quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Uma «Carta aberta»: aberta para quê? – por Simone


Uma «Carta aberta»: aberta para quê?
 
Quem ler esta Carta aberta sobre a discussão de gênero do MPL-SP tem dúvidas se foi este mesmo MPL o responsável por recolocar a luta de classes no cenário nacional.  Por Simone

Nove dias. Esse é o tempo que separa a Carta aberta sobre a discussão de gênero do MPL-SP, publicada em 02 de setembro, e o 2º Seminário Há Machismo na esquerda?, ocorrido em 24 de agosto.

Três meses. Esse é o tempo que separa a Carta aberta sobre a discussão de gênero do MPL-SP do processo de lutas que tomou de assalto as ruas das maiores capitais do país.

O que uma coisa tem a ver com a outra?

Quem hoje ler esta Carta aberta sobre a discussão de gênero do MPL-SP tem dúvidas se foi este mesmo Movimento Passe Livre o responsável por escancarar e recolocar a luta de classes no cenário nacional, impondo uma derrota histórica aos governos municipal e estadual, ou o responsável por incendiar os corações de milhões, por sacudir os corpos de mulheres e homens, velhos e jovens para enfrentarem nas ruas a truculência dos governos do PT e do PSDB durante a jornada de lutas de junho e julho! Simplesmente porque a carta, escrita antes da jornada, não leva em questão os elementos articulados e trabalhados pelo MPL na sua luta.

O preâmbulo da Carta aberta afirma:
Antes da luta contra o aumento de 2013, o Movimento Passe Livre de São Paulo sentiu a necessidade de se reunir para fazer um balanço sobre como a questão de gênero era tratada no movimento até então. Redigimos posteriormente uma carta, fruto de nosso processo de discussão. Não a publicamos porque seu conteúdo não é consensual dentro do movimento. Não por oposições a construção de um espaço menos opressivo dentro do MPL, mas por uma divergência de estratégias para alcançá-lo. Publicamos a carta nesse momento, por esta discussão ter sido retomada. O fato dessa publicação ter sido protelada é mais uma expressão de como a discussão de gênero, assim como a discussão de outras opressões, é colocada em segundo plano por diversos movimentos sociais (como o nosso), fato que evidencia a opressão que está enraizada mesmo em espaços que pretendem combatê-las.
A publicação da Carta expressa essa discussão interna – que é um processo em aberto – assim como possui reflexões com elementos trazidos por outros grupos. É por isso que acreditamos nesse debate publico, de uma discussão que seguimos fazendo.

Que recado esta Carta aberta dá?

Ao afirmar a necessidade de publicação da Carta aberta, o MPL revela o esforço de reflexão acumulado, não só por ele mas por certa esquerda anticapitalista que entende ser necessário dar publicidade às questões espinhosas e contraditórias dos movimentos socais em geral, num exercício pedagógico de aprender com as derrotas. No que temos absoluto acordo. É o que se tem feito no Passa Palavra. Nesse sentido, o MPL está falando da sua forma de organização — pautada na discussão interna, na autocrítica e no debate público. Mas a Carta aberta não apresenta apenas a forma de organização do MPL. Ela escolheu nesse momento falar exclusivamente de um conteúdo, silenciando outros.

E a nossa pergunta é: por quê?

Por que o MPL vem a público falar, individualmente, da questão de gênero? Estaria falando para si mesmo? Estaria prestando contas ao “meio autônomo”?

Por que falar agora e sozinho, quando acabou de acontecer um Seminário — fruto do esforço de vários coletivos, grupos e indivíduos de São Paulo — para pensar conjuntamente o machismo e possíveis práticas capazes de romper com as opressões de gênero, raça e classe? A quem o MPL-SP quer responder?
Ao que parece, a Carta aberta ignora o empenho daquelas aproximadamente 130 pessoas, entre mulheres e homens de diferentes coletivos e grupos, que compareceram no sábado do dia 24 de agosto de 2013 para refletir e discutir, publicamente, o assunto do machismo na esquerda, iniciado em 2012. A carta descontextualiza o tema da agressão machista de um processo amplo, colocando a questão como exclusiva ao MPL, portanto, o isola da esquerda e da discussão sobre o tema em sua totalidade. Por isso mesmo todo o esforço foi feito para sensibilizar os coletivos a participarem daquele espaço público, o do seminário. Seria o objetivo apresentar o MPL como um ambiente seguro e responsável, diferentemente do restante do mundo e da sociedade?

