segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Rebeldias - por Gustavo Esteva

Rebeldias
No meio do desastre, quando tudo o que é sólido se desvanece no ar, a esperança alimenta-se com as rebeldias que surgem por todo o lado. Por Gustavo Esteva [*]

A APPO, a gloriosa APPO [1], a Comuna de Oaxaca, a experiência radical brutalmente reprimida em 25 de Novembro de 2006, parece ser hoje uma mera bandeira esfiapada que grupos de todas as cores arrastam ocasionalmente pelas ruas de Oaxaca, provocando só indiferença ou hostilidade.

Ficou alguma coisa dessa experiência? Na realidade, afugentou o turismo e contribuiu para agravar a situação económica. O movimento deixou uma sociedade intensamente polarizada – com bandos que se olham como inimigos e que frequentemente o demonstram aos tiros. A isto acresce o desencanto de muitos, tanto os que deixaram as fileiras do movimento ao sentirem-se traídos pelos que se apoderaram dos seus mecanismos de coordenação para levar a água aos seus moinhos ideológicos e políticos, como os que se deram por vencidos: aparentemente, de nada serviu a recusa espectacular de um regime económico e político e de quem o encarnava. Em consequência disso, alguns foram engrossar alguma tentativa de empreender o que continua a chamar-se “via armada” e outros converteram o seu desencanto em cinismo e apatia.

E isso será tudo? Desastre económico e social, raiva, frustração, desencanto – é esse o saldo? A pergunta tem vindo a repetir-se, no país e no mundo, ao longo dos anos recentes. A rua ficou sem fôlego? 30 milhões de pessoas foram incapazes de impedir a insensata guerra contra o Iraque. Os trabalhadores franceses, ou os italianos, não puderam evitar ou sequer reduzir as atrocidades de Sarkozy e de Berlusconi. A mais impressionante mobilização pública de indocumentados nos Estados Unidos, uma das maiores na história do país, mais não fez do que agravar a situação. O mesmo acontece na Grécia, no momento em que milhões de pessoas sofrem com o agressivo “ajustamento estrutural” imposto ao país para salvar os bancos europeus, e não conseguem detê-lo com as suas mobilizações.

Merece reflexão cuidadosa o facto de os governos parecerem ter encontrado fórmulas de imunidade perante a mobilização nas ruas. Muitos analistas, por exemplo, apressaram-se a assinalar que a mobilização dos trabalhadores franceses contra a reforma das pensões marcaria uma grande derrota da ditadura financeira. Tiveram de engolir as palavras. Tal como nós engolimos as nossas, todos quantos considerámos impossível que as classes políticas do México apoiassem Ulises Ruiz [2] até ao último dia do seu mandato, apesar dos seus crimes evidentes e da sua manifesta incapacidade para governar cidadãos que o recusaram de forma tão liminar e contundente.

Antes de analisarmos este aspecto, precisamos levar em conta que o caso de Oaxaca foi mais do que movimentos de rua. Tratou-se de uma experiência radical muito profunda, que queria escapar à falsa alternativa que parece obrigar-nos a escolher entre uma “via armada” que a maioria das pessoas não quer e parece condenada ao fracasso, e uma “via eleitoral” cada vez mais ilusória: os que se agarram a ela, contra toda a experiência e não obstante a decadência evidente de partidos e instituições, acabam apanhados num afã reaccionário de tudo mudar para que tudo fique na mesma – reduzindo a luta a uma mera substituição de dirigentes que prometem projectos alternativos para o país.

Para explicar a necessidade das organizações dirigentes, Trotsky usou certa vez uma metáfora mecânica: considerava que, sem elas, “a energia das massas se dissiparia, como se dissipa o vapor não contido numa caldeira”, se bem que tivesse sublinhado que os movimentos sociais não são impulsionados pela caldeira ou pelo pistão, mas sim pelo vapor. Ao comentar estas ideias em 2007, a propósito dos acontecimentos de Oaxaca, Adolfo Gilly [3] considerou que essa “matéria real, impalpável e indefinível” a que Trotsky chama “energia das massas” e que compara com o “vapor” tem “sentido, entendimento e razão, e por isso não se dissipa como o vapor, mas perdura transmutada em experiência, invisível para quem crê que o movimento reside no pistão e na caldeira (ou seja, nos aparelhos organizativos), mas que aparece posteriormente em aspectos inesperados da vida quotidiana”.

Oaxaca mantém-se “a todo o vapor” e assim ilustra de novo o que parece estar a acontecer no mundo inteiro. No meio do desastre, quando tudo o que é sólido se desvanece no ar (para retomar a frase clássica), quando governantes e instituições mostram a sua incapacidade para enfrentar os desafios actuais, mesmo os mais urgentes, a esperança alimenta-se com as rebeldias que surgem por todo o lado. Entre elas, a principal é a insurreição das imaginações reprimidas que continuamente derruba as grades do pensamento constituído e se atreve a inventar os novos caminhos. Aí se encontra a força que permitirá esperar com entusiasmo o novo ano.

Notas do tradutor
[*] Gustavo Esteva, de 74 anos de idade, segundo a Wikipédia, é “um ativista mexicano”, “intelectual não-profissional” e fundador da Universidad de la Tierra na cidade mexicana de Oaxaca. Também foi um alto funcionário na administração do presidente Echeverría, e um conselheiro do Exército Zapatista de Libertação Nacional em Chiapas nas negociações com o governo. Trabalha no Centre for Intercultural Dialogues and Exchanges (CEDI) na cidade de Oaxaca, com grupos indígenas e ONGs e tem publicado regularmente em vários jornais.
[1] APPO, Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca. Fundada em Junho de 2006, a partir de uma luta concreta dos professores, por um vasto conjunto de organizações e movimentos sociais daquele estado mexicano.
[2] Ulises Ruiz, político do PRI, Partido Revolucionário Institucional, contestado governador do estado mexicano de Oaxaca entre 1 de Dezembro de 2004 e 30 de Novembro de 2010.
[3] Adolfo Gilly, historiador e politólogo mexicano (de origem argentina), colaborador do site Rebelión e autor de numerosos livros sobre os movimentos sociais e políticos da América Latina.
Fonte: http://passapalavra.info/

Nenhum comentário: