Voto nulo: uma solução a serviço da ordem
Promover a formação de uma consciência revolucionária
através das urnas é o que se propõe. Contudo, as próprias campanhas pelo voto
nulo repetem os mesmos erros que os seus defensores dizem combater. Por Fagner
Enrique
Na atual conjuntura de eleições, uma parte da esquerda opta
pelas campanhas pelo voto nulo. Essas campanhas, ganhando amplitude, serviriam,
supostamente, para demonstrar que uma parte da população não se sente
representada por nenhum dos partidos em disputa por cadeiras parlamentares e
cargos no executivo. Para alguns, servem, inclusive, para colocar em causa toda
a democracia representativa, levando à sua falência e abrindo caminho para uma
nova forma de organização social. Se uma grande quantidade de pessoas optar
pelo voto nulo, dizem, todo o sistema político vigente cairá por terra. Muitos
julgam que se trata de uma iniciativa verdadeiramente libertária, uma
verdadeira alternativa à política partidária. Fazer campanhas pelo voto nulo
seria, além do mais, uma forma de abrir os olhos dos trabalhadores para o fato
de que a democracia representativa serve aos interesses das classes dominantes
e impõe obstáculos à revolução dos trabalhadores. Votar em candidatos não serve
para promover mudanças, pois as transformações não são conquistadas através das
urnas e as campanhas pelo voto nulo atuam nesse sentido, auxiliam na
conscientização, na formação de uma consciência revolucionária. Promover a
formação de uma consciência revolucionária através das urnas é o que se propõe.
Contudo, as próprias campanhas pelo voto nulo repetem os mesmos erros que os
seus defensores dizem combater.
A esquerda partidária pretende fazer das eleições um
instrumento de mudança: eleger os candidatos da esquerda é colocar o Estado a
serviço dos trabalhadores, estabelecendo condições para que as mudanças sejam
promovidas de cima para baixo (havendo lutas dirigidas de baixo para cima ou
não).
A esquerda que defende o voto nulo adota, sem tirar nem por,
essa mesma ideologia e essa mesma prática: do ponto de vista ideológico, o voto
é concebido como um instrumento de mudança eficaz; do ponto de vista prático,
votar é realizar as mudanças na prática, votar é protestar radicalmente contra
o estado de coisas em vigor. Da mesma forma, o protesto se desloca das ruas
para as urnas. A única diferença é que, ao invés de serem promovidas pela
eleição de representantes, as mudanças são promovidas pela anulação dos votos.
Em ambos os casos, a revolução é feita quando uma grande
quantidade de pessoas digita de dois a cinco números num aparelho eletrônico ou
enfia um bilhetinho rabiscado numa caixa selada. Essas duas esquerdas padecem
de uma debilidade teórica imensa, quase imensurável, pois pretendem negar uma
prática reforçando-a. Além do mais, tanto a esquerda partidária quando a
esquerda do voto nulo pretendem que deva haver alguém para dizer aos
trabalhadores o que eles já estão cansados de saber. Uns pretendem utilizar o
horário eleitoral obrigatório para fazer os trabalhadores se darem conta de que
eles vivem num sistema de exploração, chamado “capitalismo”, e que eles são
oprimidos, como se eles já não soubessem disso. A solução para tanto é votar
nos candidatos da esquerda: pronto, tudo resolvido. Outros pretendem fazer
campanhas para conscientizar os trabalhadores de que o voto nada muda, também
como se eles já não soubessem disso (as estatísticas de abstenções eleitorais
em vários países são, nesse sentido, reveladoras). A solução para tanto é
também votar, mas anulando o voto. A análise dos problemas e a solução proposta
são as mesmas: anular o voto não deixa de ser votar. Em ambos os casos,
revela-se não só uma grande debilidade teórica mas também um certo elitismo. Os
trabalhadores precisam que alguém lhes diga quais são os seus próprios
problemas e lhes aponte soluções. Essas esquerdas pensam estar, assim,
realizando um trabalho de base de caráter pedagógico. A classe trabalhadora
parece não ser composta de pessoas maduras, que encaram a exploração e a
opressão diariamente e que, volta e meia, se insurgem contra as desigualdades.
Durante as eleições, quando as disputas internas às classes
dominantes se acirram momentaneamente, quando são visíveis as fissuras entre os
donos dos poderes político e econômico, seria o momento de intensificar as
lutas dos trabalhadores pela base, intensificar a auto-organização dos
trabalhadores nos locais de trabalho, nos locais de moradia, nos locais de
estudo, nos locais de trânsito. É nesses locais que as lutas de classes têm
lugar. O certo seria passar, nessa conjuntura, para a ofensiva, para o ataque,
aproveitando-se do fato de que as várias frações das classes dominantes estão
mais ocupadas em garantir o seu lugar ao sol do que com qualquer outra coisa.
Mas, ao invés disso, as lutas são freadas e interrompidas e
todas as apostas são, de um jeito ou de outro, depositadas na dinâmica
eleitoral. Encara-se, assim, uma grande pausa e, em quase toda parte, a mais
completa passividade, até que as eleições acabem e a luta volte para o lugar de
onde ela nunca deveria ter saído. Isso significa que uma certa mentalidade é
ainda todo-poderosa, em muitos espaços. São as eleições que tudo decidem. Ao
invés de se criarem novas alternativas, exploram-se as alternativas já
colocadas à disposição pelo Estado capitalista: o voto nulo é uma das
alternativas colocadas à disposição pelos capitalistas.
Não são construídos laços, não são fortalecidos os já
existentes, não há articulação para além da dinâmica eleitoral, por mais
revolucionário que votar nulo possa parecer. E isso tudo não é feito porque não
há braços e pernas e cabeças suficientes à disposição, no plano local, no
regional, no nacional e no internacional. As lutas não se revigoram e não se
integram e nem passam à ofensiva. É melhor se mobilizar para influenciar os
resultados das eleições e esperar para ver o que vai dar. É extremamente
difícil colocar as pessoas em movimento, fora dessa dinâmica. Fica tudo em stand
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Fonte: http://passapalavra.info/
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