O poder na sombra
Já não
basta eleger ou derrubar governos: Estados vigiam, mas quem decide são as
corporações. Movimentos sociais saberão reagir?
A recente
intimidação do GCHQ, a inteligência secreta inglesa, ao jornal The Guardian
e a invasão da NSA, a inteligência secreta dos EUA, nos arquivos da Petrobras
criam uma boa ocasião para refletir sobre terrorismo, livre-mercado,
democracia, liberdade de expressão e independência de imprensa.
Não é
absurdo dizer que nossa época apresenta ao menos dois tipos de terrorismo, o
disseminado e o concentrado. O primeiro está a cargo de grupos como Taliban,
Al-Qaeda e outros. Empregam a violência extrema em nome de Deus ou da Nação,
quando não em nome de ambos, e o resultado é a morte de inocentes, como no
Afeganistão, Síria e Iraque, só para ficarmos nos exemplos mais atuais.
Prometem democracia e a melhora das condições de vida em seus territórios, mas
ao tomar o poder promovem o terror contra seus inimigos e exploram ao máximo a
população. É o velho bordão: em nome da liberdade e da democracia são cometidos
os maiores crimes contra a humanidade.
O
terrorismo concentrado é o exercido pelos Estados, é o terror oficial, com lei
e banda de música. Os EUA de hoje são o exemplo acabado disso, a Inglaterra
fica só um pouquinho atrás. Não é apenas gratidão pelo apoio recebido na
Segunda Guerra Mundial, é sobretudo alinhamento político, econômico e
financeiro com a grande potência para extrair mais e melhores dividendos. Ao
invadir o Iraque em apoio ao seu antigo aliado, por trás da máscara do
servilismo garantia também para si as benesses do petróleo e futuros ganhos de
mercados desbravados militarmente pelo Grande Irmão.
Alguns
analistas classificam isso de nova face do imperialismo, outros de
neocolonialismo. O nome não importa, é o velho movimento expansionista do
capitalismo versão ocidental, cuja índole se assemelha à invasão das Américas.
Após a invasão do Iraque, Tony Blair veio a público dizer o que todo o mundo já
sabia, o Iraque não tinha armas químicas e biológicas… Antigamente isso seria
suficiente para derrubar seu gabinete.
Os EUA,
assim como muitos Estados nesta época de nuvem informática, estão desenvolvendo
uma rede imperial de acesso às informações privadas, coisa que bancos, lojas de
departamento, redes de telefonia, provedores e hospedeiros de informática, a
polícia e a Receita Federal já vêm fazendo há muitos anos. Desse ninho de
serpentes, Snowden extraiu as provas dos crimes praticados pelos EUA em nome de
uma suposta guerra ao terror. O dedo de Snowden, como na fábula infantil,
mostrou a falácia da ideologia liberal, que desde a Revolução Francesa se apoia
em conceitos como democracia e livre-mercado.
John Gray,
em Falso Amanhecer – Equívocos do Capitalismo Global, já havia denunciado a
contradição de uma liberdade de mercado organizada pela intervenção legal do
Estado. A acusação feita pelo ex-agente de inteligência apenas forneceu a prova
material do crime. Mas possui o condão de deixar nu o rei e de fulminar
qualquer argumento a favor do livre-mercado. A investigação ilegal dos arquivos
da Petrobras escancara as ligações profundas entre os agentes capitalistas e o
Estado. Seus métodos mostram que, além de guerras quentes, há também uma
soturna guerra fria, invisível, cuja índole expressa a outra face da natureza
capitalista. É a velha e sempre atualizada guerra comercial.
O dedo
acusador da roupa transparente do rei é o fim do conceito de livre-mercado e
elimina qualquer reflexão de ética associada ao sistema econômico capitalista,
justamente por este não se estruturar a partir de princípios éticos nem conter em
seu horizonte de ação qualquer objetivo social. No início dos anos 1970, a
revelação de espionagem do diretório do partido Republicano por parte do
governo Nixon resultou na queda deste. Mas alguma coisa não permitiu ou não
forçou a queda de Blair nem de Bush nem de Obama. Por quê?
“Guerra ao
terror”
Muito já se
falou que o 11 de Setembro, se não foi obra arquitetada pelos próprios falcões
na Casa Branca, foi o motivo esperado pelos EUA para uma nova investida
militar, com o objetivo de abrir mercados e consolidar sua geopolítica. Os EUA,
através de Bush, se declararam em guerra contra Osama bin Laden e, por
extensão, contra o terrorismo não estatal de certas forças da Ásia e do Oriente
Médio.
