III Fórum
de Mídia Livre (2012): para Ladislau, o que está em crise não é a comunicação,
mas “a fórmula econômica da velha mídia”
Sete
semanas após entrevista Ninja ao Roda Viva, vale pensar no que movimento
representa, em termos de novas relações produtivas
A
entrevista de Bruno Torturra e Pablo Capilé, no Roda Viva, focando o sistema
inovador de jornalismo Ninja, é particularmente importante. Não pela celeuma
criada, mas pelas janelas e desafios que abre. Aproveitamos a discussão para as
pessoas entenderem melhor um conjunto de atividades de produção e acesso
cultural no país. Interessante também o fato da entrevista ter gerado tanta
controvérsia, com o problema do financiamento superando a visão das
oportunidades abertas. Estamos na era digital, da conectividade planetária, mas
carregamos uma herança de sistemas de produção cultural e jornalística
essencialmente controlados por gigantes da intermediação, a chamada indústria
cultural e o oligopólio da mídia. Adotaram tecnologias digitais nas imagens,
mas como cultura organizacional seguem na era analógica. O pano de fundo, é que
hoje, com as novas tecnologias tanto de produção como de divulgação de
conteúdos, abriram-se oportunidades de sistemas radicalmente descentralizados e
em rede, o que afeta os gigantes verticalizados de intermediação. Os que
produzem conteúdos não precisam mais esperar para serem dos poucos selecionados
pela grande mídia ou pelo oligopólio da música. A gente não vai mais se ver só
na Globo.
O que era
para ser entrevista, virou um espaço muito interessante de contraste entre duas
culturas, o jornalismo comercial dos entrevistadores que insistiram em chamar
as suas atividades de “jornalismo histórico”, e o jornalismo descentralizado e
colaborativo que emerge. Os entrevistados, por sua vez, se referiam ao sistema
comercial mais simplesmente como “velho” e “analógico”, frente ao universo
digital que se descortina.
Toda a
primeira parte do Roda Viva se concentrou na veiculação da profunda suspeita
dos entrevistadores sobre “de onde vem o dinheiro”, sugerindo naturalmente
fontes escusas, falta de prestação de contas e semelhantes. É natural que esta
geração da mídia, que trabalha com altos custos e equipamentos sofisticados,
não entenda que nesta era em que qualquer pessoa com umsmartfone pode registrar
eventos, e tem inteligência e formação para sugerir interpretações – talvez com
menos competência profissional mas seguramente com maior diversidade de
interpretações – o sistema se desloca. O que não se entende é que sequer tinham
conhecimento de moedas alternativas, das formas de funcionamento dos processos
colaborativos não monetários, de toda uma economia da cultura não comercial que
se desenvolve e já tem anos de experiência. O sistema Ninja não apareceu com as
manifestações, já tem 10 anos. Foram precisas as manifestações para que esta
imprensa se dê conta que o Ninja existe.
O sistema
de financiamento da rede Ninja e da rede Fora do Eixo não constitui nada de
revolucionário, existe em milhares de experiências pelo mundo afora e no
Brasil, e consiste em reciprocidades baseadas em uma moeda contábil, ou
simbólica, que pode ser representada por horas de trabalho, A diferença é que
não se paga juros aos bancos, o que torna tudo mais barato, e facilita as
trocas, ao se tirar os intermediários de cena. No caso mencionado no Roda Viva,
trabalham com pouco dinheiro oficial (reais), e com muito dinheiro equivalente
(cards), em que um grupo que realiza um show apoiado no esforço de organização
de outro, por exemplo, passa a assegurar uma contribuição correspondente em
reciprocidade em outro local ou cidade, expressa emcards, mas sem
necessidade de dinheiro. Assim, o pouco dinheiro que arrecadam em reais, tem
efeitos multiplicadores dezenas de vezes superior. O sistema tem toda lógica em
economia, mas não entra na lógica de quem não está familiarizado, e fica à
procura de dinheiro escondido. O Brasil aliás já tem103 bancos comunitários,
que emitem moedas alternativas, processo autorizado pelo Banco Central, e que
deveria ser do conhecimento elementar na cultura de jornalistas. O Banco
Palmas, com a sua moeda “palma”, comemorou há meses os seus 15 anos, a USP
publicou um livro comemorativo com pesquisas sobre o funcionamento desta forma
de organização econômica (veja o livro em http://dowbor.org/livros-em-colaboracao/).
É
interessante confrontar esta lógica econômica colaborativa e democrática com a
lógica da mídia comercial. Tudo que pertence à indústria cultural e midiática,
inclusive os noticiários e os jornais e revistas em papel, são essencialmente
financiados por publicidade, e se trata de recursos extremamente elevados. É um
império econômico. As empresas de publicidade que financiam a mídia são por sua
vez financiadas por grandes grupos econômicos, como bancos, empreiteiras,
grandes redes de intermediação comercial, montadoras, a grande indústria
farmacêutica e semelhantes. Há muito pouca participação de pequena e média
empresa, ou por exemplo da agricultura familiar que é responsável por três
quartos do alimento que chega à nossa mesa. O dinheiro gasto pelas grandes
empresas em promoção e propaganda é incluído na planilha de custos, e
incorporado nos preços, que são pagos por nós. A TV aberta só parece gratuita
porque já pagamos ao comprar os produtos. Quando ouvimos na TV que tal programa
nos é gentilmente oferecido pelas casas que têm total dedicação a nós, já
sabemos quem paga a conta.
