A I Internacional, 150 anos depois
Marxistas e anarquistas (esses termos não eram comuns à
época) fundaram a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a Primeira
Internacional, há exatos 150 anos. Os desacordos entre os partidários de Marx e
de Bakunin levaram a uma amarga divisão em 1872. Logo depois, a AIT “marxista”
dissolveu-se, de fato, enquanto os bakuninistas criaram, em uma conferência em
Saint-Imier, Suíça (1872), sua própria AIT, que de maneira precária existe
ainda hoje.
Para Marx, as razões para a cisão foram as tendências
pan-eslávicas e o sectarismo antidemocrático e conspiratório de Bakunin. De
acordo com Bakunin, a divisão resultou da orientação pan-germânica de Marx,
assim como de seu comportamento intolerante e autoritário. Uma importante
coletânea de textos históricos inéditos, organizada por Marcelo Musto e a ser
em breve publicada pela Boitempo, expõe com clareza essas mazelas: Trabalhadores
uni-vos: antologia política da I Internacional. O que se perde nesta
abordagem, que predomina amplamente na literatura da Primeira Internacional, é
o simples e importante fato de que essa era uma Associação onde, a despeito dos
desacordos e conflitos, partidários de Proudhon, Marx, Bakunin, Blanqui e
outros, puderam trabalhar juntos por muitos anos, eventualmente adotando
resoluções comuns, e lutando lado a lado no maior evento revolucionário do
século XIX, a Comuna de Paris.
Apesar de sua curta duração – apenas alguns meses – a Comuna
de Paris de 1871 foi o primeiro exemplo histórico do poder revolucionário dos
trabalhadores, democraticamente organizado – delegados eleitos pelo sufrágio
universal – e suprimindo o aparato burocrático do Estado burguês. Foi também
uma autêntica experiência pluralista, associando na mesma luta “marxistas”,
proudhonianos de esquerda, jacobinos, blanquistas e republicanos sociais. Claro,
as respectivas análises de Marx e de Bakunin sobre este evento revolucionário
eram absolutamente opostas.
No entanto, as – inegáveis – divergências entre Marx e
Bakunin, marxistas e anarquistas, não são tão simples e óbvias como comumente
se crê.
Curiosamente, Marx regozijou-se do fato de que durante os
eventos da Comuna os proudhonianos esqueceram a hostilidade de seu mentor para
com a ação política revolucionária, enquanto certos anarquistas estavam
satisfeitos com o esquecimento do centralismo e a adoção do federalismo nos
escritos de Marx sobre a Comuna. É verdade que A Guerra Civil na França 1871, assim como a declaração
sobre a Comuna que Marx redigiu em nome da Primeira Internacional e diversos
rascunhos e materiais preparatórios deste documento, testemunham o feroz
antiestatismo de Marx. Definindo a Comuna como uma forma política, finalmente
encontrada, para a emancipação dos trabalhadores, ele insistiu na ruptura com o
Estado, este corpo artificial, esta jiboia-constritora, como ele o chamava,
este pesadelo sufocante, este enorme parasita2.
Entretanto, depois da Comuna, intensificou-se o conflito
entre as duas tendências revolucionárias do socialismo internacional, levando à
exclusão de Bakunin e Guillaume (seu seguidor suíço), no Congresso de Haia da
AIT (1872), e a transferência desta para a sede em Nova York – de fato, sua
dissolução. Depois desta cisão, os anarquistas, como mencionado acima, fundaram
sua própria Associação Internacional dos Trabalhadores.
A despeito da cisão, Marx e Engels não ignoraram os escritos
de Bakunin e, em alguns casos, tiveram de concordar com seus argumentos
antiestatais. Um exemplo marcante é a Crítica do Programa de Gotha, de 1875.
Ao invés de contabilizar os equívocos e tropeços de cada
lado do conflito – não faltam acusações mútuas – há de se enfatizar o aspecto
positivo da Primeira Internacional: um diverso, múltiplo e democrático
movimento internacionalista, onde participantes com abordagens políticas
distintas foram capazes não apenas de coexistir, mas de cooperar no pensamento
e na ação durante alguns anos, atuando como a vanguarda da primeira revolução
proletária moderna. Foi uma internacional na qual marxistas e Libertaires, como
indivíduos ou como organizações políticas (tais como o marxista Partido Social
Democrata Alemão) puderam – a despeito dos conflitos – trabalhar juntos e se
engajar em ações comuns.
As Internacionais posteriores – a Segunda, a Terceira e a
Quarta – não tiveram muito espaço para os anarquistas. Entretanto, em diversos
momentos importantes da história do século XX, anarquistas e socialistas ou
comunistas foram capazes de unir forças.
1 - Nos primeiros anos da Revolução de Outubro (1917-1921),
muitos anarquistas, tais como Emma Goldmann e Alexander Berkman, deram apoio
(crítico) aos líderes bolcheviques.
2 - Durante a Revolução Espanhola, os anarquistas da CNT-FAI
(Confederación Nacional del Trabajo – Federación Anarquista Ibérica) e os
simpatizantes de Trotsky do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista)
lutaram lado a lado contra o fascismo, e se opuseram à orientação
não-revolucionária dos stalinistas e dos sociais democratas de direita.
3 - No Maio de 1968, uma das primeiras iniciativas
revolucionárias foi a fundação do Movimento 22 de Março, sob a liderança do
anarquista Daniel Cohn-Bendit e o trotskista Daniel Bensaïd. Houve também
diversas tentativas intelectuais significativas de juntar as duas tradições
revolucionárias, entre escritores como William Morris ou Victor Serge, poetas
como André Breton (o fundador do movimento Surrealista), filósofos como Walter
Benjamin, e historiadores como Daniel Guérin.
A experiência da Primeira Internacional não pode ser
repetida, obviamente, mas ela é de extrema relevância para todos nós, no começo
do século XXI, quando novamente marxistas e anarquistas reúnem forças e agem
conjuntamente, como indivíduos, como redes ou como organizações políticas (cuja
existência não é um obstáculo à cooperação), no movimento Justiça Global, nas
lutas ecológicas radicais, em apoio aos Zapatistas em Chiapas, nas mobilizações
de massa dos Indignados (Espanha, Grécia), ou no Occupy em Wall Street e outros
cantos do mundo.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/
* Uma versão ampliada deste artigo será publicada na edição 23 da revista Margem Esquerda, que chega às
livrarias no final de outubro.
Michael Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado
em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969.
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