Foi uma
declaração unilateral contra uma organização, numa curiosa assimetria, pois a
guerra quente é sempre Estado contra Estado, ou uma força dentro dele contra
ele mesmo, como a da Secessão, por exemplo. Mas servia aos propósitos de vender
armas dos fabricantes apoiadores da eleição de Bush, garantir o fornecimento
maior e mais barato de petróleo e realizar o avanço estratégico sobre uma
região com centenas de milhões de consumidores.
Nesse
movimento, passaram por cima das determinações da ONU e da recomendação dos
países contrários à invasão, mataram milhares de civis inocentes, destruíram
parte da riqueza do país (para a reconstrução com dinheiro a juros de
banqueiros ocidentais e a instalação de empresas dos aliados de seu governo),
torturaram soldados (que haviam elegido como “inimigos” sem ter recebido deles nenhuma
agressão), entre outras arbitrariedades. Numa só expressão: rasgaram as leis no
império de seus interesses. E a Inglaterra atrás. O 11 de setembro serviu como
o grande ponto de virada na democracia anglófila, com o consequente avanço do
terrorismo de Estado e a diminuição das garantias individuais.
Que
democracia?
Na
democracia ateniense, as decisões tomadas na ágora por um punhado de atenienses
livres não levavam em conta a vontade nem as condições da imensa maioria da
população, pelo simples motivo de que eram escravos ou mulheres. Ou seja,
democracia de alguns para alguns.
Hoje, se
quisermos falar no mesmo tom daqueles que fizeram e ainda fazem a política, a
realpolitik, deixando de lado todo traço quixotesco de idealismo, os dois
grandes modelos seriam as experiências dos ingleses e dos norte-americanos, ou
a democracia anglófila. São séculos contínuos desse regime político. A Ásia, a
América Latina e a Central, a Oceania, a África, qual continente poderia exibir
melhor experiência para estudo? Não entrariam nem a Alemanha nazista, a Itália
fascista, a Espanha de Franco nem o Portugal salazarista. Ao falar em bastiões
da democracia nos referimos sempre a esses dois países, em que pesem a
experiência colonial inglesa tradicional e o modelo colonial contemporâneo dos
EUA.
Como podem
as duas sociedades com a experiência mais larga nesse regime assistir
impassíveis a seus mandatários rasgarem as leis das garantias individuais
através de práticas totalitárias? Quando o mundo assiste indiferente a essa
escalada do terror concentrado de Estados ocidentais, os partidários da
realpolitik já podem estufar o peito e dizer, como os generais da última
ditadura brasileira: vivemos numa democracia relativa.
O
relativismo da democracia atual estaria caracterizado não apenas por essa
prática invasiva no âmbito privado e no público, mas também por outra
característica bem especial. Na época dos impérios, dos reis absolutistas, das
ditaduras e dos totalitarismos, a escolha do mandatário do poder se deu pela
força ou por acordos de camarilha, com o aval dos sacerdotes, das igrejas e
mesquitas, dos suseranos, líderes provinciais, coronéis e apaniguados. Sem a
participação do povo, a não ser como massa de manobra, como exemplificam as
revoluções burguesas e o voto a cabresto. Mas as democracias relativas têm o
seu requinte: o sistema eleitoral. Aí está a pedra angular desse novo regime de
império, cuja índole colonial parece ainda não ter se esgotado.
No ambiente
político atual, em que os compradores de votos para reeleição e os mensalistas
da governabilidade também agem livremente para assegurar os seus privilégios e
os de seus apoiadores na sombra, podemos afirmar que a democracia age de baixo
para cima apenas para legitimar o exercício do poder. Mas, pelo que temos
assistido nos últimos anos, por aqui e sobretudo naquelas duas democracias
seculares, nem as eleições nem as leis são suficientes para obrigar a conduta
dos governantes.
À exceção
de um Collor, que caiu muito mais por vontade do Congresso do que pela voz das
ruas (o povo outra vez feito massa de manobra), os governantes nessas
democracias relativas parecem garantir com os votos a impunidade; nada de muito
grave lhes ocorrerá até o fim de seus mandatos. Democracia de baixo para cima é
isso; de cima para baixo: autocracias, oligarquias… O interesse do povo só é
levado em conta quando se traduz em consumo, quando pode garantir lucro
financeiro para as corporações e ganho político para os governos.