Esta
fórmula econômica, por sua vez, pressiona o sistema em dois sentidos. Primeiro,
porque não se vai escrever noticias desagradáveis que envolvam os grandes
grupos econômicos privados, que afinal são as que contratam a publicidade. O
resultado é uma deformação profunda da agenda política e o oligopólio da mídia
comercial passa a defender a agenda das corporações: o código florestal
(agronegócio), juros altos (bancos), financiamento corporativo das campanhas e
assim por diante. Segundo, porque como a remuneração vem do volume de audiência
ou do número de leitores, instala-se o vale-tudo. Apresentar na mídia PMs
correndo atrás de bandidos em favelas ou tragédias geradas pela violência atrai
muito mais do que explicações sobre formas de melhorar o sistema de gestão da
saúde, para dar um exemplo. Cria-se a tirania dos pontos de audiência, e o que
rende não é se está se dizendo a verdade ou produzindo análises inteligentes, e
sim a banalização, a fofoca, muita violência e semelhantes. Assim corporações,
mídia comercial e empresas de publicidade ficam articuladas num triângulo
perverso, pago por nós. A fórmula funciona para os grupos comerciais que são
donos desta mídia, mas não para uma cultura inteligente. E muita gente
inteligente e decente, que trabalha nesta mídia, presa na armadilha da
sobrevivência, se submete.
No caso do
financiamento da mídia comercial pela publicidade estatal, a situação é ainda
pior. A pretexto de se atingir uma maior audiência, apresentada pelos quatro
grupos da mídia (Marinho, Frias, Mesquita e Civita) que dominam a pirâmide da
mídia comercial através de uma pirâmide de concessões, onde inclusive boa parte
da propriedade dos canais se cruza com funções políticas, a parte esmagadora
das verbas publicas de publicidade termina concentrada nos mesmos meios de
comunicação. E quando o governo é menos favorável às oligarquias como é o das
gestões de Lula e de Dilma, gera-se o absurdo de verbas públicas pagas a grupos
privados para falar mal de políticas públicas. Nada aqui de particularmente
brasileiro, nada que o Berlusconi não tenha entendido, que Murdoch não aplique.
A verdade é
que a própria fórmula do financiamento da mídia tem de ser revista. No caso da
grande mídia comercial, sai do nosso bolso a publicidade dos grupos privados,
com os custos incorporados nos preços, a publicidade do Estado através dos
impostos, e a das estatais através das tarifas. Pagarmos para ouvirmos verdade
deformada e uma sequência interminável de idiotices, generosamente apelidadas
de cultura, francamente não é o ideal. Ouvir que um determinado programa nos
é oferecidopor determinada empresa, é quase doloroso. E tem mais: o
oligopólio da mídia comercial sangra cada vez mais os nossos bolsos, pois o
sistema é cada vez menos operante, frente à alternativa que se desenvolve de
forma acelerada, de produção artística que circula sem jabá, de processos
colaborativos que geram um movimento de inclusão artística de milhares onde
antes só havia a estreita portinha do “sucesso” na grande mídia. Hoje um número
crescente de pessoas passa a acessar no computador, tablet ou smartfone
noticiários variados e inteligentes, e também, porque estão se multiplicando
shows, reuniões, palestras e outras formas presenciais, gerando um novo
universo onde a cultura não é mais limitada à classe média das capitais. A
divisão entre produtores e consumidores de cultura está se tornando frágil. Tendemos
a ser, como dizem os economistas, prosumidores.
É a equação
econômica da grande mídia que está em crise, o que dá um toque irônico à
entrevista na Roda Viva, pois mais do que maldade, havia nas perguntas
perplexidade de quem não entendeu. Tanta gente dizia que a Wikipédia não
funcionaria, e no entanto se trata do sistema mais confiável e atualizado de
conhecimento de estilo enciclopédico, baseado no gosto das pessoas contribuírem
com algo útil. Clay Shirky, no seu Cognitive Surplus, sistematiza a
visão dos processos colaborativos de ampliação dos conhecimentos. Lawrence
Lessig, no seu The Future of Ideas, mostra o grande quadro de
transformações. A verdade é que hoje qualquer pessoa pode gravar, filmar,
comentar e divulgar, contribuindo para o nível de conhecimento de todos,
gerando-se um sistema diversificado em rede. O que não é interessante ou
competente simplesmente some do mapa, pois as pessoas não acessam, e se
acessaram por engano não repassam, não retuitam, e as bobagens morrem na
praia: neste sistema, quem passa a mandar é a demanda, não a oferta.
