Terrorismo econômico
Há exatamente 12 anos, o país vivia um clima muito
semelhante ao de hoje, no que concerne às avaliações sobre o desempenho da
economia e às suas perspectivas. Como é sabido, naquelas alturas colocava-se
claramente a possibilidade de Lula chegar à presidência da República, na
disputa com José Serra, do PSDB. Como isso não era do agrado das forças
financeiras que protagonizaram e dominaram os dois mandatos de FHC, instalou-se
um clima de terror que operava em todas as frentes, da mídia aos agentes do
mercado, das análises “científicas” dos doutores das universidades às
peripécias internas do próprio Banco Central. E tudo isso acontecia mesmo
depois da Carta aos Brasileiros, em que Lula se rendia às pressões do mercado e
prometia continuar ipsis litteris a política econômica em curso, garantindo a
predominância do rentismo e os juros elevados que irrigavam os ativos dos
credores. A ideia de que a economia iria se desfazer como gelatina, derreter
como manteiga e sair do “controle” na hipótese de Lula vencer foi se
disseminando despudoradamente e sendo “confirmada”, num claro movimento de
profecia que se autorrealiza, pela queda das bolsas, subida do dólar e
consequentes impactos sobre o nível de preços.
Nada disso encontrava muito respaldo nos dados, a não ser a
marola provocada pelo próprio terrorismo. Apesar de um nível de reservas
muitíssimo mais baixo que o de hoje e das três idas ao FMI em menos de quatro
anos, os indicadores macroeconômicos usuais não estavam em colapso e não se
verificava qualquer movimento parecido a uma fuga de capitais como a que
ocorrera entre setembro de 1998 e janeiro de 1999 (esta sim, por sinal,
indicadora de uma grave crise, pois ocorria mesmo com a garantia da permanência
do capataz, reeleito em primeiro turno contra Lula nas eleições presidenciais
de 1998).
A situação hoje é muito parecida. Basta girar o dial das
rádios, virar as páginas da grande mídia impressa ou zapear pelos comentaristas
econômicos da TV para ler e ouvir à exaustão que a inflação está fora de
controle, que os gastos do governo passaram de todas as medidas, que o país
perdeu sua credibilidade, que a economia brasileira, enfim, está à beira do
abismo. Mas mais uma vez os dados desmentem esse coro histérico. Muito melhores
do que em 2002, os parâmetros macroeconômicos estão absolutamente dentro do
previsto, a inflação segue a trajetória de normalidade inaugurada em 2003 e não
há vislumbre de fuga de capitais ou perda de investimentos externos. A
desvalorização do dólar e queda das bolsas que acontecem em uníssono, se dão ao
mero sabor da divulgação das pesquisas eleitorais.
Para não cansar o leitor vejamos apenas 3 desses parâmetros.
Os investimentos externos diretos, a única parcela “saudável” dos fluxos
internacionais de capital, apresentam-se, nos valores acumulados em 12 meses
até junho, no mesmo nível histórico recorde dos últimos quatro anos, em torno
de 64 bilhões de dólares anuais, muito mais elevado, por sinal, do que a média
do quadriênio 2007-2010 (35,5 bilhões), é bem verdade que afetada pela crise
internacional, mas igualmente bem mais elevada do que a média do quadriênio
2003-2006 (15,5 bilhões), ou 1999-2002 (25,1 bilhões), ou ainda 1994-1998 (18,7
bilhões), os dois últimos, além de tudo, beneficiados pela avalanche de
privatizações executadas nos dois mandatos de FHC. As reservas
internacionais do país também se encontram em nível recorde, cerca de 380
bilhões de dólares. Como falar então de perda de credibilidade?