Mídia sem
independência
Basta
acompanhar o noticiário da grande imprensa. A qualquer ameaça de restrição da
liberdade de informar, com todo acerto, chovem protestos. Mas esse não é o
ponto nevrálgico. Ao contrário, diríamos até que para os grandes órgãos de
comunicação a defesa da liberdade de expressão tem servido para uma estratégia
cabotina de encobrimento de outro dado real. É verdade que algumas decisões
judiciais, contra o bom senso e os dispositivos constitucionais, têm cerceado o
direito público à informação, em especial nos assuntos que envolvem o Estado,
seja na pessoa de seus servidores e governantes, seja nas políticas imperiais
de guerra ou de favorecimento econômico, como foram os assaltos às economias
atingidas pela crise de 2008. Crise aliás provocada pelos agentes econômicos
com a conivência dos governantes, em especial do bastião liberalista Alan
Greenspan, para quem muitos queriam dar o Nobel de Economia…
O bom
argumento, o da liberdade de expressão, tem no entanto se prestado para a
chamada grande mídia escamotear um valor que nos parece tão ou mais importante:
a independência da imprensa. Quando ela se alinha de maneira acrítica com um
candidato; quando sempre amplifica as más notícias do governo de um determinado
partido; quando evita aprofundar assuntos polêmicos como os crimes ecológicos,
a falta de abertura para bancos asiáticos, a descriminalização da maconha, a
reforma agrária etc; quando evita qualquer apoio a políticas, valores e
esforços dos “pequenos” contra os valores hegemônicos do capitalismo; quando
retira de seu horizonte a “cultura” em favor de produtos culturais meramente de
consumo; quando evita escancarar condutas socialmente nocivas de seus
patrocinadores; quando suprime a crítica aos políticos que apoiaram nas
eleições passadas ou aos que ainda podem de alguma forma lhes ser úteis no
futuro; quando não defende maior abertura de concessões para novos veículos de
comunicação; quando se alinha e dissemina a política agressiva de um governo
que lhe favorece; quando embarca em campanhas nacionalistas que servem para
interesses de grandes corporações ou do governo com o qual tem trocas
vantajosas; quando evita abordar os podres do grande concorrente ou até mesmo
problemas internos como demissões em massa de seus quadros; quando se alinha ou
silencia diante de um esforço de guerra injusta do Estado.
Quando a
velha mídia, ao abandonar sua função primordial de fiscalização e crítica aos
governos e às sociedades, se alinha com o poder em nome de lucros financeiros e
de seu próprio empoderamento, ocorre o que podemos chamar de falta de
independência. Então cabe a pergunta, sobretudo em sociedades de democracia
relativa como são as nossas: de que vale a liberdade de expressão para uma
mídia sem independência? Será que para esse tipo de jornalismo faz tanta falta
assim a liberdade de informar?
Menos mal
que esse vazio crítico vem sendo ocupado por uma mídia dissidente, através de
publicações impressas, mas sobretudo revistas e jornais online e blogs. São
espaços sem grandes recursos financeiros e logísticos, mas que têm aprofundado
a reflexão dos temas espinhosos que a grande imprensa oculta ou aborda de
maneira superficial. O multiculturalismo de nossa época, as tensões sociais, a
busca de alternativas ao capitalismo hegemônico, a crítica à própria imprensa,
a discussão inteligente têm encontrado grande e generosa acolhida nessas
“pequenas” mídias. Embora todos, grandes e pequenos, defendam seus interesses,
notamos nesses novos espaços maior liberdade de expressão com mais
independência. Não é por outro motivo que, volta e meia, ouvimos algum arauto
do poder advogar a regulamentação da internet, o nosso pequeno grande reino da
liberdade.
Poder na
sombra
A conclusão
inquietante de tudo isso é que já não importa mais derrubar o governo. Quando
Nixon caiu em virtude de sua espionagem no Watergate, as corporações, em
especial as financeiras (que recém começariam, no início dos anos 1970, a criar
o que hoje conhecemos por mercado financeiro internacional), ainda não tinham
atingido o grau de maturidade e força que só foi possível pela
desregulamentação dos mercados e pela globalização.