Todavia, a Carta aberta revela a ambiguidade deste MPL que, no início, reconhece a contribuição de outros grupos e o acúmulo coletivo para a publicização do debate, mas que, no final, desconsidera esse mesmo acúmulo e contribuições sobre a questão acumuladas de 2011 em diante. Preferiu falar por si mesmo!

Cumpre lembrar que este MPL não apresentou no Seminário Há Machismo na Esquerda? — que foi um espaço essencialmente público — as suas conclusões acerca do machismo e da violência machista. Talvez porque a discussão empreendida por lá superasse em léguas qualquer tipo de discussão ou conclusão simplista e não tivesse abertura para qualquer sectarismo como o que agora aparece nesta Carta aberta. Ou ainda, porque não se estipulou no Seminário esta ou aquela melhor fórmula para erradicar o machismo do nosso meio. Antes, os grupos, coletivos e indivíduos lá presentes reconheceram as dificuldades que encontram para lidar e superar as contradições, bem como para iniciarem práticas novas, que enterrem de vez as velhas e renovadas opressões.

A Carta aberta, quando afirma que “a questão de gênero deve ser tratada na esfera pública”, escolheu pressupostos errados para recolocar a questão de um caso de agressão ocorrido em 2011, e que o MPL julga emblemático. Ao dar relevo a um tipo de ação que este MPL entende ser um “avanço”, o da EXPULSÃO do coletivo MPL-Curitiba, confundem-se dois casos distintos. O primeiro, ocorrido em 2011, no qual houve uma discussão interna, um reconhecimento do machismo praticado por um militante que se retirou de tarefas públicas e estava em um processo de reconstrução de vínculos com o coletivo. E o segundo, ocorrido em um coletivo que se recusou a discutir o caso como agressão machista, que reforçou a figura de autoridade do agressor e buscou com isso desgastar a organização nacional do MPL. Esta equiparação visa levar à conclusão de que a única maneira adequada, ou a mais avançada, de lidar com situações machistas é a expulsão. Não bastasse isto, este MPL insiste em fazer coro com um certo feminismo, neste site já caracterizado, sobre qual seria a alternativa às mulheres agredidas ou não: “priorizar a existência de um espaço auto-organizado de mulheres para que fosse feita a discussão sobre a agressão”. E é aqui que este MPL parece operar num recorte claramente ideológico, distinto daquele que foi capaz de mobilizar massas às ruas em torno da questão da tarifa e, por tabela, do acesso e do direito à cidade. A Carta aberta esqueceu as questões econômicas e sociais.
Será este o MPL a triunfar?

É preocupante que um movimento como o MPL, que tem nos estudantes do ensino secundário a sua base, solte uma Carta aberta demonstrando claramente o interesse e a preocupação em retomar o debate sobre a questão de gênero com a finalidade específica de reagir aos casos futuros de agressão a mulheres, em detrimento da colocação do tema com vistas à promoção de ações para a superação das opressões de qualquer tipo.

Ao lembrarmos que em junho o MPL escolheu as ruas como o espaço por excelência de suas ações e hoje indica como públicos os espaços exclusivos e esforça-se para remeter uma Carta, sabe-se lá a quem, vemos alguma razão para certa perplexidade.

As imagens deste artigo, inclusive a imagem de destaque, são de Niki de Saint Phalle. Niki é conhecida principalmente por sua obra em escultura, mas as imagens no corpo do artigo tratam principalmente da fase anterior e menos conhecida do seu trabalho, em que produzia as chamadas “shooting paintings”.

Fonte: http://passapalavra.info

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