Consideremos agora a questão do déficit público. O atual
governo é sistematicamente acusado de descontrole nas contas públicas, de estar
gastando em demasia, sem preocupação com o resultado primário positivo que tem
de produzir. Sem entrar no mérito de tal exigência, vejamos os dados. É verdade
que o superávit primário vem apresentando uma trajetória de queda nos últimos
quatro anos, mas, em média (2,2% do PIB), ele não é substantivamente inferior
ao dos quatro anos anteriores (2,9% do PIB), ainda que relativamente menor do
que os dos quadriênios 2002-2007 (4,3%) e 1999-2002 (3,5%). Mas, no que tange
ao resultado nominal, que constitui de fato o resultado final das contas
públicas, ainda que não valha nada para a ortodoxia econômica, pois o que
interessa a ela é a sobra de recursos públicos (superávit primário) para o
pagamento dos juros da dívida, os resultados são diferentes. Extrapolando dados
de junho, chegamos a um déficit de 3% do PIB na média do quadriênio 2011-2014,
um pouquinho maior do que o do quadriênio 2007-2010 (2,6%), mas bem menor do
que os dos quadriênios 2003-2007 (3,6%) e 1999-2002 (5,7%). Só para efeitos de
comparação, nos quatro anos findos em 2013, enquanto o déficit nominal
brasileiro atingiu média de 2,7%, o déficit nominal da área do euro atingiu 4,1%,
o dos Estados Unidos, 9,2%, o do Reino Unido, 8%, e o do Japão, 9,4% do
PIB. Não parece um tanto exagerado falar em total descontrole dos gastos
públicos?
Finalmente a inflação. A histeria pelo fato de o IPCA
(Índice de Preços ao Consumidor Amplo, calculado pelo IBGE) ter atingido o teto
da meta (6,5% ao ano) e de poder vir a ultrapassá-lo em 0,25% encobre o fato de
que mesmo com o valor de 6,75% para este ano, a média do quadriênio 2011-2014
será de 6,2%, pouco acima da média do quadriênio anterior (5,2%), mas abaixo da
média do quadriênio 2002-2006 (6,5%), e muitíssimo menor que as médias dos dois
quadriênios anteriores (8,7% em 1999-2002 e 9,4% em 1995-1998). Que outro nome
encontrar senão terrorismo econômico para a reiterada acusação de que a inflação
está fora de controle?
Qual a razão da histeria? A resposta não é difícil de
adivinhar. A presidenta Dilma não conta com o apreço dos mercados financeiros.
Ao longo de sua trajetória na cadeira de presidente, ela foi se afastando da
cartilha ortodoxa que detinha ainda grande peso no governo (daí a inexistência
de terrorismo econômico nas duas eleições seguintes) e tomando decisões pouco
palatáveis para os interesses representados por esses mercados. A começar pela
troca de comando do Banco Central, a presidenta teve a coragem de enfrentar o lobby
bancário-financeiro, não só reduzindo a Selic, como utilizando os bancos
públicos para forçar a queda dos vergonhosos spreads bancários, que ainda assim
continuam muito altos. A heterodoxia econômica, que havia ficado completamente
escanteada no início do período de 12 anos de gestão do governo federal sob o
comando do PT, foi ganhando espaço no governo da presidenta, para horror dos
mercados financeiros, que agora escutam estarrecidos pela voz do atual ministro
chefe da Casa Civil, Aloísio Mercadante, que não será dada nenhuma guinada
ortodoxa no segundo mandato da presidenta.
Sem saída, os mercados implantam o terror. Contam para isso
com a preciosa ajuda da grande mídia impressa e rádio-televisiva e dos doutos
pensadores da universidade, onde a cartilha ortodoxa tem domínio quase
absoluto. Seu poder de influência é efetivo, pois, em parte, eles podem
“produzir” os resultados mentirosos que alardeiam e difundem. Já vimos esse
filme em 2002 e vimos também que consequências danosas ele teve, pois o
terrorismo econômico foi funcional mesmo após as eleições, levando um governo
supostamente de esquerda a ser mais realista que o rei e a “beijar a cruz” do
neoliberalismo. Esperemos que agora esse trunfo ideológico a serviço do projeto
conservador e reacionário encarnado na candidatura de Aécio Neves não seja
suficiente para instalá-lo no poder e que, sendo vitoriosa a candidatura da
presidenta, a política econômica se liberte de vez dos ditames da ortodoxia e
retome o enfrentamento dos interesses financeiros, seguramente dos mais lesivos
ao País.
***
Leda Paulani, economista e doutora em Economia pelo IPE-USP,
é professora do Departamento de Economia da FEA-USP e da pós-graduação em
Economia do IPE-USP.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/
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