Neste
sentido, a fórmula do Ninja proposta na parte final do programa, de abrir um
portal, de recorrer a contribuições dos leitores, de oferecer canais abertos de
contribuição a quem tem algo a dizer, tem tudo para dar certo. Eu, por exemplo,
periodicamente envio um dinheiro à Wikipédia. Não porque me mandam a conta, mas
porque eu sei que a contribuição deles para o meu trabalho e o dos meus alunos
é grande, e quero que o sistema sobreviva. Estou pagando o que eu acho que vale
para mim, e não o que o dono da mídia acha que deve me cobrar. Francamente,
estou até me dando um desconto, e não preciso me submeter ao martelar
publicitário das grandes corporações. Em termos econômicos, é uma boa
transação, o que pago não está escondido nos preços, impostos e tarifas, e o
que recebo é o que eu quero, não o que quer o Berlusconi ou equivalentes
nacionais. Na prática, o que está se gerando, é uma ampla desintermediação de
acesso à cultura e à informação, aproveitamento inteligente do potencial das
tecnologias da era digital. Continuar a pagar pedágios a intermediários que nos
enganam, quando temos alternativas melhores e mais baratas, não é uma equação
econômica interessante.
Devo dizer
que estamos construindo o “ninja” da área científica. O OCW do MIT
disponibiliza cursos e pesquisas online gratuitamente. A China adotou o
CORE (China Open Resources for Education). O Science Spring nos
Estados Unidos já reúne 14 mil cientistas que se recusam a publicar na Elsevier
e outros intermediários que encarecem a ciência em nome da excelência dos seus
serviços de Peer Review, que aliás está sendo substituído pelo Open
Peer Review. Comenta um cientista americano: eu não preciso que uma instituição
caríssima me diga se o artigo que eu leio é bom. E quando, no caso da mídia
política, pagamos para que nos enganem, este não é o caminho. Devo dizer que
tempos atrás, a convite da Globo, visitei instalações e ouvi os avanços. O meu
comentário sincero, na época, foi que haviam atingido a excelência técnica num
sistema ultrapassado. E quanto aos jornalistas, é tempo que se liberem, que se
articulem com os vários subsistemas de mídia aberta que estão surgindo, e
ajudem a construir a era digital da informação.
Tenho plena
consciência que o jornalista precisa ganhar a sua vida. Mas precisa repensar
como. Inclusive porque muitos estão sendo jogados na rua sem nenhum problema de
consciência por parte do oligopólio. Eu disponibilizo todos os meus artigos e
livros online. Com isto circulam muito mais, me torno mais conhecido, e faço
palestras, que frequentemente pagam o valor agregado da comunicação presencial.
Escrever livros me dá muita alegria, mas não me sustenta. O que me sustenta são
as aulas que dou, trabalho produtivo que acho natural enfrentar, ao lado do
trabalho criativo que me dá prazer.
Os músicos
que saíram fora dos “Selos” e do “jabá”, ganham com shows, e inclusive vendem
os discos nos shows. É importante aqui entender que a era digital vai sim
exigir de todos nós repensarmos as equações econômicas da nossa sobrevivência.
Não basta chamar a PM para combater a pirataria e repetir “seja ético, é tão
simples assim”, como se comprar do oligopólio fosse ético. E os que trabalham
com conhecimento, com o chamado “imaterial”, sejam jornalistas, professores,
artistas ou palhaços, têm de ajudar a construir os novos espaços. Exigir que a
publicidade pública, que também vem do nosso bolso, ajude a multiplicar mídia e
cultura diversificadas, descentralizadas e participativas seria um bom começo.
Inclusive porque o contexto da publicidade seria mais inteligente, e porque as
coisas não acontecem mais apenas no Rio e em São Paulo.
O ECAD
corresponde claramente ao sistema de atravessadores que faz lucrar quem não
cria nada, mas coloca pedágio sobre a criatividade dos outros. Não é uma
solução. A indústria cultural gera esperança de sucesso e fortuna que vale para
muito poucos, e cria uma ilusão até parecida com os meninos que se inscrevem
nas escolinhas de futebol e esperam viver da habilidade dos seus pés. Funciona
para tão poucos, que na realidade representa um engodo. Não podemos basear o
funcionamento da cultura nas exceções. Temos sim de valorizar as novas
experiências, os sistemas alternativos de financiamento colaborativo, de
experiências fora do sistema comercial tradicional. A França, por exemplo,
trabalha com um sistema público sofisticado de suporte. A iniciativa dos Pontos
de Cultura é um exemplo extremamente válido que deve ser retomado e
expandido. Onde funciona, a cultura depende sim de forte sistema de apoio, e
isto vale para numerosas áreas da economia criativa, inclusive a área
científico-acadêmica.
Houve
muitas reações emocionais à entrevista no Roda Viva. De vários lados ficam à
procura de dinheiro escondido. Acho mais importante pensarmos no fato que o
sistema de pedágio atualmente adotado pelas grandes corporações da produção
jornalística e cultural é que está levando ao surgimento de formas alternativas
de organização. O drama mesmo, é que no sistema atual de financiamento
publicitário de grandes corporações econômicas, ou de financiamento estatal
destinado ao oligopólio da comunicação, sobra muito pouco para apoiar uma
explosão de criatividade, sobre tudo no mundo jovem, que quer se manifestar, e
vai inventar novas formas de organização e acesso.
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