terça-feira, 21 de outubro de 2014

Voto nulo: uma solução a serviço da ordem – por Fagner Enrique


Voto nulo: uma solução a serviço da ordem

Promover a formação de uma consciência revolucionária através das urnas é o que se propõe. Contudo, as próprias campanhas pelo voto nulo repetem os mesmos erros que os seus defensores dizem combater. Por Fagner Enrique
Na atual conjuntura de eleições, uma parte da esquerda opta pelas campanhas pelo voto nulo. Essas campanhas, ganhando amplitude, serviriam, supostamente, para demonstrar que uma parte da população não se sente representada por nenhum dos partidos em disputa por cadeiras parlamentares e cargos no executivo. Para alguns, servem, inclusive, para colocar em causa toda a democracia representativa, levando à sua falência e abrindo caminho para uma nova forma de organização social. Se uma grande quantidade de pessoas optar pelo voto nulo, dizem, todo o sistema político vigente cairá por terra. Muitos julgam que se trata de uma iniciativa verdadeiramente libertária, uma verdadeira alternativa à política partidária. Fazer campanhas pelo voto nulo seria, além do mais, uma forma de abrir os olhos dos trabalhadores para o fato de que a democracia representativa serve aos interesses das classes dominantes e impõe obstáculos à revolução dos trabalhadores. Votar em candidatos não serve para promover mudanças, pois as transformações não são conquistadas através das urnas e as campanhas pelo voto nulo atuam nesse sentido, auxiliam na conscientização, na formação de uma consciência revolucionária. Promover a formação de uma consciência revolucionária através das urnas é o que se propõe. Contudo, as próprias campanhas pelo voto nulo repetem os mesmos erros que os seus defensores dizem combater.

A esquerda partidária pretende fazer das eleições um instrumento de mudança: eleger os candidatos da esquerda é colocar o Estado a serviço dos trabalhadores, estabelecendo condições para que as mudanças sejam promovidas de cima para baixo (havendo lutas dirigidas de baixo para cima ou não).

A esquerda que defende o voto nulo adota, sem tirar nem por, essa mesma ideologia e essa mesma prática: do ponto de vista ideológico, o voto é concebido como um instrumento de mudança eficaz; do ponto de vista prático, votar é realizar as mudanças na prática, votar é protestar radicalmente contra o estado de coisas em vigor. Da mesma forma, o protesto se desloca das ruas para as urnas. A única diferença é que, ao invés de serem promovidas pela eleição de representantes, as mudanças são promovidas pela anulação dos votos.
Em ambos os casos, a revolução é feita quando uma grande quantidade de pessoas digita de dois a cinco números num aparelho eletrônico ou enfia um bilhetinho rabiscado numa caixa selada. Essas duas esquerdas padecem de uma debilidade teórica imensa, quase imensurável, pois pretendem negar uma prática reforçando-a. Além do mais, tanto a esquerda partidária quando a esquerda do voto nulo pretendem que deva haver alguém para dizer aos trabalhadores o que eles já estão cansados de saber. Uns pretendem utilizar o horário eleitoral obrigatório para fazer os trabalhadores se darem conta de que eles vivem num sistema de exploração, chamado “capitalismo”, e que eles são oprimidos, como se eles já não soubessem disso. A solução para tanto é votar nos candidatos da esquerda: pronto, tudo resolvido. Outros pretendem fazer campanhas para conscientizar os trabalhadores de que o voto nada muda, também como se eles já não soubessem disso (as estatísticas de abstenções eleitorais em vários países são, nesse sentido, reveladoras). A solução para tanto é também votar, mas anulando o voto. A análise dos problemas e a solução proposta são as mesmas: anular o voto não deixa de ser votar. Em ambos os casos, revela-se não só uma grande debilidade teórica mas também um certo elitismo. Os trabalhadores precisam que alguém lhes diga quais são os seus próprios problemas e lhes aponte soluções. Essas esquerdas pensam estar, assim, realizando um trabalho de base de caráter pedagógico. A classe trabalhadora parece não ser composta de pessoas maduras, que encaram a exploração e a opressão diariamente e que, volta e meia, se insurgem contra as desigualdades.

Durante as eleições, quando as disputas internas às classes dominantes se acirram momentaneamente, quando são visíveis as fissuras entre os donos dos poderes político e econômico, seria o momento de intensificar as lutas dos trabalhadores pela base, intensificar a auto-organização dos trabalhadores nos locais de trabalho, nos locais de moradia, nos locais de estudo, nos locais de trânsito. É nesses locais que as lutas de classes têm lugar. O certo seria passar, nessa conjuntura, para a ofensiva, para o ataque, aproveitando-se do fato de que as várias frações das classes dominantes estão mais ocupadas em garantir o seu lugar ao sol do que com qualquer outra coisa.

Mas, ao invés disso, as lutas são freadas e interrompidas e todas as apostas são, de um jeito ou de outro, depositadas na dinâmica eleitoral. Encara-se, assim, uma grande pausa e, em quase toda parte, a mais completa passividade, até que as eleições acabem e a luta volte para o lugar de onde ela nunca deveria ter saído. Isso significa que uma certa mentalidade é ainda todo-poderosa, em muitos espaços. São as eleições que tudo decidem. Ao invés de se criarem novas alternativas, exploram-se as alternativas já colocadas à disposição pelo Estado capitalista: o voto nulo é uma das alternativas colocadas à disposição pelos capitalistas.
Não são construídos laços, não são fortalecidos os já existentes, não há articulação para além da dinâmica eleitoral, por mais revolucionário que votar nulo possa parecer. E isso tudo não é feito porque não há braços e pernas e cabeças suficientes à disposição, no plano local, no regional, no nacional e no internacional. As lutas não se revigoram e não se integram e nem passam à ofensiva. É melhor se mobilizar para influenciar os resultados das eleições e esperar para ver o que vai dar. É extremamente difícil colocar as pessoas em movimento, fora dessa dinâmica. Fica tudo em stand by.

Fonte: http://passapalavra.info/

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