Até aí, com
a chave do cofre num bolso e as restrições legais ao capital no outro bolso, o
presidente de uma grande potência como os EUA ainda não era apenas um mero
agente de relações públicas. O mundo vivia à véspera da criação dos eurodólares
via City de Londres, antes de Reagan e sua Guerra nas Estrelas e antes das
privatizações de Thatcher e do consenso de Washington com o Bush pai, mas já
iniciara o recuo das conquistas do Estado de bem-estar social. A acumulação de
capital transbordou do bolso, as regras rígidas foram flexibilizadas, as
corporações ganharam um gigantismo e um poder de corromper, impor e rasgar
códigos como nunca tinha sido imaginado e muito menos admitido pelos políticos
mais conservadores.
Hoje as
corporações compram presidentes e ministros em todos os continentes, compram
governos inteiros na África, transformam populações de países pobres em cobaias
de suas experiências com remédios e demais produtos farmacêuticos e
alimentares, ainda ou sobretudo quando esses produtos, com componentes
cancerígenos, são proibidos em seus países de origem.
Hoje essas
corporações compram decisões judiciais, eliminam advogados, jornalistas,
funcionários do ministério público, juízes, investigadores. Hoje elas indicam e
demitem secretários de Estado, elegem deputados, apontam governadores e
senadores. Hoje elas decidem a ocasião e a intensidade das crises, e ainda
escolhem os bodes expiatórios (as vítimas que devem ser chutadas para fora do
mercado, como o Lehman Brothers). Hoje esses agentes maquiam os balanços,
driblam os impostos ou forçam sua redução, elegem paraísos fiscais e, com a
conivência de seus congêneres financeiros, escolhem o melhor caminho para
escapar da malha fina. E ainda compram o silêncio e até mesmo a conivência da grande
imprensa corporativa, associada ao projeto comum de garantir o lucro máximo.
Hoje o
poder está na mão dessas corporações, já não vale mais a pena forçar a queda de
um governo, ainda mais se esse governo, além de corrupto e corruptor, está ali
justamente para fazer o jogo que lhes interessa. Máfia? Teoria da Conspiração?
Cada um escolha o nome que menos perturbe o seu sono, mas a verdade parece uma
só: tenham o nome que tiver, são essas feras que, na sombra, governam muitos de
nossos caminhos e decidem afinal a música que deve tocar.
Até quando
será assim, se os movimentos sociais serão capazes de trocar o disco ao invés
de dançar sempre conforme a música, não sabemos. Mas que não vivemos num mundo
plenamente democrático, disso já não resta a menor dúvida. E com o requinte das
eleições (pois dessa válvula de escape, reguladora e legitimadora do sistema
econômico, nem os donos do poder querem abrir mão) não precisam mais de
césares, imperadores, reis, czares. Nem mesmo de gente como Stálin, Hitler,
Mussolini, Roosevelt, Getúlio, Perón & Cia., porque o enfraquecimento dos
Estados nacionais (entenda-se: os Estados periféricos) e a representação
política de fancaria realizam o trabalho sujo de aplainar o caminho para o
avanço das corporações.
Não nos
iludamos, esse tipo de gente nunca gostou de democracia, e por uma razão muito
simples: não gostam de povo, a não ser como massa consumidora e/ou de manobra.
Será uma ditadura, um totalitarismo, essa democracia consentida e relativa? Em
todo caso, não cheirará melhor do que hoje. Outro requinte: terá a sua imprensa
livre…
Será que
voltarão fantasmas como socialismo, comunismo, revolução, ideologia, Estado
forte, intelectuais orgânicos, luddismo…? Ou será que as sociedades,
organizadas em torno de valores como cooperativismo, solidariedade,
compartilhamento e uma distribuição melhor da riqueza humana, tudo interligado
a uma ética ecológica, conseguirão encontrar melhores alternativas a esse
estado de coisas?
Quanto à
intimidação no The Guardian, foi para inglês ver… Quer dizer, foi para
americano ver. O episódio na verdade é uma piada no tom do velho humour
britânico, e ilustra o juízo que os ingleses fazem dos norte-americanos. Quem,
em pleno século XXI, acreditaria numa pantomima dessas. O GCHQ sabe que os seus
compatriotas desconfiam que os dados procurados pela inteligência secreta não
terminam ali, no disco rígido nem no pendrive, mas já correm feito vírus por
outros sistemas da cibercultura.
A piada é
que eles acham que os americanos não sabem disso…
* Marcelo
Degrazia é escritor, autor de A Noite dos Jaquetas-Pretas e do blogue Concerto
de Letras.
Fonte: http://outraspalavras.net/
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