação de força cínica - não negavam, satisfeitos com a suspeita que incute medo, mas diziam: provem. Aqui estão as provas, ainda que perdidas entre milhares de páginas e palavras vazias.
Algumas notícias mostram que a diplomacia imperial é uma combinação de espionagem, chantagem e interferência grosseira nos assuntos internos de seus "amigos" e inimigos. Outras revelam assassinatos traiçoeiros no Afeganistão e no Iraque, e a cumplicidade de políticos que se dizem democratas na Europa com o assassinato e a tortura. Os grandes meios de comunicação feitos para desinformar torcem seu conteúdo e em seguida começam a "esquecê-los".
Por isso, essas centenas de milhares de documentos devem ser conhecidas, estudadas, divulgadas ertre nós, vítimas reais ou potenciais. Enquanto isso, a maquinaria transnacional para a reconstrução da notícia selecionada e manipula informações, e logo as enterra, para se concentrar na figura de Julian Assange. Porque a pergunta feita pelos governos implicados e os seus meios não é se a ocultação sistemática por um estado de crimes impunes é ou não é, em si, um crime, mas o seu oposto absurdo: se revelar esse crime é um crime.
E é aqui que quero refletir sobre outro lado de um fenômeno, que segue uma linha de comportamento bem definida desde a década de noventa do século passado: a chamada desideologização da verdade e da mentira, do bem e do mal. Talvez o termo não seja exato, uma vez que o conceito de ideologia aceita múltiplos significados. Coloquemos de forma menos confusa: a descontextualização dos fatos históricos. A remoção consciente de qualquer sentido opressor ou libertador, de classe, na análise.
De imediato, abro um parêntese para introduzir uma afirmação que compartilho inteiramente: o fim não justifica os meios. Ser revolucionário não é o compromisso com uma teoria, mas com uma ética, e deve existir sempre uma consequência entre fins e meios. Os revolucionários que violaram ou confundiram seu compromisso ético deixaram de sê-lo. Por isso, a verdade é revolucionária: a verdade e a justiça não podem ser alheias. E não o são, porque a verdade social não é como a maçã de Newton: não cai de forma irrevogável para baixo. Todas as supostas verdades científicas que apoiaram a opressão humana se revelaram falsas: desde as diferenças raciais até o chamado darwinismo social. A verdade social ou procura a felicidade humana, ou é uma mentira.
A primeira e mais abrangente tentativa postcomunista - para falar em termos próximos aos teóricos da desesperança - de apagar qualquer análise sobre o contexto foi a substituição de conceitos como fascismo ou comunismo, pelo do totalitarismo. A substituição das essências, por "certas" formas. É o que nos permitiria dizer que na Espanha e no Chile houve transições, quando, na verdade, nesses países - momentaneamente vencidos os movimentos de resistência -, se produziram simples mudanças de forma na implementação do capitalismo e de sua repressão interna. Tanto é assim, que foram Franco e Pinochet que os desenharam.
Mas, em última instância, o sistema pode prescindir de servidores como eles. Precisamente, entre os antecedentes dessa posição abstrata encontramos um juiz espanhol, amplamente promovido pelos meios de comunicação: Baltasar Garzón. O mandado de prisão contra Pinochet durante sua estadia em Londres, moralmente irrepreensível e bastante aplaudido por todos os homens e mulheres honestos do mundo - para não referir-me à esquerda -, era uma ação inquestionável, mesmo para uma direita que desejava se livrar de seu passado sinistro.
A imediata promoção midiática que teve o fato classificou Garzón como um Superman real, uma representação da justiça humana (quase divina), acima de tendências sociais ou interesses terrenos. Fixada nas mentes dos cidadãos essa imagem, Garzón continuou seu perambular "justiceiro" de um lado e do outro do espectro social: a guerra sim, a dos invasores e dos invadidos, a dos opressores e a dos oprimidos. Teria podido Garzón entrar no cenário internacional como um herói se o detido em Londres não tivesse sido Pinochet, mas Henry Kissinger, à margem de seu manifestado desejo de fazê-lo? A justiça britânica teria se atrevido a processá-lo?
Os invasores, os opressores, têm recursos - a força do dinheiro, da imprensa e das armas -, para evitar e enterrar as acusações; os invadidos e oprimidos, não. Mas, acaso a atuação individualizada de Garzón não apela para as mesmas razões que o governo dos EUA para atribuir-se a execução de uma Justiça supranacional, quase divina, anterior à divisão da humanidade em bons e maus, dependendo de seus interesses?
Depois do turbilhão midiático de documentos imperiais lançado pela WikiLeaks, os acusados clamam com aparente senso de equidade: esperamos agora que apareçam os documentos secretos dos estados "inimigos", dos movimentos de oposição ao Capital. Em um mundo tão brutalmente manipulado, tão orwelliano, esses fatos produzem suspeitas infinitas, e os meios de comunicação sentem prazer em divulgá-las também.
Os que suspeitam - e eu suspeito que entre estes há também manipuladores especialistas -, parecem consider-se paranóicos viciados em teorias da conspiração. Se houver alguma parcela de verdade no que eles dizem, fica assim desacreditada. Mas não se trata de atribuir "más" intenções àqueles que entendem literalmente - o sistema nunca é literal, lembre-se disso - os princípios da liberdade de informação ou de justiça sem fronteiras.
De alguma forma, os "loucos" sempre podem ser mediatizados ou, alternativamente, processados: os indivíduos são dispensáveis. Tão prescindível era Pinochet como Garzón, que não o duvide, se é que quer de verdade incitar o passado franquista. Franco não era chileno, mas espanhol. E assim igualmente prescindível é Julian Assange. A questão não é se são ou não pessoas plantadas para servir a interesses obscuros, isso é o que importa ao se partir de princípios abstratos. Eles acreditam no que fazem, eu acho. Se é sincero, Julian Assange é um kamikaze da liberdade de informação, uma pessoa que levou a sério um slogan publicitário do capitalismo, que nunca foi concebido para mais.
Assange e Garzón se parecem mais com os heróis dos quadrinhos, que com aqueles das grandes batalhas sociais da história humana. Em um mundo onde os grandes meios existem para construir estados de opinião e conduzir como rebanho as massas, que Assange acredite na liberdade de informação parece uma loucura. Ele foi preso por um delito fabricado, acho que de assédio sexual. Até uma sueca, que viajou há uns meses para Havana para se reunir com nossos ilustres mercenários, aparece como acusadora.
A verdade que espalharam, de novo, é bem-vinda. Mas os donos da bola e da luva em matéria de Internet - frase cubaníssima que se refere às crianças do bairro, que não sabem jogar beisebol, mas que nenhuma equipe pode tirá-los porque eles são os que fornecem equipamentos esportivos - sabem como reverter o contratempo, e converter esse buraco negro de "liberdade de informação", em instrumento manipulador da verdade.
Se deixarmos, claro. Se nos permitirmos esquecer os documentos divulgados. Assange e seus seguidores talvez compreendam esta vez que o único projeto social que precisa da verdade é o socialismo. Que a verdade não é neutra. E a justiça tampouco.
Fonte://www.revistaforum.com.br
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